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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma conciliação necessária na formação de professores


A recente exigência do grau de mestre – para além de uma licenciatura em educação - para a docência, só pode tornar-se oportuna e útil se a componente de investigação for genuinamente incorporada no 2º ciclo de formação (mestrado).

A legislação sobre os graus académicos e diplomas do ensino superior (DL.74/2006 alterado pelo DL 107/2008) estipula que «no ensino universitário (EU), o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre deve assegurar que o estudante adquira uma especialização de natureza académica com recurso à actividade de investigação, de inovação ou de aprofundamento de competências profissionais (art.º 18, 3)» enquanto no ensino politécnico (EP), o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre «deve assegurar, predominantemente, a aquisição pelo estudante de uma especialização de natureza profissional (art.º 18º, 4)». Mais adiante (art.º 20º, 1, b) refere que o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre integra «uma dissertação de natureza científica ou um trabalho de projecto, originais e especialmente realizados para este fim, ou um estágio de natureza profissional objecto de relatório final (…)».

No conjunto deste articulado são omissas referências explícitas à investigação nos mestrados no EP. Percepciona-se, mesmo que entendido como recomendação, que os mestrados realizados no EU devem ser, primordialmente, de natureza académica com recurso à actividade de investigação e, como consequência lógica, a 2ª parte do curso seria constituída por uma dissertação de natureza científica. Por outro lado, os mestrados no EP devem assegurar a aquisição de uma especialização profissional que, embora não excluindo uma dissertação, culmina num trabalho de projecto ou num estágio. À 1ª vista parecem ser orientações com sentido tendo em conta a natureza potencialmente profissionalizante das formações no EP. No entanto, podem sugerir que as formações, ao nível de pós graduação, para competências profissionais, podem ser feitas, com qualidade, sem investigação ou processos cientificamente fundamentados. Além disso, pode reforçar negativamente as naturais diferenças entre os dois subsistemas desvalorizando, no EP, a investigação enquanto elemento essencial de qualidade em qualquer deles. Em ambos é uma das pedras de toque de qualidade das formações especializadas, independentemente dos modos como nelas é incorporada. Não são as incidências em trabalhos de projecto ou estágios e respectivos relatórios, muito importantes no EP, que deles arreda a investigação. Nem é a subjectividade do discurso da lei que impedirá que, através de diversas metodologias e estratégias, ela tenha um lugar de destaque na realização das pós-graduações profissionalizantes.

Esta questão tem particular relevância na formação inicial de educadores e professores dos 1º e 2º ciclos, realizadas no EP e em algumas universidades.

A recente exigência do grau de mestre – para além de uma licenciatura em educação - para a docência, só pode tornar-se oportuna e útil se a componente de investigação for genuinamente incorporada no 2º ciclo de formação (mestrado). Para isso, percepcionam-se resistências mas também possibilidades. Uma das resistências decorre da excessiva antecipação, para arena da formação inicial, da tradicional representação do professor enquanto prático, valorizando-se o que supostamente resulta, de modo imediato, em qualquer cenário real de ensino. Tal representação tem implicações na concepção dos currículos e nas práticas de formação e supervisão. Estas são, com frequência, exclusivamente baseadas em modelos de «boas práticas», supostamente generalizáveis, observadas e textualmente reproduzidas, isentas de reflexões críticas. Tem sido frágil o protagonismo da investigação como prática ou como explicitação do observado e realizado nos estágios. A ultrapassagem desta resistência, depende dos modos como as instituições, os formadores e supervisores perspectivam a investigação na concepção e realização dos projectos e dos estágios. No núcleo das práticas parece indispensável colocar supervisores com formações, a nível de doutoramento, e percursos de investigação e de práticas reflexivas com qualidade, que permitam apoiar os futuros docentes (a) a tornarem-se investigadores dos seus contextos educacionais e das suas próprias práticas e (b) a conceber quadros de referência profissionais em que as perspectivas práticas e investigativas na docência sejam conciliadas através de atitudes e modalidades de investigação adequadas às diversas exigências dos contextos e sujeitos educativos.


Carlos Cardoso

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Professores consideram que rankings originam “julgamento público negativo” sobre a classe


Estudo analisa as percepções dos professores do ensino secundário sobre rankings de escolas

Em Agosto de 2001 era publicado, em Portugal, o primeiro ranking de escolas. Desde essa altura, os rankings passaram a ser publicitados todos os anos por vários meios de comunicação social e têm estado no centro de um intenso e polémico debate. Atenta a esta questão, Benedita Portugal e Melo, professora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, conduziu um estudo através do qual procurou analisar a reflexividade simbólico-ideológica do debate mediatizado, mas sobretudo perceber os efeitos da sua publicação nas práticas profissionais dos professores. Intitulado “Os professores do ensino secundário e os rankings escolares - reflexos da reflexividade mediatizada”, o estudo será publicado em livro em Setembro deste ano. Nesta entrevista damos a conhecer, e antecipamos, algumas das conclusões que resultaram deste trabalho de investigação.

O que a levou a avançar com este trabalho?

Este trabalho constitui o objecto de estudo da minha tese de doutoramento. Nessa altura, em 2003, os rankings escolares eram ainda um tema pouco familiar à maioria dos professores do 12º ano e não tinham sido sistematizados pelos meios de comunicação social. Além disso, e apesar das inúmeras reflexões mediatizadas que se iam produzindo em torno deles, os rankings não tinham sido ainda alvo de qualquer estudo científico que analisasse as consequências da sua publicação nas práticas organizacionais e pedagógicas dos docentes do ensino secundário.

Ao mesmo tempo, este era um tema que me interessava também como material pedagógico - os meus alunos colocavam-me variadas questões em torno dos rankings, nomeadamente o seu efeito nas práticas dos professores -, tendo procurado, através do debate que era produzido nos jornais, em particular no Público, explicar-lhes o contexto ideológico que estava por trás da produção e da defesa dos rankings. Por estas razões, e porque as minhas áreas de interesse cruzavam a Sociologia da Educação com a Sociologia da comunicação, decidi avançar para este trabalho.

Que metodologia utilizou?

O trabalho de campo decorreu ao longo de 2005, tendo sido pedido a 85 professores do 12º ano de escolaridade que manifestassem as suas opiniões sobre os rankings escolares relativos a 2001, 2002, 2003 e 2004. Os docentes eram oriundos de seis escolas secundárias situadas em diferentes regiões, ilustrando as disparidades socioeconómicas, culturais e geográficas do país. Estas escolas, aliás, ocupavam posições muito diferentes nos rankings escolares, uma invariavelmente nos primeiros lugares; outras nos últimos lugares; as restantes em posições intermédias.

O que evidenciaram os resultados que recolheu?

O inquérito mostrou que 57,6 por cento dos professores inquiridos discordam da publicação anual das listas que ordenam, por escola, as classificações dos exames de 12º ano, ao passo que 42,4 por cento afirmou concordar com a sua publicação. De uma maneira geral, porém, diria que os rankings escolares não são percepcionados pela maioria destes professores como um meio de dar a conhecer publicamente os resultados da sua competência pedagógica e permitir-lhes recuperar a auto-estima.

Na realidade, os critérios de justiça que passaram a regulamentar as práticas lectivas dos professores e que estes valorizavam poderão estar em causa desde que passaram a ser alvo deste tipo de avaliação pública. A questão passará justamente pelo facto de muitos docentes considerarem que não é o produto das suas práticas que é alvo de uma avaliação pública, mas os resultados que os alunos obtêm nos exames.

Neste sentido, mais de metade dos professores entrevistados entende que os rankings escolares originam um julgamento público negativo sobre eles. Aliás, é bastante mais significativo o número de inquiridos que considera que a acção de todos os professores do ensino secundário público é avaliada negativamente (20,2%) do que aqueles que apenas remetem esta emissão de juízos de valor para os docentes que leccionam nas escolas pior posicionadas (13,8%). Embora alguns destes professores também entendam que esta avaliação da opinião pública se dirige igualmente aos alunos que frequentam o ensino público (11,7%), têm a percepção de que é sobretudo a imagem do seu trabalho que está em causa. A consciência que evidenciam sobre a possibilidade de os rankings escolares terem acentuado a emergência de um mercado escolar é revelada por 18,2 por cento dos inquiridos.

Quais são os argumentos daqueles que se mostraram favoráveis à publicação dos rankings?

Nas justificações dadas pelos inquiridos que são a favor da publicação dos rankings escolares, é possível detectarem-se argumentos próximos das concepções que os entendem como um meio capaz de medir a qualidade do ensino ministrado nos diferentes estabelecimentos escolares, expressos em afirmações como “é sempre uma forma de tomar conhecimento da realidade global do ensino em Portugal” ou “é uma forma de comparação de resultados que considero bastante válida e, por vezes, dá para inferir conclusões quanto aos critérios de avaliação utilizados nas escolas”.

Confrontados com uma retórica que acentua a necessidade de os professores desenvolverem um serviço de qualidade com vista aos interesses dos utentes da escola, estes docentes parecem ter incorporado o discurso dos produtores de opinião que entendem que os rankings escolares produzem informações objectivas e fidedignas sobre a realidade educativa nacional.

Outras perspectivas associam-se a estas mas, apesar de traduzirem o mesmo espírito, mostram-se mais críticas, na medida em que colocam reservas ao processo de elaboração dos rankings escolares. Um outro conjunto de docentes revela-se mais preocupado com a utilização que deveria ser feita dos rankings, defendendo que estes deveriam ser aproveitados para se promover a melhoria do sistema educativo público.

E aqueles que discordam, o que dizem?

A grande maioria dos inquiridos que não concorda com a publicação dos rankings de escolas desconsidera precisamente os critérios “objectivos” que presidem à sua elaboração, entendendo que estes não são adequados para reflectir publicamente a qualidade do seu trabalho e o dos seus pares. Todavia, tal como os professores que concordam com a publicação dos rankings, parte dos inquiridos que apresentam uma opinião oposta não deixa de considerar que estão sujeitos a um julgamento público, porventura mais acentuado devido à existência de um mercado escolar atento aos resultados dos rankings.

Na opinião de outros docentes, o problema deste julgamento público reside justamente no facto de os rankings escolares reflectirem uma imagem errónea da actividade que é realizada nas escolas secundárias públicas. Nesta ordem de ideias, rejeitam a realização de uma hierarquização profissional produzida a partir do exterior da escola, que percepcionam como profundamente penalizadora e injusta.

Ao criticarem os critérios de elaboração dos rankings e ao não considerarem importante o lugar ocupado pela sua escola naquelas listas, outros docentes não só manifestam a sua discordância perante a ordenação e hierarquização do mundo escolar em torno dos valores da eficácia e da produtividade, como ainda denunciam os seus efeitos perversos, isto é, o facto de estes poderem gerar dissonâncias que ameaçam a função democratizadora da escola e o favorecimento de práticas de ensino instrumentalizadas e mercantilizadas.

Em síntese, os dados que estas listagens apresentam não só não traduzem a complexidade do trabalho escolar e o conjunto de dimensões que o envolvem, como inclusivamente ocultam o papel dos factores sociais e culturais no insucesso escolar, aspecto salientado por muitos docentes quando mencionam o facto de os rankings não terem em atenção estas variáveis.

Que tipo de efeitos produzem os rankings escolares nas práticas profissionais?

O facto de a maioria dos professores percepcionarem os rankings escolares como meios que produzem um julgamento público sobre o mundo escolar em geral, e sobre o seu desempenho, em particular, não é condição suficiente para que estes tenham alterado significativamente as suas práticas profissionais quotidianas. Na verdade, apenas 22,4 por cento dos inquiridos assumiram que a publicação dos rankings escolares influenciou o modo como passaram a leccionar.

O processo de recepção das mensagens mediáticas é um processo de “negociação do significado” no qual interferem diversas variáveis. A falta de credibilidade e confiança que os docentes atribuem aos critérios que presidem à elaboração das listas ordenadas das escolas, por um lado, e o facto de ideologicamente defenderem a realização de uma avaliação multidimensional que integre os aspectos qualitativos da realidade educativa, por outro, explicarão porque motivo a grande maioria dos inquiridos não alterou as suas práticas pedagógicas.

Um outro factor poderá, para além disso, ajudar a explicar porque razão uma parte significativa dos docentes não alterou as suas práticas lectivas: muito simplesmente porque estas já visavam o objectivo exame e já tinham em atenção as diferenças entre as notas obtidas na frequência e as notas dos testes nacionais.

Os rankings escolares parecem, assim, ter sobretudo influenciado a forma como os professores passaram a avaliar os seus alunos. A valorização da avaliação aferida dos desempenhos dos alunos em detrimento da avaliação formativa constituirá a consequência mais evidente da adopção destas práticas. O risco de a multiplicidade de olhares sobre os alunos se ir reduzindo e de estes passarem apenas a ser representados como meros reprodutores de conhecimento torna-se então bastante provável, como, aliás, o reconheceram alguns professores.

Os efeitos são mais visíveis nas práticas organizacionais?

Sim, penso que os dados obtidos permitem concluir que os rankings escolares já foram assumidos pelos professores, e pelas próprias escolas, no sentido de interferirem nas práticas organizacionais dos estabelecimentos de ensino. O grau de atenção que é dedicado aos rankings em cada escola é, porém, muito diverso, dependendo de factores tão diversos como a credibilidade que é conferida aos próprios rankings escolares pelos membros dos conselhos executivo e pedagógico, pelos restantes professores e mesmo pela situação de concorrência no mercado escolar vivenciada por algumas escolas. Neste sentido, 37,5 por cento dos inquiridos referiram, por exemplo, que os rankings levaram à adopção de estratégias específicas que permitissem à sua escola melhorar os resultados obtidos nos exames de 12º ano.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O ensino das artes é um problema com três pês


É preciso que a Educação seja encarada de forma transdisciplinar, de forma inclusiva e com metodologias eficazes a desenvolver a partir de opções de fundo que conduzam os jovens por um caminho de crescimento harmónico e cultural que consagre valores universais e direitos individuais.

A função das Expressões Artísticas nos curricula e no quotidiano real das escolas tem sido considerada segundo diferentes pontos de vista e, por isso, sofrido alterações bastante oscilantes nos últimos cem anos.

Para uns, a Arte nas escolas regulares funcionará apenas como um placebo. Para colmatar a doença que a Escola arrasta atrás de si há vários anos, muitos responsáveis pela educação forjam programas de índole artística em actividades super-extracurriculares, esquecendo a necessidade de formação dos professores especialistas e dos docentes generalistas e ainda o facto de as diversas expressões fazerem parte do desenvolvimento global de cada ser humano e deverem estar integradas em qualquer aprendizagem. A placeboterapia é bastante desapropriada neste contexto. Se é possível curar um doente de qualquer doença pressuposta ou real com um medicamento sem qualquer acção farmacológica, já em educação não é possível fazer de conta; mesmo quando se joga, a simulação tem um fim educativo; ainda que em jeito de brincadeira, é sempre uma realidade que pretende desenvolver a capacidade de iniciativa, a criatividade, a inteligência emocional.

Outros há que, não acreditando nas expressões na escola como algo que enriqueça a formação dos estudantes futuros cidadãos do mundo, as vêem como algo que serve para acalmar, um tratamento que, sem curar, consegue aliviar as dores de que “médicos”, “pacientes” e, sobretudo “directores de hospitais” tanto vão padecendo actualmente. As artes como um paliativo. Paliar: disfarçar, encobrir, remediar provisoriamente. Acrescenta-se mais uma coisinha, oferece-se um órgão musical, toma-se uma medida que até parece correcta; é a ideia de que as artes - mais do que o valor que possam ter por si mesmas, integrando faculdades físicas, intelectuais e criativas, contribuindo para o desenvolvimento cognitivo segundo perspectivas únicas impossíveis com outros meios educativos e para a reinvenção da humanidade cada vez mais urgente neste espaço de neo-botas-de-elástico - servem unicamente de “trampolim” para aprendizagens de disciplinas ainda, reaccionariamente (por que não dizê-lo?) consideradas mais “bem-nascidas”.

No meio de toda esta confusão surgem aqueles para quem as artes resolveriam tudo em educação. A Educação pela Arte, que Herbert Read tão bem defendeu (como outros, antes e depois), se encarada de uma forma absoluta e por isso reducionista, pode acabar por ser bastante paradoxal. Vista como panaceia (remédio para tudo) que vai fazer com que dos indivíduos irradiem potencialidades e possam desenvolver todas as suas múltiplas inteligências corre o risco de não subsistir. Damásio refere que a presença do cognitivo em detrimento do emocional é uma das causas do declínio das sociedades contemporâneas. Creio que é preciso que a Educação seja encarada de forma transdisciplinar, de forma inclusiva e com metodologias eficazes a desenvolver a partir de opções de fundo que conduzam os jovens por um caminho de crescimento harmónico e cultural que consagre valores universais e direitos individuais.

Estes três “pês”, placebo, paliativo e panaceia, poderiam surgir como estratégias, de acordo com determinados contextos escolares. Muito do que a nível cultural se vivenciar nas escolas passará por parcerias com actores locais. O mais difícil é fazer evoluir a cultura e as mentalidades, sobretudo de governantes de verdade absoluta engolida; é em nome do povo que se tomam certas medidas, como o desprestigiar e encurtar cada vez mais a carga horária das expressões no currículo do Ensino Básico Português, de forma a que nem todos venham a ter na sua educação (sem terem que ter uma carreira artística) poesia, música, drama, dança, plástica, ou outras vertentes artísticas? Estamos a falar de curriculum regular para um povo que também tem direito a solfejar como os pássaros livres, a pintar aguarelas que atravessam os pensamentos, a esculpir imagens do futuro, a dançar alegrias rodopiantes, a tocar motivos do quotidiano em sons de cores variadas e a construir castelos de palavras; porque queremos ter bons artistas, mas também pretendemos que eles se sintam em casa, compreendidos e amados pelo seu público. Essa aprendizagem básica e integrada deve fazer parte, também, das principais reivindicações dos professores portugueses. Um país deve abrir muitos caminhos e não ter medo da imaginação, da criatividade e da liberdade que daí advêm. Portugal merece-o e precisa de erguer essa bandeira, para ter o seu lugar na Europa e no Mundo.



Rafael Tormenta

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Pais preocupados, escola a tempo inteiro e… novas oportunidades


Muitas das crianças e jovens que hoje integram o Sistema Escolar são, literalmente, filhos do insucesso e do abandono, questionamos toda uma organização que reduz o tempo de convívio diário entre pais e filhos.

O discurso em torno de uma suposta situação calamitosa do Sistema Escolar Público e, consequentemente, dos alunos que o frequentam é recorrente. Por força de uma mediatização cirurgicamente exponenciada da voz de diversos fazedores de opinião transformados em especialistas ad-hoc da coisa da educação, aquele discurso tem vindo a engrossar os contributos do neoliberalismo para o enfraquecimento do público em favor do privado.

Além do tratamento indiscriminado que globalmente apresenta de educação e ensino, trata-se de um discurso falacioso que, sob a capa de crítica à instituição escolar, mais não faz do que veicular despudoradamente a lógica neoliberal e conservadora de responsabilização das vítimas pelos seus próprios insucessos.

Entre outras dimensões ou vectores de análise esquece que muitas das crianças e jovens que hoje integram o Sistema Escolar são, literalmente, filhos do insucesso e do abandono. Embora longe de perspectivas determinísticas ou fatalistas da análise social, queremos com isto dizer que basta resgatar para essa análise as estatísticas sobre o insucesso e o abandono escolares das últimas décadas para rapidamente se poder concluir que o que realmente está em causa é a injustiça social que tem grassado na sociedade portuguesa e, consequentemente, a desigualdade no acesso aos mais diversos meios indutores e facilitadores do desenvolvimento.

Se é verdade que temos vários problemas no ensino que urge resolver, o que, do nosso ponto de vista, passa pela reconfiguração da própria instituição escolar, dos seus desígnios e dos seus modus operandi, considera-se que o que realmente se coloca em questão na actualidade são questões de educação, no seu sentido mais vasto, que embora se situem a montante da sala de aulas e da escola consubstanciam de forma omnipresente tudo quanto nelas se passa no seu quotidiano.

Vem isto a propósito de uma situação recentemente vivida: a D. Carla, chamemos-lhe assim, é mãe de um menino de 8 anos que frequenta o 3º ano de escolaridade. Empregada fabril que trabalha por turnos e que tem que deixar os filhos bem cedo entregues a uma ama, é uma mãe muito presente na escolaridade do filho e com permanentes preocupações relativamente ao seu desempenho escolar. Contacta amiúde com o professor para obter informações e gizar com ele estratégias de acompanhamento ao estudo em casa. Vive intensamente as dificuldades escolares do filho. Diz que já não sabe mais o que lhe há-de fazer até porque lhe dizem que o pai da criança também era um pouco assim. Diz que já não o consegue aturar e que até pensou que o melhor será reprová-lo para ver se melhora. Diz que já lhe prometeu uma “moto-quatro”, mas que por enquanto não vê jeitos de lha poder dar… “Ó senhor professor, olhe que nem com isto ele lá vai! O que é que eu faço?”.

Situações deste tipo não constituem algo de novo, ou extraordinário, no dia-a-dia de uma escola, no entanto, colocam, hoje, os professores que com elas são confrontados perante novas e muito pertinentes questões.

Desde logo, o acompanhamento que os pais fazem da vida escolar dos seus filhos, quando a actual equipa do Ministério da Educação enaltece as virtualidades do denominado programa de “Escola a tempo inteiro” e o dirigente máximo da Confederação Nacional das Associações de Pais advoga o alargamento do período de funcionamento das escolas da rede pública para as doze horas diárias. Pois, se somos defensores de uma escola pública que vá ao encontro das necessidades dos cidadãos, sejam eles pais trabalhadores com horários de trabalho alargados e desregulados, ou crianças provenientes de estratos sociais desfavorecidos que de outra forma não teriam acesso a uma refeição quente ou a aulas de Educação Musical, questionamos vivamente toda uma organização societal que tem reduzido a níveis muito preocupantes o tempo de convívio diário entre pais e filhos.

Interrogamo-nos também se a facilidade e rapidez com que as “novas oportunidades” concedidas àqueles que se viram precocemente afastados da escola – os pais das crianças que frequentam actualmente as nossas escolas – permitem que estes obtenham um diploma, não estará a contribuir para que os seus filhos – que hoje iniciam um percurso que a breve trecho terá obrigatoriamente doze anos – encarem com algum desmazelo as suas tarefas escolares, sabedores de que no futuro lhes será concedida uma “nova oportunidade”, eventualmente menos trabalhosa.




Joaquim Marques
ICE - Instituto das Comunidades Educativas
Rui Pedro Silva
CICS - Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

São precisas mais escolas de segunda oportunidade em relação à escolaridade formal


EDUCAÇÃO DE SEGUNDA OPORTUNIDADE

Todos os anos, cerca de quinze mil jovens portugueses saem da escola sem completarem o nono ano de escolaridade, aumentando as fileiras de cidadãos desqualificados. A Educação de Segunda Oportunidade, lançada na Europa em 1995, quer assumir-se como uma resposta educativa alternativa em relação sos sistemas formais de educação e formação. Para saber mais sobre este projecto, conversámos com Luís Mesquita, um dos mentores deste projecto em Portugal e presidente da Associação para a Educação de Segunda Oportunidade (AE2O).

Em que contexto surge esta escola?

Esta escola surge no âmbito do Projecto Europeu das Escolas de Segunda Oportunidade, projecto-piloto da Comissão Europeia iniciado em 1999 e prolongado até 2004, através do qual se criou uma rede de escolas - na qual chegou a estar incluída uma escola localizada no Seixal que, no entanto, acabou por encerrar. É em 2004, precisamente quando este projecto-piloto estava na sua fase final, que um grupo de professores destacado numa escola do concelho de Matosinhos abrangida pelo Programa Integrado de Educação e Formação na Escola (PIEFE), onde eu próprio me incluía, toma conhecimento dele. Na altura pareceu-nos que os intercâmbios internacionais previstos no projecto poderiam, de alguma maneira, ajudar os nossos alunos, pelo que estabelecemos um intercâmbio com uma escola dinamarquesa que integrava a rede. Nesse mesmo ano decidimos fundar a Associação para a Educação de Segunda Oportunidade (AE2O) e iniciamos o caminho que nos levou à abertura desta escola.

A associação tem um âmbito europeu e nacional?

O financiamento do projecto foi assegurado pela Comissão Europeia até 2004. Quando ele cessou muitas escolas fecharam portas. Depois disso, as escolas que permaneceram em funcionamento criaram uma rede a nível europeu através de uma associação de carácter não-governamental. Esta rede europeia, porém, é mais do que uma mera associação de escolas, porque inclui também autarquias e outras associações não-governamentais. Tem, por assim dizer, três níveis de filiação. Neste momento somos membros dessa rede como organização, porque o nosso processo de acreditação como escola está ainda a decorrer.

Esta escola distingue-se das do ensino formal sobretudo pela especificidade da sua oferta educativa. Pode elucidar-nos acerca deste aspecto?

Estas escolas surgem na medida em que existe um público europeu jovem, na faixa etária dos 15 aos 25 anos, caracterizado por baixas qualificações, pelo risco de exclusão social e, consequentemente, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, para o qual as respostas educativas formais são inadequadas. Neste sentido, as escolas de segunda oportunidade constituem sobretudo uma proposta motivacional, proporcionando uma oferta educativa que desperte interesse a estes jovens e lhes permita, entre outras coisas, regressar a um percurso formativo.

Cada formando tem à disposição oficinas vocacionais – electricidade, electrónica, construção civil, cozinha, hotelaria, turismo, multimédia e informática - onde ocupa a parte mais significativa do seu horário, complementada com actividades de educação artística, que incluem dança, música, grafitti, teatro, malabarismo, etc, representando cerca de um quinto do horário semanal de formação. Parte desta formação é dada por formadores estrangeiros convidados e por parceiros de projectos de outras organizações europeias.

Esta oferta concretiza-se não só através de uma componente vocacional associada a actividades de formação profissional, que procuramos serem ajustadas às necessidades do mercado de trabalho local, mas também a uma componente de aconselhamento e orientação, desenvolvida por um conjunto de técnicos que, assumindo um papel de tutor, se preocupam com os problemas destes jovens, estabelecendo com eles relações fortes de comunicação. Ou seja, ocupamo-nos de questões que não se limitam ao foro educativo, nomeadamente com os rendimentos das famílias, com a preocupação em assegurar o rendimento mínimo, a habitação, etc.

Estas escolas não estão incluídas na rede de ensino formal...

Não. Estas escolas resultam essencialmente de um esforço conjunto da comunidade local, desde os responsáveis educativos, às empresas, passando pelos organismos locais. Cada país tem, no entanto, um modelo próprio. Na Dinamarca, por exemplo, é um sistema público, em cada município existe uma escola de segunda oportunidade integralmente financiada pelo Estado.

No nosso caso resulta de uma parceria entre o Ministério da Educação, a Câmara Municipal de Matosinhos e a nossa associação. Uma das exigências deste modelo de escolas, aliás, passa pelo envolvimento de uma autoridade local.

Pelas características que nomeou, o projecto educativo deve assentar sobretudo em planos individuais de formação...

Precisamente. Um plano individual de formação onde procuramos combinar os interesses dos jovens com as ofertas da escola, o equilíbrio entre aquilo que os motiva e aquilo que precisam para desenvolver um conjunto de competências pessoais e sociais. A nossa principal ambição é manter estes miúdos connosco. Abrimos a escola com 45 jovens e decorridos quatro meses não temos nenhuma desistência. Para nós isso é uma vitória.

Paralelamente, temos também o objectivo de certificar a aprendizagem. Apesar de este tipo de escola não ter como principal objectivo a certificação, ela foi incorporada no nosso projecto educativo porque estes jovens precisam dela. E muitas vezes temos de negociar esse percurso com os jovens, porque eles acabam por ter actividades de formação de que não gostam muito, mas que são indispensáveis para entrar nesse percurso de certificação.

De que forma se processa essa certificação?

Actualmente temos dois percursos de certificação, um correspondente ao 6º ano, outro ao 9º ano. Até porque temos também dois tipos de público: os jovens adultos, maiores de 18 anos, para os quais existe um protocolo com os centros de novas oportunidades – a formação é da nossa responsabilidade, a certificação cabe ao CCRV; e os mais jovens, em que o processo de certificação é feito em colaboração com a Escola Secundária Óscar Lopes, em Matosinhos, ou com centros de formação profissional com quem articulamos a formação correspondente ao 9ºano. É um modelo muito flexível, os problemas vão sendo resolvidos à medida que vão aparecendo. Estamos a aprender fazendo.

Para além do protocolo existente entre o ME e a autarquia de Matosinhos, com que tipo de apoios institucionais e financeiros contam?

Este projecto nasceu do impulso da nossa associação. É, acima de tudo, um projecto associativo que congrega profissionais de educação que não se conformam com a situação destes e de outros jovens. Nós pensamos que o abandono escolar resulta de uma dupla realidade: é feito de abandonantes e de abandonados – porque, num certo sentido, o sistema educativo os abandonou a eles. Nós sentimos que as escolas têm uma responsabilidade para com estes jovens e achámos, nesse sentido, que fazia falta este tipo de resposta. Basta dizer que começamos com 45 jovens e temos uma lista de espera enorme. Nos primeiros três meses de funcionamento fomos contactados diariamente por instituições como as comissões de protecção de menores, equipas da segurança social e instituições que trabalham com crianças e jovens a sinalizarem-nos casos. Isto significa que este tipo de resposta é indispensável e que existe uma franja de jovens a que não estamos a conseguir responder.

Será que a resposta a este tipo de problemas não passará, entre outras possibilidades, por uma nova oferta curricular e por um leque mais alargado de currículos vocacionais nas escolas do ensino regular?

Eu acho que este é um trabalho que deveria envolver um maior número de instituições. As estatísticas mostram que em Portugal cerca de 20 por cento dos jovens não conclui o 9º ano. O que é muito preocupante, não existe outro país na Europa na mesma situação. E o problema não está na falta de respostas, está no modelo dessas respostas, que não conseguem envolver todos os jovens. É preciso, portanto, haver propostas de maior retaguarda em relação às respostas formais. E porventura outro tipo de respostas ainda mais recuadas em relação àquelas que nós oferecemos, porque existem jovens que nem sequer para este tipo de oferta educativa estão preparados.

Estes jovens contam com algum tipo de apoio à saída?

Nós encaramos este projecto de uma perspectiva socioeducativa, cujo objectivo passa, acima de tudo, por ajudá-los a prepararem-se para enfrentar os espaços de formação nos quais possam vir a reingressar ou directamente os espaços de trabalho. Eu acredito que eles próprios, resolvendo alguns dos seus problemas e estruturando-se pessoalmente, serão capazes de responder e de se integrarem de forma capaz. Temos noção, porém, que as oficinas de formação vocacional, ao prestarem serviços à comunidade, podem assumir um papel importante nessa reintegração. E esse é um trabalho no qual estamos também apostados, o de criar uma rede de locais de estágio, trabalhando em parceria com empresas e instituições que se queiram articular connosco.

Partindo deste relativo curto período de experiência, que outros desafios se colocam a um projecto desta natureza?

Eu julgo que existem resultados muito positivos nestes quase cinco meses de trabalho. Estamos a trabalhar com 45 jovens que estavam em abandono escolar, muitos deles há três, quatro, cinco anos, que nunca haviam estado mais do que uma semana em lado nenhum. E aqui estão há cinco meses, diariamente, o que na minha opinião é um resultado absolutamente extraordinário.

Partindo daqui, penso que o principal desafio será agora estruturar melhor o nosso trabalho. Apesar de termos trabalhado neste projecto praticamente dois anos, ele foi lançado muito em cima do início do ano lectivo e tivemos, por isso, muito pouco tempo para o desenvolver. O desenho curricular, por exemplo, foi sendo aperfeiçoado numa altura em que a escola já se encontrava em funcionamento. Apesar desta contrariedade, penso que durante este ano iremos ser capazes de estruturar melhor a nossa aposta. Compreendermos melhor a nossa missão e aperfeiçoar a resposta será, em síntese, o nosso principal desafio.

A Associação para a Educação de Segunda Oportunidade tem outros projectos, nomeadamente expandir-se a outros pontos do país?

A AE2O é uma pequena associação que congrega técnicos e profissionais de educação, pessoas interessadas, que tinham este sonho, um bocadinho impossível, de abrir uma escola em Matosinhos. Ao longo destes cinco anos de existência fomos participando em outras iniciativas e desenvolvendo outros projectos, que lhe conferem uma dimensão internacional. Neste contexto, integramos não só a rede europeia de escolas de segunda oportunidade, mas estamos a ajudar a criar uma outra rede europeia de organizações que, tal como nós, trabalham com jovens em risco, realizando um trabalho de cariz cultural.

Por outro lado, e embora estejamos sediados em Matosinhos, estamos a responder a solicitações que se estendem um pouco por toda a Área Metropolitana do Porto. E sentimos que esta resposta não é suficientemente abrangente. Só em Matosinhos existiam, em 2005, cerca de 4000 jovens que tinham abandonado a escola sem o 9º ano de escolaridade. Costumamos dizer, por graça, que a este ritmo irá demorar mais de cem anos para resolver este problema, só no concelho. Não quero com isto dizer que devamos multiplicar esta resposta. É importante que se dê tempo à consolidação desta experiência e avaliá-la. Mas acho, seguramente, que precisamos de encontrar mais respostas para além das que existem actualmente.



Luís Mesquita

Ricardo Jorge Costa

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

“Trabalhos de Casa”


As crianças, no seu papel de alunos, não se questionam e aceitam as regras de um jogo que não foi com elas negociado, pois não o aceitarem pode condicionar as suas vidas e, portanto, o seu “sucesso”.

Como todos sabemos, à maioria das crianças são propostos como “trabalhos de casa” tarefas que incluem cópias de textos, repetições de palavras (várias vezes), fichas com contas e problemas diversos que na maior parte das vezes se limitam a reproduzir os conteúdos dos livros ou o que eventualmente foi feito e explicado na aula. Para muitas crianças, os “trabalhos de casa” consistem no acto de abrir a pasta, tirar os cadernos, os livros e os lápis, fazer o que a professora mandou, fechar o caderno e voltar a guardar. Este ritual é para muitas crianças, sobretudo para as mais pequenas, tudo o que elas conhecem como próprio do acto de estudar. De facto, ao confundir-se estudar com este tipo de “trabalhos de casa”, estamos a afastar a hipótese das crianças se familiarizarem com o interesse pelo conhecimento satisfazendo a sua curiosidade natural através da pesquisa.

O conceito de estudar é muito confuso, e as crianças só o vão percebendo com o decorrer da escolaridade e à medida que se vão confrontando com outras situações – como, por exemplo, estudar a tabuada, estudar para um teste – e, mesmo assim, tudo isso depende delas. A função de estudar, não sendo uma operação muito concreta e codificada, é algo que não é muito claro para as crianças e, provavelmente, para os adultos com quem convivem. A maior parte das crianças não gosta de fazer “trabalhos de casa”, mas aceita a obrigatoriedade da tarefa mais ou menos pacificamente. Outras, contudo, manifestam-se: É uma seca... Tenho de estar sempre a escrever... cansa a mão... Já estou cheio. Apesar das dificuldades (não sabem fazer ou estão cansadas após um dia na escola), os “trabalhos de casa” aparecem sempre como alguma coisa que faz parte dos seus quotidianos, que está naturalizada e que, portanto, não se questiona – temos de fazer todos os dias e muitos... – ou cuja realização é condicionada pelo medo – se não fizer a minha professora ralha-me.

Para a criança ou para o adolescente, o trabalho escolar, com tudo o que ele comporta de actividade, representa o exacto equivalente ao trabalho profissional de vida de um adulto. Mas, enquanto a duração do trabalho profissional exige um grande descanso para a maioria dos adultos, o trabalho escolar é cada vez mais desenvolvido tanto dentro como fora da sala de aula. Há mais de 20 anos que se denuncia este excesso de trabalho e os consequentes malefícios físicos, psicológicos e morais para as crianças. Sabe-se que, para a maior parte dos adolescentes, a vida é dividida segundo um esquema condenado por todos os que se têm dedicado ao assunto e que se traduz em trabalho excessivo, que deveria ser seguido de repouso. Mas, em vez disso, é o lazer que é banido, salvo se houver um feriado ou férias. A psicologia da infância e da adolescência, assim como as ciências da educação e a sociologia, têm denunciado e reagido a este regime de trabalho escolar que continua não só a ser praticado como até desenvolvido, vulgarizado e disseminado. As crianças vão reagindo a este esquema quase por defesa natural: distraem-se na sala de aula, negligenciam no trabalho escolar, olham o tecto e o vazio, fazem pequenos desenhos nos cantos dos livros, falam sozinhas com os cadernos, riscam as secretárias, “aldrabam” os educadores fingindo que já fizeram tudo, vão “milhares” de vezes ao quarto de banho e fazem as mais diversas perguntas sobre coisas que não estão relacionadas com o que estão a fazer, trauteiam baixinho, etc. Ou seja, inventam toda a espécie de tarefas e de desculpas para não fazerem o que têm pela frente, ensaiando formas múltiplas de resistência a um trabalho cujo sentido não é explícito e que lhes é imposto do exterior. Não se conhecem ainda os benefícios que se podem tirar de tanto excesso, mas na maior parte dos casos os malefícios vêem-se generalizados nas revoltas das crianças. Neste caso, o ensino parece-nos estar atrasado em relação ao processo civilizacional. De facto, tal como o ser humano não se criou e não se cria somente pelo trabalho profissional, também as crianças não se formam somente pelo estudo formal. O conceito de trabalho de casa aglomera um conjunto de práticas e de efeitos que só aparentemente têm o mesmo sentido e intuito (sucesso, mobilidade social, emprego, integração...), para as mais diferentes motivações: as crianças parecem querer corresponder às expectativas dos pais e professores; os professores aparentemente querem corresponder às expectativas sociais; outros técnicos de educação dizem querer ajudar as crianças a ter melhores desempenhos escolares; os pais parecem querer proporcionar uma maior mobilidade social através da escola; e os técnicos da área social, por sua vez, defendem porventura esses trabalhos como um instrumento para ajudar as crianças a sair dos ciclos de reprodução da pobreza e da exclusão.

Muitas crianças evidenciam comportamentos agressivos, cansaço e dificuldade de adaptação ao trabalho que trazem da escola para fazer. Trata-se de um trabalho rígido, limitado e repetitivo, marcado pela necessidade e sobrevivência do aluno/a, construído a partir de uma visão conservadora da escola, contra uma visão “progressista” que procura um trabalho significativo, que ajude a compreender o significado emancipatório do conhecimento. Um conhecimento que fará com que as crianças compreendam a sociedade em que vivem e consigam adquirir os instrumentos para lidar com ela, tendo em conta os constrangimentos com que se deparam diariamente.

Em suma, as crianças, no seu papel de alunos, não se questionam e aceitam as regras de um jogo que não foi com elas negociado, pois não o aceitarem pode condicionar as suas vidas e, portanto, o seu “sucesso”. Aliás, como diria Bourdieu, é esta crença e aceitação das regras do jogo (a illusio) a condição da sua perpetuação. Este tipo de trabalho, não parece contribuir para o bem-estar e auto-estima das crianças, nem sequer para o seu sucesso. No entanto, compreendemos que o assumem como fundamental para não terem aborrecimentos, obter reconhecimento, uma nota ou passar no final do ano. Para muitas crianças, os estudos tornam-se, assim, um mal necessário, uma etapa a transpor, esperando a verdadeira vida anunciada, no futuro e sempre para depois da escola.


Maria José Araújo


Bibliografia

Araújo, Maria José (2004) ATL - Actividades de Tempo Livre Sem Tempo nem Liberdade. Dissertação de Mestrado. Porto: FPCE-UP.
Barrère, Anne (s/d) O Trabalho dos Alunos. Porto: Rés-editora
Bourdieu, Pierre (1979) La Distinction, Critique Sociale du Jugement, Paris: Minuit.
Duru-Bellat, Marie e Zanten, Agnés Van (1999) Sociologie de l'école. Paris: Armand Colin
Glasman, Dominique (2001) L'Accompagnement Scolaire. Paris: PUF.
Laloup, Jean (1962) Le temps du loisir. Paris: Casterman.
Ribeiro, Agostinho (1988) Brincar, Sonhar e Criar: Para uma psicopedagogia da Criatividade. Porto: FPCE-UP.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A importância das escolas


Aprender e ensinar constituem dois processos que deverão estar no cerne do trabalho que se desenvolve em qualquer escola. (…) O desenvolvimento do currículo, o ensino e a aprendizagem, têm que se centrar no que Michael Young designa por conhecimento poderoso, ou seja, o conhecimento especializado que os professores têm que dominar com segurança.

As escolas são instituições imprescindíveis para o desenvolvimento e para o bem-estar das pessoas, das organizações e das sociedades. É nas escolas que a grande maioria das crianças e dos jovens aprendem uma diversidade de conhecimentos e competências que dificilmente poderão aprender noutros contextos. Por isso mesmo elas têm que desempenhar um papel fundamental e insubstituível na consolidação das sociedades democráticas baseadas no conhecimento, na justiça social, na igualdade, na solidariedade e em princípios sociais e éticos irrepreensíveis.

Para muitos milhares de alunos, a escola constitui uma oportunidade única para romper com situações económicas e sociais desfavoráveis e precárias. Certamente por essa razão muitos pais sempre se sacrificaram para que os seus filhos a frequentassem. Aprender deve constituir o primeiro propósito da vida escolar. Exige esforço por parte dos alunos e o reconhecimento de uma hierarquia – os professores têm conhecimentos que os alunos não têm e que precisam de aprender. Ensinar constitui outro incontornável propósito da escola que exige, da parte dos professores, a mobilização de uma significativa variedade de conhecimentos e competências.

Aprender e ensinar constituem, assim, dois processos que deverão estar no cerne do trabalho que se desenvolve em qualquer escola. Por estranho que possa parecer estes dois processos não têm merecido a atenção devida por parte de uma diversidade de intervenientes sociais e políticos. As agendas dos investigadores da educação, das organizações sindicais, das sociedades e associações profissionais e das organizações políticas orientam-se, invariavelmente, por temas e problemas que pouco têm a ver com o ensino e com a aprendizagem.

Mas aprender e ensinar o quê? Certamente uma grande variedade de conhecimentos de domínios tais como a Língua Portuguesa, as Ciências da Natureza, as Ciências Sociais, a Matemática, as Artes e outras Expressões. Ou ainda de domínios transversais tais como a Resolução de Problemas, a Concepção e Desenvolvimento de Projectos, as Relações Sociais, os Valores Democráticos, a Utilização das Novas Tecnologias de Informação e a Recolha, Organização e Tratamento de Dados de Natureza Diversa.

Um número crescente de filósofos, sociólogos e estudiosos da educação vem defendendo que o desenvolvimento do currículo, o ensino e a aprendizagem, têm que se centrar no que Michael Young designa por conhecimento poderoso, ou seja, o conhecimento especializado que os professores têm que dominar com segurança. O conhecimento poderoso está associado ao conhecimento teórico, mais independente de contextos, e, consequentemente, tende a ter uma aplicação mais universal. O conhecimento prático e o conhecimento de procedimentos estão normalmente dependentes de contextos específicos e são, por isso, mais situados, mais localizados e menos susceptíveis de utilização generalizada.

Nestas condições, as disciplinas escolares constituem elementos centrais na definição dos propósitos das escolas porque são meios fundamentais para aprender e para conhecer “coisas” que, para a maioria dos alunos (jovens ou adultos), não é possível aprender noutro lugar. A valorização da escola, como meio de partilha e difusão do conhecimento poderoso, não deve, no entanto, estar associada à desvalorização de outros meios, mais ou menos informais, onde se pode aprender e desenvolver outros tipos de conhecimento (e.g., prático, técnico). As relações entre os conhecimentos escolares e os não escolares são complexas e podem assumir intensidades muito variadas. É uma área que interessa a muitos investigadores e pedagogos.

As escolas são decisivas para que os jovens compreendam o mundo em que vivem e para que possam intervir crítica e responsavelmente na vida social. Consequentemente, é importante valorizar o conhecimento escolar, no sentido do conhecimento poderoso, que constitui um meio incontornável de emancipação e de independência dos cidadãos, assim como de democratização, de coesão e de bem-estar das sociedades. É sobretudo para isso que as escolas servem e é também por isso que a sua importância não se devia questionar.

Domingos Fernandes

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Sobre a transição de ciclo de estudos


Como lidar com a transição entre o Ensino Básico e o Ensino Secundário? Uma alternativa seria permitir ao aluno seguir uma via a que chamo Via Segura. O aluno iria frequentar disciplinas transformadas em que os conhecimentos em falta fossem leccionados integrados nos conhecimentos previstos nos programas do 10º ano…

A transição de ciclo de estudos em Portugal (e noutros países) constitui uma experiência traumática para muitos alunos, particularmente a transição entre o Ensino Básico e o Ensino Secundário. A taxa de reprovação no 10º ano é elevadíssima e o nosso sistema educativo não parece ser capaz de lidar com a situação.

A alternativa de criação de um único ciclo de estudos antes do ensino superior iria apenas mascarar a raiz do problema: os alunos aprendem a velocidades diferentes ao longo da escolaridade e o seu grau de motivação e empenho nos trabalhos escolares tem grandes flutuações, dependendo de múltiplos factores (desde o desenvolvimento da personalidade do aluno até à influência do ambiente familiar e social).

Se é verdade que me parece existir em Portugal um número exagerado de ciclos de estudo antes do ensino superior (quatro ciclos) haverá sempre um momento de transição entre um ensino básico com um tronco comum e outro em que o aluno já tem de fazer opções para seguir por vários percursos.

A actual transição em Portugal entre o Ensino Básico e o Ensino Secundário poderá acontecer um ano mais cedo ou um ano mais tarde mas terá forçosamente de acontecer. A opção mais ou menos consciente por uma via no Ensino Secundário traz responsabilidades acrescidas aos alunos e aos Pais mas não parece que este facto tenha efeitos palpáveis. Por outro lado, na transição entre o Básico e o Secundário, admite-se que um aluno tenha nota negativa numa disciplina no Ensino Básico e depois prossiga estudos numa área onde essa disciplina seja nuclear; impedir o prosseguimento de estudos poderia provocar um problema ainda maior (e disciplinas como Português e Matemática devem estar presentes, com variantes é certo, em todas as vias do Ensino Secundário).

Então como lidar com a transição entre o Ensino Básico e o Ensino Secundário? Uma possibilidade é a criação de um semestre de transição e orientação em que os alunos, escolhendo uma via no Ensino Secundário, podem sempre mudar de via no fim desse primeiro semestre; esse semestre serviria para homogeneizar tanto quanto possível os conhecimentos dos alunos para os preparar para a via que só iria começar em força no segundo semestre desse ano. Esta via é particularmente exequível em países onde haja 13 anos de escolaridade antes do Ensino Superior.

Mas penso que se pode pensar numa melhor alternativa, admitindo sempre mudanças de vias no fim de cada ano de escolaridade. Se cada aluno, ao entrar no 10º ano de escolaridade, passasse por uma quinzena de trabalhos de orientação, poderia mais conscientemente escolher a via adequada às suas expectativas. Por outro lado o professor poderia ficar com uma ideia razoável sobre qual poderia vir a ser o desempenho desse aluno nesse ano de transição: tendencialmente positivo ou tendencialmente negativo. No primeiro caso, as aulas retomariam o seu curso normal. No segundo caso seria necessário fazer uma melhor avaliação da situação e propor ao Conselho de Turma uma de duas opções: horas suplementares de apoio para esse aluno caso as dificuldades não fossem demasiadas; ou então a entrada numa via alternativa (a que chamarei Via Segura) que garantisse a aprovação do aluno ao fim de um ou dois anos. Esta última via seria particularmente adequada aos alunos que tivessem reprovado a uma disciplina básica (como Português ou Matemática) e quisessem mesmo assim seguir uma via de estudos onde essa disciplina fosse nuclear.

Em que consistiria essa Via Segura? O aluno iria frequentar disciplinas transformadas em que os conhecimentos em falta fossem leccionados integrados nos conhecimentos previstos nos programas do 10º ano; por exemplo, na Matemática os temas de Geometria essenciais anteriores seriam leccionados de forma integrada nos temas de Geometria do 10º ano, e o mesmo para os outros temas. Esta Via Segura seria mais lenta (poderia demorar dois anos em vez de um ano) mas seria muito mais segura visto que daria condições a um aluno de obter aprovação no fim do 10º ano e prosseguir depois normalmente os estudos. Seria de certeza preferível à situação actual em que o aluno reprova dois ou três anos de seguida no 10º ano e acaba por anular a matrícula candidatando-se depois a exame onde a reprovação é certa.

Jaime Carvalho e Silva

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Professores cada vez mais responsabilizados pelo seu trabalho


Os modelos de avaliação dos sistemas educativos europeus têm vindo a convergir para um conjunto de instrumentos e de práticas comuns. Salvaguardando as inevitáveis especificidades inerentes a cada país, coloca-se hoje mais enfâse na avaliação global do sistema e menos na avaliação individual dos professores. Apesar disso, os docentes são cada vez mais responsabilizados pelo seu desempenho, do qual depende cada vez mais a sua promoção e nível salarial. Partindo de dados recolhidos no Euridyce, a Página aponta algumas das actuais tendências no campo da avaliação educacional na Europa.
Tendências da avaliação na Europa
Aferir a qualidade dos sistemas educativos europeus é uma preocupação crescente quer por parte do poder político quer dos profissionais de educação – e à qual não será também certamente alheia a crescente pressão social em torno desta questão. Apesar de ser um conceito discutível e de estar na origem de um debate interminável, o controlo dos índices de qualidade é habitualmente concretizado através de diversos processos: monitorização global do sistema, avaliação externa e interna dos estabelecimentos de ensino e avaliação individual dos professores. Habitualmente, a prática mais comum é interrelacionarem-se estes dois últimos processos. Poucos são os países, aliás, que centram hoje a sua avaliação exclusivamente no desempenho dos professores. Uma das formas de avaliação externa que tem conhecido um crescente destaque, e que nem sempre está isento de polémica, baseia-se nos resultados obtidos pelos alunos por via de testes externos - como os exames nacionais e os testes internacionais, como é exemplo o PISA - posteriormente divulgados a público. Entre os países que têm optado por este método contam-se República Checa, Holanda, Portugal, Suécia, Reino Unido e Islândia.
Apesar da convergência de processos ser cada vez mais comum, cada país possui, como não poderia deixar de ser, as suas especificidades.
Na Dinamarca, por exemplo, as escolas têm autonomia para desenvolver os seus próprios sistemas de avaliação de professores, não existindo regulamentações oficiais relativamente a esta matéria. Na Islândia dá-se preferência a um sistema de auto-avaliação, com cada escola a implementar os seus próprios métodos e decidindo se e de que forma o trabalho deve ser avaliado. Apesar destes avanços, muitos países têm mantido um sistema de inspecção de professores conduzido por entidades especializadas exteriores à escola. Estas inspecções podem ser posteriormente comunicadas à respectiva tutela, como acontece em França, ou às autoridades regionais competentes, como é o caso da Espanha, Alemanha ou Áustria. Em alguns países, como a Suécia, estas inspecções são conduzidas quer pelas autoridades nacionais quer regionais. De acordo com as informações recolhidas no Eurydice, este tipo de prática, ainda que desde sempre habitual nos sistemas educativos, tem-se vindo a acentuar e a alargarem-se as repercussões que dela advêm.
Sistemas de auto-avaliação ganham importância
No que se refere especificamente ao desempenho dos professores, as práticas de auto-avaliação são uma forma de monitorização cada vez mais comum. Desenvolvida desde os meados da década de 90, esta forma de avaliação é habitualmente encarada como uma primeira etapa na apreciação do desempenho dos professores e não é acompanhada por qualquer processo de avaliação externa. Este tipo de avaliação é posta em prática nomeadamente na Islândia, onde, na ausência de qualquer mecanismo oficial de monitorização do desempenho das escolas e dos professores, se tem vindo a desenvolver desde 1995 uma política de auto-avaliação.
A auto-avaliação passou também a ser aplicada em alguns países como um instrumento suplementar à inspecção externa do sistema, como é o caso da República Checa. Também na Suécia, a par com a inspecção levada a cabo pelas autoridades nacionais e regionais de educação, cada escola do sector público tem de elaborar um “relatório de qualidade anual” como forma de avaliar a sua actividade. Neste sentido, a Agência Nacional para a Educação sueca (Skolverket), estabeleceu um conjunto de orientações sobre a forma como este relatório deve ser elaborado e as áreas que deve cobrir, como a formação dos professores, as suas competências relativamente às matérias ensinadas e a organização do trabalho escolar.
Outros países estão a adoptar uma postura semelhante. É o caso da Irlanda, onde o Conselho de Professores, órgão recentemente criado e cuja larga maioria dos membros é professor (um pouco à imagem de uma Ordem), publicou um Código Profissional de Conduta para os Professores que abre caminho a este tipo de avaliação. Na maioria dos países onde este tipo de avaliação é posta em prática, a sua implementação aparece associada a critérios mais formais de monitorização ou à verificação, habitualmente levada a cabo por um avaliador externo, dos critérios estabelecidos pelas próprias escolas.
Os professores podem também ser avaliados ao nível da escola pelo responsável a quem reportam directamente, nomeadamente o director do estabelecimento de ensino, como é o caso das três comunidades da Bélgica, República Checa, Grécia, Lituânia, Áustria, Roménia e Eslovénia. Na Holanda, a apreciação individual do professor feita pelo director da escola é a única forma de avaliação reconhecida como tal.
Em alguns países, como a Lituânia, a administração da escola pode ser envolvida no processo de avaliação, a par de profissionais exteriores à escola - como acontece na Grécia com os conselheiros escolares. Na Letónia, a avaliação é da responsabilidade do coordenador do departamento de professores, e, em muitos casos, do professor responsável pela respectiva área de docência. Já no Reino Unido, no caso de grandes escolas secundárias, o director do estabelecimento avalia o órgão de gestão que, por sua vez, avalia os professores. As escolas francesas têm algumas especificidades neste domínio. Também ali os directores de escola têm algumas responsabilidades na avaliação dos professores, função que desempenham em parceria com os inspectores – ainda que estes não estejam acima deles na hierarquia.
Uma outra forma de avaliação interna é aquela que é conduzida ou apoiada pelos próprios pares. Esta fórmula, porém, é pouco comum, desenrolando-se habitualmente no contexto de conteúdos curriculares elaborados autonomamente e que exigem trabalho de equipa, tarefa para a qual é exigida a supervisão dos pares. Em alguns países esta forma de avaliação tem um estatuto reconhecido. É o caso da Grécia, onde os conselheiros escolares - responsáveis, entre outras tarefas, pela supervisão individual dos colegas - podem convocar professores da mesma área disciplinar para emitirem opiniões sobre os seus pares. Na Eslovénia, o conselho de professores de cada escola aprova, por maioria absoluta e através de voto secreto, as promoções que o director de escola submete para aprovação ao ministério da Educação. Estes diferentes padrões de avaliação tendem a interligar-se de forma crescente e, em alguns países, a estabelecer redes de avaliação quer no plano individual quer colectivo, tanto a nível interno como externo.
Se até há pouco tempo a inspecção individual constituía praticamente o único método utilizado na monitorização da actividade docente, estas novas orientações, caracterizadas sobretudo pela sua capacidade de se operacionalizarem em rede, tendem gradualmente a ganhar espaço. Isto é particularmente constatável na Áustria - onde a avaliação do trabalho dos professores estava até recentemente limitada aos modelos convencionais, baseados no trabalho dos inspectores e dos directores de escola (a quem os docentes prestam contas directamente) - que desde 2006 implementou um quadro nacional orientado para a auto-avaliação. É também o caso da República Checa, onde a avaliação individual feita pelos directores de escola é complementada, desde 2005, por um esquema de auto-avaliação, e do Reino Unido, no qual a monitorização das escolas pela Inspecção de Educação de Sua Majestade (HMIE) envolve processos de auto-avaliação baseados numa estrutura de “indicadores de qualidade” e de entrevistas individuais.
Avaliação baseada em resultados
Por outro lado, e se até um passado recente a avaliação individual dos professores era concretizada através de organismos de inspecção e se baseava sobretudo na monitorização dos processos, os novos modelos enfatizam hoje em dia a importância dos resultados, associados a uma crescente autonomia e descentralização e, por consequência, a uma gradual diminuição da imposição de normas de carácter nacional ou regional.
Voltando ao exemplo do Reino Unido, a avaliação interna elege como um dos principais objectivos resolver as incongruências entre o sistema referencial de indicadores de qualidade e o desempenho das escolas. Em países como a República Checa, Espanha, Áustria, e mais uma vez o Reino Unido, as inspecções externas aos estabelecimentos de ensino, baseadas de forma crescente em parâmetros padronizados, incluem também uma análise que incide nos resultados da actividade docente. Neste sentido, quer como elemento de avaliação interna quer externa, os resultados dos alunos nos exames nacionais estão a tornar-se gradualmente uma base para avaliar o desempenho das escolas, e, na mesma linha, os próprios professores, como acontece na Estónia, Suécia, Escócia e Liechtenstein.
Este tipo de política começou a ter impacto sobretudo a partir de 2005 - em Inglaterra um pouco mais cedo, desde 2001 -, apoiando-se numa ampla variedade de critérios que vão desde o desempenho escolar dos alunos até à participação dos docentes em actividades de formação ou actividades de investigação, e com tendência, se não a substituir, a complementar de forma decisiva a monitorização de processos e a adequação dos requisitos de avaliação estabelecidos a nível nacional ou local. Surge também numa altura em que a crescente autonomia das escolas fez emergir um novo actor colectivo – a escola – que se tornou o principal foco de responsabilização do sistema. Como resultado destas medidas, a monitorização individual dos professores deu gradualmente lugar à monitorização colectiva do corpo docente, tendo alguns países passado a combinar a avaliação individual e colectiva. Em França, por exemplo, a avaliação individual conduzida pelos directores de escola e pelos serviços de inspecção surge associada aos indicadores que monitorizam e classificam as escolas (os chamados “rankings”).
 Avaliação e progressão na carreira
Tal como já foi referido, os meados da presente década foram caracterizados pela emergência de novos mecanismos de avaliação do desempenho dos professores com significativas repercussões na profissão, aos quais surgem associadas, entre outras medidas, incentivos financeiros e diferentes estruturas de evolução na carreira. Assim, se a avaliação individual se havia tornado praticamente uma excepção num período em que a responsabilização pelos resultados assumia tendencialmente um carácter colectivo, ela tende a emergir uma vez mais desde os meados da presente década.
É o caso da Bulgária, onde a avaliação individual dos professores se assume agora como base para um sistema de carreira que compreende quatro níveis, cada qual com um índice de remuneração e de formação próprios. Aqui, o sistema leva em conta não apenas o desempenho individual dos professores mas também o contexto de trabalho no qual adquiriram as suas competências. Em Espanha, o ministério da Educação está a negociar com os sindicatos a aprovação de um novo estatuto legal para os professores não universitários onde se relaciona diferentes perspectivas de carreira com o desempenho individual e se prevê a atribuição de “bónus de desempenho”. Esta nova forma de responsabilização profissional foi igualmente implementada, com especificidades próprias, na comunidade flamenga da Bélgica e em Portugal.
Na comunidade flamenga da Bélgica, os professores passaram a estar sujeitos desde o passado ano lectivo (e desde este ano na educação primária) a uma entrevista, repetida a cada três anos, através da qual se avalia o seu desempenho. Duas apreciaçõedesfavoráveis podem resultar no despedimento (tal como acontece com os funcionários públicos em geral). De forma similar, desde 2007 que na comunidade de língua alemã a avaliação individual dos professores – desde sempre a cargo dos directores de escola nas escolas administradas pela Comunidade (ou pelo governo belga antes de 1989) - ficou consolidada nos estatutos referentes ao funcionalismo público do sector educativo público e privado que são objecto de ajudas por parte do Estado. Relatórios de avaliação que terminem com o comentário de “inadequado” em dois anos sucessivos levam ao afastamento da actividade docente.
No Reino Unido (Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte) este processo está mais adiantado. Os sistemas de gestão do desempenho, inicialmente introduzidos nos anos 90 como medida de apoio à melhoria do trabalho docente, incluem agora mecanismos que fazem depender o nível de remuneração dos resultados obtidos na avaliação. Aqui, as escolas são responsáveis pela gestão do desempenho dos seus professores, ainda que as regras sejam definidas pelo Governo. A informação recolhida, que inclui os resultados das observações feitas na sala de aula, pode também ser utilizada para outros fins, como dar corpo aos planos de auto-avaliação e desenvolvimento da escola. No entanto, na medida em que o processo é interno à escola e conduzido de forma anual, não está interdependente com as inspecções periódicas que são conduzidas nas escolas, nas quais os inspectores analisam aulas como parte da avaliação da qualidade do ensino sem, no entanto, se focarem individualmente nos professores.
 Premiar os mais rentáveis
 Esta crescente sobreposição da monitorização individual e colectiva parece reflectir uma dupla tendência na avaliação dos docentes, através da qual são crescentemente julgados tanto como indivíduos pessoalmente responsáveis pelas suas turmas como elementos do corpo docente. Neste contexto, os incentivos financeiros tornaram-se desde o início da presente década uma forma cada vez mais comum de premiar o desempenho individual dos professores. Na Hungria, por exemplo, os directores de escola monitorizam a qualidade e a quantidade do trabalho desenvolvido pelos docentes sob sua supervisão e podem recompensá-los ad hoc ou através de bónus salariais. Desde 2007, os resultados obtidos pelos alunos em exames nacionais podem igualmente resultar na atribuição de bónus. Na República Checa, os directores de escola podem também recompensar os professores com extras salariais que podem valer até 50 por cento do salário base ou redução do tempo de serviço. Os professores com melhor desempenho recebem também uma remuneração adicional na Eslováquia, onde a avaliação cobre um largo espectro de critérios, desde os resultados académicos das turmas, à participação em actividades educativas locais, ou serviços e iniciativas no contexto da escola. A Letónia, Lituânia e Roménia também oferecem bónus suplementares aos professores.
Em nota de conclusão, poderá dizer-se que apesar de a avaliação não ter reflectido de forma consistente na legislação o alargamento do leque de tarefas atribuídas aos professores ao longo dos últimos anos, assistiu-se, em sentido contrário, ao desenvolvimento gradual dos mecanismos destinados à monitorização da actividade docente. Num número crescente de países, estes mecanismos incidem sobre o trabalho dos professores a um e ao mesmo tempo no plano individual e enquanto elementos do corpo docente das escolas, avaliando os resultados concretos das suas actividades, a forma como satisfazem os critérios exigidos pela administração e a qualidade do seu desempenho. Em linha com os princípios da Nova Gestão Pública (New Public Management), a sobreposição de diferentes procedimentos avaliativos aumentou, na prática, a obrigação dos professores em se responsabilizarem pela sua actividade profissional, com reflexos substanciais na sua remuneração e nas condições de trabalho.
O tempo ajudará a revelar a implicação e o impacto que estas tendências e medidas terão no futuro da profissão, na qualidade da educação e no desenvolvimento dos sistemas educativos.

Ricardo Jorge Costa
P.E. N.º 185, série II

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Os professores


Quem são os professores? O que fazem os professores que os distingue dos outros profisionais? Quem os emprega como professores, o que espera deles? Pode esperar tudo? Tudo, o que é tudo?

1 Quando são muitas as perguntas, temos de escolher algumas. Escolhemos aquelas para as quais temos respostas, mesmo sabendo que não temos respostas. Os professores são aqueles que tudo fazem para merecer uma boa pergunta, uma pergunta difícil sobre um aspecto aparentemente livre de todas as dúvidas, uma pergunta elementar.

Quem são os professores? O que fazem os professores que os distingue dos outros profissionais? Quem os emprega como professores, o que espera deles? Pode esperar tudo? Tudo, o que é tudo?

2 A imensa maioria dos cidadãos já teve algum contacto com algum professor. Aparentemente todos sabem o que é um professor. Cada um sabe o que espera de um professor: alguma coisa entre a pessoa que nos ensinou alguma coisa ou com quem aprendemos o que pensamos não poder ter aprendido sem um professor. Alguém que nos vai esclarecendo o que é preciso saber mesmo de entre a infinidade de coisas com que contactamos por alguma via. Alguém que pode explicar algum detalhe científico, técnico e nos inicia no mundo das coisas que não conhecemos e que nos podem ser úteis agora e mais tarde. Há também quem diga que o professor nos disciplina o saber e a conduta ou que nos educa. Uma ou outra pessoa se lembra do professor que a chumbou ou a passou ou a levou a exame e participou de algum modo na construção de um diploma qualquer a garantir certas competências mais ou menos literárias.

Para a generalidade das pessoas, o professor estudou e deu a estudar, ensinou, aprendeu e deu a aprender, falou da descoberta do mundo que ajuda a descobrir. Claro que há muitos professores sob a designação de professor, mas o seu exercício é sempre reduzido a poucas "marcas".

3 Pela minha vida de professor, passaram muitos professores, muitos modelos. Sob a minha pele de professor, já me parece que viveram muitos professores todos diferentes, ainda que para os outros apareçam como um só professor. O exercício de muitas funções sociais, essas que passaram a viver na vida dos professores como em casa sua, fizeram dos professores outros professores. Do mesmo modo, a experiência de professor que reflecte (e escolhe alternativas ao adaptar-se à realidade em mudança) faz do professor passado um outro professor. O mesmo acontece por via da evolução científica e tecnológica ou por via da evolução das organizações escolares em que desenvolve a sua acção. Ou por via das mudanças nas comunidades educativas seja lá isso o que for.

Sempre que pensamos nas mudanças que sofremos, procuramo-nos no que se manteve invariante. Temos a certeza que há invariantes, não tanto pelo que sentimos, mas mais porque somos reconhecidos como professores quase do mesmo modo que há 20 ou 30 anos.

Agora que nos apoderámos da mudança como de uma forma de estar, agora que nos apoderámos da complexidade da vida que não suspeitávamos antes, procuramos uma invariante simplicidade de processos que afinal são os que nos definem quando nada parece ser o que era definitivo. O que é?

4 O que é que persiste tanto no educador de infância, como no professor especialista disciplinarmente ou tecnicamente falando, do ensino básico, secundário ou superior? O que é que persiste apesar de todas as formações iniciais terem mudado? O que é que persistirá? Novos professores vão aparecer com formações completamente diferentes.

Alguma coisa terão em comum com os professores que, com pontos de partida completamente diferentes, foram sofrendo adaptações, adequações, reconversões. O quê em comum? O que é que persiste nas mudanças?

5 As organizações têm tendência para atribuir ao professor papéis cada vez mais diversificados a exigir cada vez mais registos para os quais não há definição precisa. Como os professores reflectem pouco sobre qual seja a sua função, a tal, facilmente se deixam enredar nas múltiplas funções, educativas ou não, que a instituição escolar tende a albergar em suprimento da falência de outros sistemas de apoio social. Dito de outro modo, se a instituição escolar se tornar mais complexa ou se auto-definir em autonomia organizacional prestadora de novos serviços, o professor pode ser o que não é até deixar de ser professor tal como é reconhecido pelos não professores? Ou já não há quem não seja professor?

6 Como se identifica um professor? Como e o quê se avalia quando se pensa num professor? Precisamos de saber que não falamos de um número indeterminado de coisas quando falamos com decência sobre a docência.


Arsélio de Almeida Martins

sábado, 9 de janeiro de 2010

A língua inglesa como imperativo da globalização


as relações entre o inglês e prazer, felicidade, êxtase, sofisticação são repetidamente reiteradas nos anúncios e propagandas, nos filmes e séries, nas músicas e revistas.
No capitalismo tardio, o processo de globalização parece ter um papel fundamental na forma como as pessoas se constituem como sujeitos. Assim, seja numa vila periférica, numa grande metrópole ou em áreas rurais, por meio das novas tecnologias (internet, TV a cabo, telefone celular, Ipods) é possível conectar-se, interagir, informar-se e consumir produtos de origens variadas e “distantes”. Apesar da imensa diversidade, uma língua em especial se propõe a ligar as pessoas e forjar muitas possibilidades de identidade – a língua inglesa.
A presença maciça do inglês pode ser observada no mundo do trabalho, da comunicação, das tecnologias, das viagens e do entretenimento. E isso não acontece por acaso. A expansão dos domínios desse idioma delineou-se a partir da Revolução Industrial e do processo de colonização de países nas Américas, Ásia, África e Oceania. Embora as condições para estabelecer o inglês como língua internacional tenham sido implementadas pela Grã-Bretanha, a emergência dos Estados Unidos como superpotência, em meados do século XX, garantiu a consolidação desse idioma como língua global. O surgimento e “democratização” da rede mundial de computadores – a internet − também contribuiu significativamente para essa expansão.
É nesse sentido que se pode falar de Universo da Língua Inglesa. Tal expressão é compreendida como um termo amplo que abrange essa língua, materiais didáticos e paradidáticos para seu ensino, discursos produzidos nela e a partir dela, produtos e artefatos culturais (roupas, perfumes, músicas, filmes, séries de TV, alimentos, tecnologia, ciência, modelos de comportamento e de educação formal) produzidos e/ou associados aos países anglófonos – especialmente Estados Unidos e Inglaterra – e a seus falantes (nativos ou não).
Esse universo é parte constitutiva dos modos de vida na contemporaneidade. Ele parece abranger literalmente todos os setores da sociedade e se fazer presente de forma mais ou menos explícita no nosso cotidiano. O uso de termos e expressões da língua inglesa deixa marcas, inaugura racionalidades onde quer que ela se infiltre. Como uma espécie de canto da sereia, somos envolvidos de maneira sedutora especialmente pela mídia. Em conseqüência disso, as relações entre o inglês e prazer, felicidade, êxtase, sofisticação são repetidamente reiteradas nos anúncios e propagandas, nos filmes e séries, nas músicas e revistas. Além disso, a idéia de ser “descolado”, “antenado” e fazer parte de um clube, que promete “nada além do melhor[1]”, está associada a tal língua. Em virtude disso, somos impelidos a conhecer, estudar, integrar esse universo, que promete garantir desde os melhores empregos − como demonstram diariamente os anúncios classificados dos jornais − até momentos sucessivos de prazer a serem consumidos no estilo fast food.
Considerando tal entorno, pode-se fazer uso da assertiva de Graddol (2007, p. 20) que aponta para a existência de uma elite que considera o inglês como uma marca distintiva. No mesmo sentido, tal língua tem sido apontada como forma de inserção na cultura globalizada. Embora, inicialmente, a língua inglesa tenha passado por um processo de domínio nos moldes mais tradicionais do imperialismo, atualmente ela surge como parte de um dispositivo que, por meio de um “micropoder capilarizado” (Foucault, 2008) nas suas mais diversas manifestações, parece capaz de ditar regras e normas às quais se moldam “corpos dóceis” para usufruir dos incontáveis benefícios que seu conhecimento e utilização prometem oferecer.
Como um dos operadores centrais na comodificação dos sujeitos da sociedade de consumo, a língua inglesa parece aumentar consideravelmente o valor de troca dos indivíduos que não apenas podem consumi-la, mas também podem ser consumidos globalmente. Conforme pontua Phillipson: “[a] conclusão parece ser a de que você está, num sentido muito concreto, desfavorecido se você não sabe inglês” (1992, p. 276). E quem se arriscaria a ficar desfavorecido num mundo onde a competição acirrada impera?
 [1] “Nothing but the best” (Leavin’, Jesse McCarthy, 2008).
 Referências
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
  • GRADDOL, D. The future of English? A guide to forecasting the popularity of the English language in the 21stcentury. United Kingdom: The English Company (UK) Ltd, 2000. Disponível em: http://www.britishcouncil.org/learning-elt-future.pdf. Acesso em: 05 jan 2009.
  • PHILLIPSON, R. Linguistic imperialism. Oxford: Oxford University Press, 1992.
[1] “Nothing but the best” (Leavin’, Jesse McCarthy, 2008).

Gisvaldo Bezerra Araújo-Silva
P.E. N.º 185, série II

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Autoridade social da instituição escola e cidadania solidária


«EM CADA ROSTO IGUALDADE»
Mais importante do que tentar ser «o melhor do mundo», o melhor professor, o melhor aluno, a melhor escola, é tentar ser «o melhor para o mundo», respondendo com sentido de solidariedade ao outro que, sendo diferente, nos é próximo.
Num tempo em que se fala de «revolução social da aprendizagem» e se elege a educação como um bem humano essencial, as escolas portuguesas são organizações em situação de sofrimento, investidas de mandatos sociais inconsequentes, carentes de estima pública e privadas do clima de liberdade necessário à sua respiração, à sua dinâmica vital e ao seu desabrochar. Adoptando uma definição proposta por Paul Ricoeur, chamamos «instituição» à estrutura organizacional que configura o regime de vida «com e para os outros» num determinado contexto histórico, assegurando duração, coesão e carácter a esse viver, considerando que uma democracia com instituições escolares fragilizadas é, certamente, uma democracia vulnerável.
Pensadas para responder a necessidades humanas, as instituições não são apenas edifícios, muros, paredes ou regulamentos mas sim unidades sociais vivas, animadas por pessoas de «corpo e alma». Mas precisamente por isso, porque em referência estão as pessoas, os seus problemas, os seus dramas, os seus interesses e os seus sonhos, as instituições são também edifícios, muros, paredes e regulamentos. Ao contrário de outros dispositivos intangíveis e extraterritoriais, como as redes sociais, por exemplo, as escolas são instituições, isto é, organizações ligadas a «um chão», a uma realidade física perceptível e muito concreta, a um território de referência. A personalidade ou «rosto» de cada escola, o seu ethos organizacional, depende muito dos mecanismos que asseguram a sua inserção territorial, favorecendo relações de proximidade produtiva com outros actores sociais. Além do mais, a aprendizagem que acontece dentro da escola, e muito concretamente dentro da sala de aula, não pode ser dissociada daquela que se desenvolve fora dela, em especial no contexto familiar e na comunidade local.
Importa, nesse sentido, explorar linhas de intersecção entre a pedagogia escolar e a pedagogia social, sobretudo num tempo, como o da nossa contemporaneidade, marcado pela ameaça de agravamento das situações de pobreza, violência, desigualdade e injustiça social. Salientando, porém, que, subordinado a uma racionalidade sociopedagógica, o «social» a que nos referimos não se restringe ao universo da chamada «exclusão social», prendendo-se acima de tudo com o imperativo de construir solidariedade num mundo que nos surge cada vez mais deslaçado e obscurecido. Nessa medida também, importa defender a inserção social da escola mas prevenindo, por outro lado, a exaltação excessiva das virtudes da regulação sociocomunitária da educação, própria de um certo comunitarismo de tipo romântico.
Como instituição, a escola expressa um compromisso da sociedade para com os seus cidadãos, corporizando valores de cultura universal que, por definição, transcendem o universo dos interesses familiares e comunitários. A escola é um lugar de emancipação intelectual e de procura da verdade que resiste aos apetites de imediato, exigindo estudo, disciplina e lições. De uma forma singular, na escola celebra-se o privilégio de poder ser ensinado, que é como quem diz de poder acolher as verdades que vêm de fora e que, como tal, desafiam a mesmidade. Por esta razão, enquanto adulto especificamente preparado para a função educativa, o professor fará sempre a diferença. O respeito pela sua autoridade profissional, pela presença pessoal daquele que ensina, é condição fundamental para garantir a qualidade do desempenho das nossas escolas, enquanto «escolas do presente». Porque, na verdade, só através da posse subjectiva do presente nos tornamos capazes de futuro. O discurso em torno das «escolas do futuro» tende por vezes a desvalorizar a fecundidade do tempo vivido, sofrido, problematizado, partilhado e, nessa medida, sonhado.
Pelo lugar que ocupa no processo de desenvolvimento humano, a escola é uma instituição social por excelência onde, de forma privilegiada, se promove o «direito universal ao rosto». O ideal de igualdade e de universalidade que sublinha a nossa condição comum brilha em cada ser humano enquanto testemunho de uma irredutível unicidade. É essa misteriosa riqueza da subjectividade pessoal, posta em interacção em cada encontro humano, que nos permite falar da experiência relacional como uma experiência simultaneamente poética e política, onde desponta a crença em nós mesmos, nos outros, na vida e no futuro. Neste sentido, mais importante do que tentar ser «o melhor do mundo», o melhor professor, o melhor aluno, a melhor escola, é tentar ser «o melhor para o mundo», respondendo com sentido de solidariedade ao outro que, sendo diferente, nos é próximo. É justamente nesta cultura de responsabilidade relacional que reside o tipo de excelência ética que determina a qualidade do desempenho escolar, enquanto expressão de uma liberdade comprometida com o bem comum. Por serem lugares educativos, as escolas carecem de espaços de convivialidade reflexiva e de ambientes paz relacional que ajudem instituir lugares de cidadania e de fraternidade num mundo onde seja possível encontrar «em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade».


Isabel Baptista
P.E. N.º 185, série II