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sábado, 26 de maio de 2012

Profissão docente: lições à volta do mundo

A OCDE mostra uma panóplia de soluções encontradas em diversos países para valorizar a profissão docente. Uma tónica é comum: as grandes reformas na educação implicam consensos.

O Reino Unido e a Finlândia melhoraram o estatuto da profissão docente para atrair candidatos aos cursos de ensino. Em Singapura, os potenciais professores são selecionados entre os melhores alunos do secundário. Na Suécia, os salários são negociados individualmente entre o professor e o diretor da escola, permitindo salários mais elevados em áreas geográficas ou disciplinares de escassez. Incentivos salariais para premiar a competência e a criação de padrões profissionais na Noruega e Austrália, foram as soluções encontradas para dignificar a classe.

O relatório "Construindo uma profissão docente de alta qualidade: Lições à volta do mundo", publicado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), fornece exemplos vindos de todo o mundo de como a colaboração entre ministérios da Educação, representantes docentes e autoridades locais serve de base à transformação da profissão.

Em Singapura, a vocação para o ensino não é deixada ao acaso. O governo seleciona os candidatos a professor entre os melhores alunos do secundário oferecendo-lhes uma bolsa mensal, equivalente ao salário dos recém-licenciados, durante o período de formação. Em troca estes professores comprometem-se a lecionar por três anos no ensino público. O sistema educativo prevê ainda a entrada no ensino a quem está a meio de outra carreira. Acredita-se que seja uma forma de trazer experiência do mundo real para a escola. Quem escolhe a profissão de docente pode seguir três saídas diferentes: professor mestre, especialista em currículo ou investigação, e líder escolar. Cada uma com benefícios salariais específicos. A avaliação, feita anualmente após os três primeiros anos de ensino, tem como objetivo perceber qual das carreiras se adequa melhor às apetências do docente.

A preocupação com a satisfação dos professores reflete-se no modo como o governo tem ajustado os seus salários em conformidade com os dos outros licenciados. Tornar o ensino tão compensatório como as outras profissões é a estratégia usada para atrair candidatos mais qualificados.

Quando tomou posse, o governo de Tony Blair enfrentou a pior escassez de professores de que há memória no Reino Unido. Cinco anos depois, contavam-se oito candidatos para cada vaga. O aumento dos salários, mudanças importantes nas escolas e um programa de atribuição de bolsas de estudo aos candidatos marcaram a reviravolta.

Com forte apoio político e financeiro, no ano 2000, a Agência de Formação e Desenvolvimento (AFD) realizou uma extensa pesquisa de mercado sobre as motivações e barreiras à opção pela carreira docente. Concentrando-se na ideia de ensinar "a fazer a diferença", foi lançada uma campanha para melhorar a imagem do magistério onde também se destacavam fatores como a diversidade de competências que os professores adquirem, a variedade de saídas profissionais no ensino e a possibilidade de fazer do ensino uma "carreira" inicial, antes da passagem para outras.

A abordagem publicitária foi direta. A criação de uma linha telefónica de informação nacional permitiu recolher dados sobre os interessados na via ensino e sinalizar estudantes com competências para áreas de escassez, como a matemática e a física. Em 2005, o número de professores nestas disciplinas já tinha duplicado.

Elevar o estatuto profissional do professor foi também uma estratégia utilizada na Finlândia. Os professores sempre gozaram de grande respeito na sociedade finlandesa. Mas ao elevar a fasquia de acesso aos cursos de ensino e ao conceder maior autonomia aos professores na sala de aula, o governo conseguiu dignificar ainda mais a profissão.

Em 2010, contavam-se 660 vagas disponíveis nos cursos de ensino primário (do 1.º ao 6.º ano), nas oito universidades que formam professores, para 6600 candidatos. Este clima competitivo tem tornado o ensino uma profissão seletiva e altamente qualificada.

Desde 1980 que o recrutamento docente tem como critério a capacidade de transmitir uma educação pública tão profundamente humanista, como cívica e económica. A formação inicial prepara o corpo para assumir a responsabilidade pelo bem-estar e a aprendizagem dos alunos. Durante a carreira espera-se ainda que os profissionais do ensino combinem a prática letiva com a investigação.

O professor é formado para realizar pesquisa-ação durante a prática letiva. As autoridades de Xangai, na China, contam com estas investigações para melhorar o método de ensino individual e, assim, a qualidade do sistema educativo. À semelhança do que acontece na Finlândia, nenhum aluno é, literalmente, autorizado a ficar para trás. Por isso, é essencial ao docente ter a competência e o conhecimento necessários para criar um vasto e atualizado leque de soluções para os problemas de desempenho dos estudantes.

Ao longo da carreira, os professores desta província chinesa participam em grupos de "estudo-ensino", muitas vezes envolvendo outros profissionais que os ajudam a melhorar a forma como ensinam. Durante estas sessões, os participantes elaboram planos detalhados sobre tópicos a lecionar que os guiam durante as aulas e atestam o seu desempenho profissional. Muitas vezes, as aulas dos seniores são observadas pelos colegas mais inexperientes, quando é introduzida uma mudança no currículo ou para que a sua prática sirva de exemplo.

Para subir de escalão, o professor deve contribuir para a formação de novos docentes e publicar artigos em jornais ou revistas sobre educação e ensino. A autoridade provincial muitas vezes identifica os melhores professores que emergem de processos de avaliação e retira-lhes a componente letiva, para que possam dar palestras aos seus pares, proporcionando demonstrações de aulas no distrito, província e mesmo a nível nacional.

Na Austrália, a estrutura da carreira envolve dois a quatro escalões, com aumentos salariais anuais: de professor iniciado a experiente - com ou sem responsabilidades na liderança da escola ou na coordenação de uma área de ensino - de assistente do diretor a diretor, e por último, o exercício de cargos na administração distrital ou regional. No entanto, a subida aos escalões mais altos requer a existência de vagas.

Na Inglaterra e País de Gales, foi introduzido em 1998 na carreira docente o grau de Professor com Competências Avançadas (PCA), que fornece uma rota alternativa para quem deseja permanecer na sala de aula. Estes professores passam 20% do seu tempo de trabalho a apoiar o desenvolvimento profissional dos seus colegas e o restante a lecionar. Os candidatos podem concorrer a este grau em qualquer ponto da carreira sujeitando-se a uma avaliação externa que engloba entrevistas e observação de aulas. Em julho de 2004, cerca de 5 mil professores passaram a avaliação de PCA e a intenção é graduar entre 3% a 5% da classe.

Na Irlanda, 50% da classe docente pode alcançar uma das quatro principais posições na carreira: diretor, diretor adjunto, assistente do diretor e professor com deveres especiais na gestão da escola. Os dois últimos cargos obrigam os docentes a ter responsabilidade sobre assuntos académicos, administrativos e pastorais, incluindo arranjos de horários, na ligação com as associações de pais, e na manutenção de equipamentos escola. Tudo isto a par da componente letiva. A seleção para estes cargos é feita pelo diretor e o conselho de administração da escola.

No Quebeque, Canadá, os professores mais experientes podem trabalhar como mentores dos colegas que lecionam nos cursos de ensino, recebendo uma remuneração adicional ou uma redução na componente letiva. Cerca de 12 mil professores participam no programa mentor. Alguns têm a oportunidade de se tornar copesquisadores nas universidades, participando em estudos colaborativos sobre temas ligados ao ensino, aprendizagem, gestão de sala de aula e sucesso ou fracasso do aluno.

Em 1995, a Suécia aboliu o salário fixo dos professores, como parte de um pacote destinado a aumentar a autonomia local e da flexibilidade no sistema educativo. O governo federal estabeleceu um salário mínimo a partir do qual o montante passaria a ser negociado individualmente. E, comprometeu-se a aumentar substancialmente os vencimentos ao longo de cinco anos, com a condição que nem todos os professores recebessem o mesmo aumento.

Os salários são negociados quando da contratação e anualmente pelo diretor e o professor, que pode solicitar assistência do sindicato. A negociação é feita com base em vários fatores. O nível de ensino é um deles. No secundário os salários são mais elevados que no básico. A situação do mercado de trabalho é tida em conta: os ordenados são melhores nas regiões ou disciplinas onde faltam professores, como a matemática e as ciências. O acordo coletivo exige que o aumento salarial esteja ligado a uma melhoria do desempenho, permitindo que as escolas possam diferenciar a remuneração de professores com tarefas semelhantes ou responsabilidades acrescidas.

O Instituto Australiano Ensino e Liderança Escolar (IAELE) estabeleceu padrões profissionais nacionais para os professores, aprovados pelos ministros federais e estaduais em dezembro de 2010. O objetivo: tornar claro o que os professores devem saber e ser capazes de fazer, ao longo da carreira e nos domínios do conhecimento e da prática profissional. Fazem parte deste instituto os sindicatos ligados ao ensino e um órgão independente para a promoção da excelência profissional e liderança escolar.

Uma ampla reforma focada para melhorar o ato de ensinar, foi a solução encontrada em 2003 pela província canadiana de Ontário para qualificar a profissão. Aos professores foi dada a oportunidade de pôr em prática novas ideias e de aprender com os seus colegas. A estratégia integrou as expectativas dos alunos e dos professores. A reforma ganhou o apoio da classe docente pois viria a ser implementada por especialistas, afastando os burocratas.

Para a aceitação foi central a assinatura de acordos de quatro anos com os principais sindicatos do setor, nos anos 2005 e 2008. O ministério foi assim capaz de negociar itens consistentes com a sua estratégia e os interesses dos sindicatos, que incluíam uma redução do tamanho da classe e a criação de tempo de preparação extra. Medidas que permitiram a criação de 5000 e 2000 novos empregos, respetivamente. Estava criada a paz laboral para ocorrer a mudança necessária.

Na Noruega, os governos e os sindicatos têm colaborado para melhorar e reconhecer a competência dos professores. Em 2008, o leque salarial foi alargado para premiar professores altamente competentes, sempre que identificados pelo diretor da escola.

O Ministério da Educação norueguês, a organização central para governos locais e regionais, instituições de formação de professores e sindicatos criaram um sistema de educação para professores em serviço. Cerca de 2 mil vagas foram reservadas em faculdades e universidades para serem ocupadas a tempo inteiro ou parcial. Aos participantes foi concedida licença laboral com vencimento, sendo os custos da sua substituição na escola suportados pelo governo central e o empregador local.

Apesar do acordo, entre o governo central e os parceiros educacionais, a implementação destas e outras iniciativas para aumentar a competência docente só avança com o aval das respetivas autoridades locais, compostas por 420 municípios e 19 distritos.

Ao longo do relatório, a OCDE sublinha a importância de colocar o professor no centro das mudanças educativas. A avaliação e a recompensa devem andar de braço dado, diz a organização. Autonomia e responsabilidade também são essenciais para elevar o estatuto social da profissão docente.

domingo, 20 de maio de 2012

ESEs: novos cursos, novas identidades

As Escolas Superiores de Educação foram criadas com a finalidade exclusiva de realizarem formação de professores. E essa exclusividade manteve-se, na grande maioria das ESEs, até ao início dos anos 2000, tempo suficiente para consolidar culturas institucionais enformadas pela matriz e vocação originais. Hoje, as ESEs realizam outras formações e nenhuma desenvolve a sua acção predominantemente centrada na formação inicial de professores e educadores (FIPE).

A necessidade de sobrevivência das próprias instituições, devido à escassez de alunos, as aberturas do modelo de Bolonha e a nova estrutura dos cursos, activaram profundas mudanças nas ESEs. Abriram-se, nos últimos anos, a novos cursos – de nível 1 e 2, e especializações – em diferentes áreas, a maioria das quais no domínio da educação e intervenção educativa e social. Adquiriram relevância cursos de 1º ciclo em áreas como Educação Social, Educação Multimédia, Animação Sociocultural, Teatro e Educação, Língua Gestual, etc. As formações de 2º ciclo têm vindo a proporcionar especializações a professores e outros profissionais da educação, em Administração Educacional, Educação de Adultos, Supervisão Educacional, Educação e Lazer, etc.

As culturas das ESEs têm vindo, assim, a recontextualizar-se, sendo a Educação, entendida em sentido formal e informal, social e comunitário, o esteio e matriz daquela diversificação formativa. Geraram-se dinâmicas multi-inter-transdisciplinares, atenuando possíveis cristalizações no seio de círculos de formação de professores, fechados e reprodutivos. Tem sido um notável esforço de mudança. Em instituições como estas, com uma missão original politicamente definida, tem sido relevante o facto de os novos cursos serem concebidos, autónoma e reflectidamente, visando respostas formativas a novas necessidades locais e nacionais.

Neste processo, a formação de professores tem constituído a referência e núcleo gerador de novas ofertas formativas. Por muitas razões, é indispensável manter forte essa referência. O evocado argumento do excesso de professores rapidamente perderá a sua força. Num quadro que designaria como “economia de escala dos saberes educacionais” foi, sobretudo, a partir das experiências, reflexões e sensibilidades desenvolvidas na FIPE, que as ESEs avançaram para outras formações. Com efeito, a Educação, entendida nas suas dimensões formal e informal, a natureza transdisciplinar da FIPE, a clara consciência das complexidades sociais a montante e a jusante da educação, mobilizam para a formação de professores proximidades e conexões com outras formações no domínio da acção e intervenção social.

As ESEs confrontam-se agora com a (difícil) tarefa de afirmarem uma nova coerência institucional, agregadora das diversas ofertas formativa, através da consolidação de filosofias, projectos e culturas institucionais agregadoras dessa diversidade. Uma filosofia que assegure um quadro teórico e reflexivo orientador e agregador da diversidade dos participantes no projecto institucional que, por sua vez, constitui a referência em torno da qual a cultura institucional, como expressão da acção e do modo de fazer, se vai consolidando.

Acrescentaria a esta trilogia – filosofia, cultura e projecto – o nome da instituição enquanto expressão comunicacional simbólica do que a instituição é e faz. Algumas instituições que ampliaram o leque das suas ofertas formativas muito para além da matriz educacional (incluindo cursos como turismo, termalismo, comunicação social, relações humanas, tradução e interpretação, desporto, arte e design, etc.) terão naturalmente maior dificuldade em consolidar coerentemente aquela trilogia e, obviamente, a própria designação de ESE será já muito estrita para tal diversidade de conteúdos. página da educação N.º 187, série II Inverno 2009

domingo, 13 de maio de 2012

O ensino da matemática nos países asiáticos

Muitos analistas apresentam os países asiáticos como exemplo a seguir no que diz respeito ao ensino da Matemática, apontando os sistemas educativos do Japão, da Coreia do Sul ou de Singapura como sistemas merecedores de particular atenção.

Muitos dizem que, apesar de ser comum encontrar turmas de 40-60 alunos, os países asiáticos obtêm melhores resultados nos estudos internacionais comparativos, pelo que devemos usar os seus métodos. Os estudantes asiáticos, quando emigrados noutros países obtêm invariavelmente melhores resultados do que os seus colegas dos países de acolhimento, o que reforça esta recomendação. Os manuais escolares de Singapura são já adoptados em vários distritos escolares dos Estados Unidos.

Contudo, devemos ter muito cuidado com a cópia de modelos estranhos à nossa sociedade e culturas. Com efeito, o funcionamento da escola depende muito da influência da sociedade em que está imersa. Um especialista, Frederick Leung, professor na Universidade de Hong Kong, adverte para factores sociais que empurram o desempenho dos alunos dos países da Ásia Oriental. Ele afirma que há quatro factores muito importantes:

- uma ênfase importante na importância social da educação e as grandes expectativas que as famílias têm relativamente aos resultados dos estudantes

- uma cultura onde os exames são importantes

- o papel da prática e da memorização na aprendizagem

- a filosofia pragmática dos países sob influência da tradição de Confúcio.

Por exemplo, foi na China que foram criados os primeiros exames de admissão a uma profissão (no ano 605) e assim foram criando prestígio por darem acesso a uma profissão respeitada e importante (funcionários do estado). Toda a cultura oriental está impregnada da importância de se ser bem sucedido nos exames.

Surpreendentemente os estudantes asiáticos não gostam de Matemática e não têm muita confiança nas suas próprias capacidades. Esta situação resulta, em grande parte, da necessidade de os estudantes frequentarem aulas suplementares para se prepararem bem para os exames; na Coreia do Sul mais de 90% dos estudantes do ensino primário frequentam aulas à noite para conseguirem ser bem sucedidos nos exames que lhes permitam aceder às melhores escolas secundárias e mais tarde às melhores universidades dos pais.

Que conclusões tirar de tudo isto?

Que a cópia acrítica de um modelo educacional de um pais para outro estará condenado ao fracasso pois o seu sucesso depende da cultura onde está imerso. E essa cultura é muito mais complexa do que possa parecer à primeira vista. Por exemplo, se é verdade que existe nos países asiáticos uma ênfase na prática e na repetição, também é verdade que existe uma preocupação de fornecer ao aluno ferramentas que o tornem autónomo na perspectiva confuciana: “Se deres um peixe a um homem ele tem alimento para um dia, mas se o ensinares a pescar ele tem alimento para a vida inteira.” Em consequência os alunos orientais são chamados a participar na aula muito mais do que os alunos ocidentais, para que percebam e consigam fazer por si o que está ser estudado na aula.

Todos temos a aprender com as experiências de outros países: muitos países tentam implementar Planos para a Matemática (como a Coreia do Sul e a Formosa) onde, tal como em Portugal, a ênfase é colocada na formação de professores e na criação de espaços suplementares para o estudo da Matemática dentro e fora da escola. É sempre interessante comparar os resultados e tentar perceber bem o que se terá passado e o que se poderá conseguir melhorar. Mas nunca deveremos importar sistemas “prontos a usar” sejam eles manuais escolares, programas escolares ou de formação de professores, ou sistemas de exames.
N.º 187, série I Inverno 2009

domingo, 6 de maio de 2012

Portugal, país de artistas

“Bruxelas, 14 Out (Lusa) - Portugal é o país da União Europeia que mais horas dedica à educação artística no primeiro ciclo do ensino básico, revela um estudo apresentado hoje em Bruxelas pela Comissão Europeia”.

De vir às lágrimas! Quase 30 anos de carreira docente em todos os níveis de ensino, a lutar freneticamente – no quotidiano das escolas, na formação de professores inicial e contínua e em projectos de investigação – pela presença e pelo valor das artes no ensino regular e, de repente, a Comissão Europeia descobre, em Bruxelas (a quilómetros de distância!), que dedicamos mais tempo do que os nossos parceiros da Comunidade à Educação Artística no 1º Ciclo do Ensino Básico. O estudo refere-se ao ano lectivo de 2007-2008 e revela que, muito à frente de países como a França ou a Alemanha, dedicamos 165 horas por ano de educação artística às nossas crianças das 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classes, o que dá umas 5h por semana…

Os mais atentos a estas temáticas lembrar-se-ão desse Fevereiro de 2006, quando o Governo de então anunciou que a Expressão Artística passaria a fazer parte das “matérias” dos alunos daquele ciclo, em horário de “prolongamento” escolar, sendo leccionada por elementos de “instituições profissionais locais”. Tratava-se de um investimento comum das tutelas de Lurdes Rodrigues e de Isabel Pires de Lima. Educação e Cultura uniam-se para “consolidar o que está definido na reforma do ensino básico (…) à semelhança do que foi feito com o Inglês”, afirmava a ministra da Educação, na Conferência Mundial sobre o Ensino Artístico (Casa da Música, Porto).
No ano seguinte (2006-2007), iniciou-se a generalização. A ministra da Educação desafiara as escolas profissionais artísticas para este trabalho a nível local – a Academia de Música de Espinho, não por acaso, já o fazia há mais de 15 anos – e a ministra da Cultura propunha-se realizar, com 70 câmaras, mais de 2.000 ateliês nas escolas. E lá se foi avançando. Havia um projecto em curso na Madeira, há mais de 25 anos, mas ninguém o terá avaliado, a nível da tutela.

Também ninguém disse que, em muitos casos, mais do que um programa de ensino artístico, talvez tenhamos tido uma solução de prolongamento do tempo escolar. Ninguém explicitou aprofundadamente que habilitações (científicas e pedagógicas) tinham esses monitores das instituições profissionais locais, nem se eles existiam em número suficiente em cada autarquia. Ninguém assumiu muito abertamente que muitos desses profissionais eram pagos à hora por um valor inferior ao que ganham as empregadas de limpeza – que, tendo um trabalho árduo, não têm a responsabilidade de quase 30 crianças para... guardar, pelo menos – e que, como diz o povo, tal dinheirinho, tal trabalhinho, isto é, por muito jovem que se seja, cheio de energia, chega sempre um dia em que não nos sentimos assim com tanta vontade de permanecer e desenvolver um trabalho óptimo se somos tão mal pagos. Ninguém falou de como estes tempos são “prolongamentos” no sentido em que estão para além do tempo “escolar” por excelência, onde reinam outras “matérias” consideradas mais “importantes” por alguns, como se a educação de uma criança não devesse abarcar todos os tipos de conhecimento, todas as experiências de vida, de forma integrada. Ninguém contou como os professores do 1º Ciclo foram pouco ou nada motivados para estarem envolvidos nestas experiências constituídas praticamente “extra-escola”.

Seja no ensino regular, seja até no ensino especializado, não se pode partir do princípio redutor de que as artes são só para quem quer ser músico, actor, pintor, bailarino ou tantas outras formas híbridas que hoje vão surgindo, felizmente. O contacto com as expressões artísticas e a Educação Artística devem fazer parte do quotidiano das escolas. Só uma equipa ministerial desconhecedora dos processos de ensino/aprendizagem poderia estabelecer uma tabela com 8 horas para Língua Portuguesa, 7 para Matemática, 5 para Estudo do Meio (metade para as Ciências Experimentais) e as restantes 5 horas para as Expressões ou – sublinhe-se – para reforço das áreas anteriores.
Se o conhecimento humano pudesse espartilhar-se, hoje os nossos investigadores já não falariam Português, não saberiam fazer contas e seriam incapazes de dar um pé de dança numa discoteca ou num baile de S. João. Em verdade, para qualquer área de conhecimento concorrem todas as outras, mesmo aquelas de cuja existência em nós, eventualmente, não tenhamos consciência.

Expressão Plástica e Educação Visual, Expressão e Educação Musical, Expressão Dramática/Teatro e Expressão Físico-Motora/Dança são quatro áreas artísticas que deveriam atravessar com eficácia e com qualidade todo o Ensino Básico. Mas basta olhar para os planos curriculares do nosso país para se perceber que a quantidade pode parecer elevada, mas não o é: a maior parte dos alunos continua sem saber Música, poucos têm contacto com o Teatro ou a Dança e mesmo a Educação Visual tem “perdido” um espaço que já teve.

As expressões artísticas no ensino regular têm como função contribuir para o desenvolvimento integral do indivíduo enquanto cidadão do Mundo. Compete à Escola Pública proporcionar a democratização do ensino de todas as áreas de conhecimento e de desenvolvimento, fornecendo aos mais carenciados os meios apropriados que lhes garantam maior facilidade em atingir objectivos propostos. A questão específica do Ensino Especializado é outra; mas ele deverá contar também com a função própria do Ensino Regular, na Escola Pública, que deverá possibilitar o desabrochar de qualquer aluno-cidadão, eventualmente numa área artística; ou seja, as escolas especializadas não devem restringir-se à frequência de alunos oriundos de famílias com determinados níveis culturais.

O que parece digno de preencher um parágrafo conclusivo é, juntando o que atrás ficou dito, afirmar que a quantidade não é, de modo algum, garantia de qualidade. Sem qualquer desapreço por tanta gente e por tantos docentes que tanto têm feito pelo ensino artístico em Portugal.
Página Educação N.º 187, série II Inverno 2009

sábado, 5 de maio de 2012

Quando o telemóvel toca na sala de aula...

“Que tinha acontecido nestes dez anos
para que de repente houvesse tanto para dizer –
tanto e tão urgente que não pudesse esperar para ser dito?
Para onde quer que eu fosse, havia sempre alguém (…) a falar ao telefone”
(O Fantasma sai de cena, Philip Roth, 2008)

– Se for para mim, diga que não estou. – é a frase habitual do Prof. S. sempre que um telemóvel toca na aula, mostrando o seu desagrado através de uma ironia benigna. O autocolante de proibição dos TOV’s1, afixado nos placares de todas as salas, não impediu a proliferação dos telemóveis também nos espaços pedagógicos (a massividade deste fenómeno só é ultrapassada pelo uso do socrático-magalhães no 1º ciclo: a cada um o seu computador). As relações com a tecnologia têm vindo a alterar os nossos comportamentos em sociedade, em especial, os da juventude. O telemóvel é hoje, para ela, um artefacto como o relógio para nós: andamos sempre com ele; é uma extensão tecnológica da nossa mão. Mas não haveria mal algum em o levar para a aula, se houvesse o cuidado de o desligar ou, pelo menos, de lhe retirar o som. O problema é que muitos estudantes aí o utilizam, e sabe deus com que frequência, recebendo e/ou enviando mensagens. E quantas vezes se sai da sala para atender uma chamada… que é sempre urgente. E nem pedem sequer autorização ao professor, “para não interromper”, justificam-se. Pois, mais um pretexto para fazer uma pausa naquela estucha de UC. A geração “vídeo-clip”, apesar de já adulta, tem uma enorme dificuldade em permanecer numa aula de duas horas… falta-lhes concentração e paciência.

E o Prof. S. foi-se dando conta que, progressivamente, actuava como nos tempos em que leccionou no ensino básico-secundário, ou seja, “tipo… polícia-de-giro”. Enquanto circulava pela aula, lá ia avisando este e aquela, «Guarde o telemóvel!, Desligue isso!, Preste atenção!». Ele que sempre se considerou um defensor intransigente da autonomia dos estudantes do ensino superior, constatava agora que esse princípio não se coadunava com o infantilismo e a vitimização daquela gente que tardava em sair da adolescência. Bruckner acertou na mouche: «O homem moderno gostaria de conservar as vantagens da liberdade (a independência) livrando-se dos seus inconvenientes (a responsabilidade)»2. Mas até esse hábito de cirandar nas aulas estava cada vez mais dificultado face à crescente sobrelotação das mesmas; por isso se passou do hegemónico ‘U’ ao ‘E’ tombado (única forma de acomodar turmas de 37 a 52 alunos) o que teve, como consequência prática, o seu acantonamento na zona dos quadros e da secretária. Ora numa tal “cena”, o uso dos telemóveis tem o campo livre.

O progressivo incómodo do Prof. S. em lidar com estas situações e a ausência de uma política global de escola sobre esta matéria, levaram-no a dirigir-se, por e-mail, à presidente do Conselho Pedagógico, pedindo-lhe que tomasse a iniciativa do debate com vista à clarificação do problema. Duas posições lhe pareciam possíveis: (i) continuar tudo como até aí, i.e., deixando ao critério de cada docente a forma de (não) lidar com esse tipo de situações; (ii) definir regras de conduta académica expectáveis em sala de aula (para docentes e discentes), numa óptica de construção de uma cultura escolar implicada tanto nas aprendizagens como na formação cívica dos seus actores sociais.

A Sr.ª presidente não deu cavaco. Talvez porque sendo adepta da grande política achou este um assunto menor. Ou, se calhar, é do grupo dos professores que, neste domínio, têm comportamentos em tudo idênticos aos alunos: atendem chamadas na aula ou, abandonando a turma, vêm para a varanda resolver o assunto que, evidentemente, não pode esperar.

(1) Acrónimo criado por L. Souta no poema «Abençoados TOV’s» (TMN, Optimus, Vodafone), DESTAK, 27/02/04, p. 13.

(2) Cf. BRUCKNER, Pascal (1996) “Filhos e Vítimas: o tempo da inocência” in Edgar Morin, Ilya Prigogine e outros A Sociedade em Busca de Valores. Lisboa: Instituto Piaget/ Epistemologia e Sociedade, nº 85, pp. 51-62.
Página Educação N.º 187, série II Inverno 2009

domingo, 22 de abril de 2012

Pela primeira vez, Mariana, sentiste o toque do giz…

Mais uma vez fiz o exercício da inversão e não gostei do que senti! Imaginei-me da tua idade, com a tua condição física, imaginei o que poderia sentir, imaginei uma esperança limitada, umas expectativas frustradas.

Foi em setembro que te conheci, Mariana.

Lembro-me, Mariana, que estavas sentada na tua cadeira de rodas, já ultrapassadíssima, na fila da frente. Tinhas graves dificuldades de aprendizagem e como se isso ainda não bastasse, estavas presa àquela cadeira.

Nas aulas, de Francês iniciação, quase não falavas e quando te colocava uma questão respondias muito, mas muito baixinho. Também tu tinhas medo! Tinhas medo da tua incapacidade física, tinhas medo de te expores, tinhas medo de responder as questões e falhar... falhar novamente, já não te bastava aquela cadeira. Aquela maldita cadeira que te separava da vida, que te impedia de sonhar, que te impedia de correr, de ires atrás de uma vida que supostamente, segundo as leis da natureza, seria a tua.
As tuas amigas, aquelas cujas pernas lhes permitiam voar, estavam na fase dos primeiros namoricos, na fase da troca dos bilhetinhos " Ana + Diogo = Amor para sempre". E tu Mariana? Tu eras... a Mariana da cadeira de rodas e ponto! Os rapazes nem olhavam para ti e pior... tu sabias!

Mais uma vez fiz o exercício da inversão e não gostei do que senti! Imaginei-me da tua idade, com a tua condição física, imaginei o que poderia sentir, imaginei uma esperança limitada, umas expectativas frustradas. Não é fácil termos a consciência, que há sonhos que nunca poderão ser concretizáveis e que por tormento do destino são esses sonhos os mais desejáveis.

Observava-te nos intervalos. Estavas sempre só e com um semblante triste. Observavas a vida dos outros, perdias-te na ilusão de imaginar que um dia também tu irias correr, saltar... que devido às tuas limitações, às barreiras arquitetónicas da escola e à urgência de viver das tuas amigas, tão característico destas idades, sempre se esqueciam de ti... Mas eu não! Tinha a responsabilidade de dar mais cor à tua existência!

Lembras-te, Mariana?

Lembras-te que um dia, numa aula de Francês, te mandei ao quadro? Para espanto de todos, tu muito timidamente e ao mesmo tempo muito aflitiva, disseste-me, quase gritando num tom revoltado:
"- Professora, eu não posso andar!"

Ao qual eu respondi imediatamente, num tom confiante, mas intimamente apreensiva:
"- Claro que podes Mariana!"

A turma parou muito preocupada meio estonteante com aquilo que estava a acontecer. Levantei-te e muito pacientemente, passo a passo, quase percorrendo uma eternidade, levei-te ao quadro muito agarrada a mim.
Amparei-te e tu, pela primeira vez, sentiste o toque do giz, pela primeira vez sentiste a emoção de escrever no quadro. Pela primeira vez, estiveste em pé, de igual para igual. Pela primeira vez, sentiste-te o "quase" firmamento das tuas pernas e por momentos sentiste a magia de todos te aplaudirem. Foi um momento extraordinário para todos nós, sobretudo para ti. Tu sorriste! Sorriste com alma! Sorriste porque aquele foi o teu momento! Sorriste porque afinal, por segundos, foste capaz!

Tenho a convicção que ainda hoje esta história é contada por todos que a partilharam, quanto mais não seja, quando se cruzarem na rua com uma pessoa de cadeira de rodas. O ensino, a aprendizagem é muito isto...

Todas as vezes que tínhamos aulas, era o dia de a Mariana ir ao quadro.
Esse dia mudou-te a vida! Mudou a nossa vida nas aulas! Os teus colegas já não se esqueciam de ti... deixaste o teu "canto solitário" e ganhaste amigos!
Mas as coisas não ficaram por aqui, tu precisavas da tua autonomia... da tua liberdade... do teu voar.

Um dia lembrei-me, um dia agi... Desenvolvi uma ação para a conquista da tua cadeira elétrica... Os alunos estavam eufóricos com a ideia e tu Mariana passaste da sombra para a luz da ribalta. Na escola todos falavam contigo, deixaste de pertencer só àquela turma e passaste a ser de toda a escola. Com muito esforço lá conseguimos, Mariana, conseguimos libertar-te... conseguimos mais um pouco da tua felicidade! Tudo em nome de ti! Tudo em nome da generosidade de todos, até mesmo daqueles que um dia desistiram do teu voar.

Obrigada, Mariana, por me teres tornado uma pessoa melhor.

E foi assim... foi assim que descobri a complementaridade do meu " eu". Foi assim que me tornei uma pessoa mais generosa, mais tolerante, foi assim que nasceu o meu sonho, o meu sonho impossível que se tornou possível!

Para espanto de todos tornei-me uma de vós. Recordo-me, como se fosse hoje... os comentários à minha decisão passavam pela incompreensão de me tornar "A professora dos deficientes". Tanto preconceito... tanta ignorância!
Mas é curioso... o Amor é um afeto altamente contagiante! A incompreensão dessa altura tornou hoje essas pessoas em verdadeiras forças no que concerne à luta pelos direitos dos "meus meninos especiais"!

E foi assim... que fui embora dessa pois tinha de concorrer... trazendo comigo todos os Andrés e todas as Marianas que outrora desconhecia.

E no ano seguinte... no ano seguinte concorri para uma escola onde havia uma vaga no ensino especial. Hoje reconheço que foi um ato de coragem, pois não tinha qualquer formação ou experiência nesta área, à exceção do caso do André e da Mariana. Todavia, foram eles que me deram a força!
E como não queria defraudar os meus futuros alunos (mesmo que nessa altura não fosse necessária qualquer formação) iniciei a minha especialização em ensino especial, tinha urgência de abraçar não só emocionalmente mas também cientificamente este mundo que um dia me assustou.

No ano seguinte... no ano seguinte... esperavam-me outros "meninos/jovens especiais", sem eu o saber "já estava escrito nas estrelas". Manuela Cunha Pereira

sábado, 21 de abril de 2012

De 0 a 20 ou de 20 a 0?

Eu partia do princípio que o aluno entrava na prova a valer 0 e, pouco a pouco, eu ia tentando ver o que sabia. Eu não tirava, acrescentava.

Creio que foi em 1960 que eu compreendi a diferença que havia entre classificar um aluno de 0 a 20 ou de 20 a 0. Eu explico-me.

Naquele ano, eu prestava serviço de exames num liceu do Porto e integrava um júri de provas orais do 5.º ano dos liceus. O 5.º ano que estava dividido em duas secções: a de Letras e a de Ciências. A secção de Letras tinha quatro disciplinas: Português, Francês, Inglês e História. Como a dispensa das provas orais só era possível com a média de 16 valores, a maioria dos alunos acabavam por ter de as realizar.

Ora, nessa manhã, tínhamos um caso interessante, o de um aluno que tinha dispensado em Ciências com 17 valores e que vinha à oral de Letras com 15 valores. Com uma nota fraca em Português, boas notas em línguas estrangeiras e uma classificação excecional em História: 19,6 - enfim, um 20! E era exatamente pela História que ele ia começar. O examinador, um professor de outra época à beira da reforma, antes de começar a sua interrogação, folheara a prova escrita, sorrira-se e passara-ma para a mão: 'Não foi o colega que corrigiu esta prova, pois não?' Perante a minha negativa, adiantou-se um pouco mais: 'Francamente, darem 20 valores a um aluno... Se quiser dar uma vista de olhos, talvez chegue à mesma conclusão a que eu cheguei.' Como eu era de História (embora estivesse a examinar Português), não achei estranha a sua sugestão. A prova pareceu-me impecável, pelo que não via razão para tanto espanto. Quando lhe ia dar a minha opinião, o presidente do júri chamou o dito aluno, pelo que não tive tempo de dizer o que pensava.

E começou o interrogatório: cerradíssimo, na busca dos pontos fracos do examinando. Quando lhe mandou escrever no quadro uma cronologia de reis, rainhas, príncipes e colaterais, convenci-me que estávamos perante um ato de terrorismo pedagógico... O aluno, evidentemente, ignorava alguns dos elos de linhagens tão ilustres e disse-o: 'Isso não sei, senhor doutor, nunca me ensinaram, nem encontrei nos livros por onde estudei.' O meu colega exultava: 'Ai, não sabe? Admira-me, para quem teve 20 valores...'

Foi nesse momento que eu percebi o que era um exame para esse professor (e para a maioria com os quais eu sempre contactara): um processo de inquirição, numa procura sistemática do erro. O aluno iniciava a prova em estado de graça, ou seja, a valer 20; a função do professor era ir descobrindo o que ele não sabia, a fim de ir descontando - uma espécie de expulsão do Paraíso daquele que pecou...

Com tudo isto a perturbar-me, tive de interrogar o candidato, em Português, no dia seguinte. De facto, aí, os seus conhecimentos eram diminutos, pelo que tive de o valorizar, de o reforçar, a fim de que ele se fosse aguentando na esfera das notas positivas. Quando acabei, o professor de História não se conteve: 'O colega é muito benevolente. Qualquer coisinha que ele dissesse, para si, já estava bem...' Sorri, comentei: 'Pois é, talvez seja porque não tenho a sua experiência...'. Pareceu-me hesitar na interpretação a dar às minhas palavras, mas nada mais acrescentou. Ele tinha razão: eu partia do princípio que o aluno entrava na prova a valer 0 (no caso presente, 8 valores) e, pouco a pouco, eu ia tentando ver o que sabia. Eu não tirava, acrescentava.

E não serão estes os dois modos de estar na vida, em que todos nós nos situamos? Talvez mais a 'descontar' do que a 'contar', talvez mais a 'julgar' do que a 'valorizar'. Talvez. Albano Estrela

sábado, 14 de abril de 2012

Saber aprender ...


Para os meus filhos britânicos, Camila e Feliz, que em breve terão uma menina em casa, e que sabem aprender ao estar sós, à espera do aparecimento, a minha inspiração. Uma Elisa, como a de Beethoven...

São dois verbos aparentemente contraditórios. O primeiro, parece indicar a actividade de conhecer o que se faz; o segundo, a de colocar na mente de uma pessoa ideias novas. Parecem contraditórios e, no entanto, são actividades que precisam de andar juntas. O aprender está normalmente associado a educação. No entanto, no meu entender, é um acto contínuo ao longo da vida. Pelo que podemos dizer que o conceito está associado a ir adquirindo conhecimento ao longo da vida.

Adquirir conhecimento – este também associado às primeiras ideias que nos aparecem. Primeiras ideias que se pensam ser do ABC, ou abecedário. Mais uma vez, a Escola. Mas será a Escola o sítio adequado da aprendizagem? Não será antes necessário distinguir entre as pessoas que andam perto de nós e de quem dependemos? Parece-me impossível pensar que seja o abecedário essa primeira aprendizagem. Onde ficam as emoções, os rituais, o acarinhamento, a dependência de que os mais novos, em primeiro lugar, precisam, para desenvolver essa arte de amar no decorrer da vida? Ou a aprendizagem para acabar os graus básicos, o secundário e, eventualmente, a vida académica? Não será necessário desenvolver no ser humano princípios de emotividade, ética e estética, antes de aprender a ler essas necessárias primeiras palavras?

Como a escultura de Michelangelo Buonarroti, ou Buonarotus, esculpida no século XV, por ordem de um cardeal, para a antiga Basílica de Roma. Quem vê a escultura em desenho ou em imagem fica trespassado de ver uma mãe sofrer a morte de um filho. As lágrimas correm pela cara, sem um soluço – resignação de uma mulher que sabe que um dia o seu filho deve desaparecer.

[A estátua, esculpida em mármore de Carrara, está colocada na primeira capela da coxia da direita, na Basílica de São Pedro, e mede 195 centímetros – como corresponde referir, para que o público aprenda, que é a parte mais importante deste texto. O escultor era de Florença e tinha 22 anos quando concluiu a obra].

Bem sabemos que faz parte de um crer ocidental sobre a divindade, um mito bem narrado na escultura: não precisa de palavras. O sentimento fala. Pietá não é apenas uma palavra italiana, que em Português seria piedade. É o profundo sentimento de uma mulher que dá origem a um filho e, a seguir, o perde. Não soluça, aprende a saber que a vida tem duas medidas: dar à luz (alguém aparece na vida, criado dentro do seu corpo) e saber apagar quando a luz se perde.

Buonarroti não apenas se comove, como diz a História, ao ver a sua imagem, para quem tinha perdido pai e mãe em pequeno, por ter que sair de casa para ser aprendiz de escultor, aos cinco anos, e nunca mais viu os seus familiares. Aprender é colocar numa obra o sentimento perdido.

Como o saber. Entende que as palavras falam não quando estão escritas, mas quando estão dentro da nossa afectividade e sabemos ser solidários com os outros. Michelangelo, ou Miguel Ângelo, para nós, foi-o, tanto, que nunca descansou para ensinar a saber aos outros da sua terra. Desde o seu primeiro dia, aprende o mais importante que todo o docente deve saber: a paciência, a serenidade e o esforço de definir. Durante 90 dos seus 95 anos de vida, foi capaz de entregar a sua solidariedade em textos que falam a partir da sua forma e das suas cores.

Será assim que vamos mudar o saber aprender em Portugal. Será que os mais novos vão aprender com imagens e/ou pinturas as letras necessárias para viver neste desesperado neoliberalismo que nos tem conduzido à pior crise dos últimos tempos? Quem se encarrega da educação será um novo João de Deus, um continuador de Veiga Simão? E saberá entender que se aprende a saber a partir destes textos, para que ninguém se zangue pela falta de habilitações para o magistério? Com a maior das confianças nesse elo central que é o mediador entre os que já sabem e os que estão a aprender, derivado destes textos.

Os nossos docentes combinam os textos e falam entre si, sobre os que devem ser lidos e explicados. De certeza, saber aprender começa como trabalho para o docente, a união dos progenitores perante a sua descendência, e essa descendência encontrada com a novidade das obras de arte portuguesas, que têm tantas lavras que ensinam a saber...

N.º 187, série II
Inverno 2009

sábado, 7 de abril de 2012

Se não acreditasse, não via: mudar as atitudes dos professores

A Educação Inclusiva é fundamentalmente uma reforma educacional. Uma reforma educacional que visa modificar a Escola de uma forma bastante profunda: trata-se de promover o sucesso de todos os alunos, de conhecer, respeitar e aproveitar as suas diferenças para criar ambientes mais ricos e mais contextualizados de aprendizagem. É óbvia a magnitude da tarefa. Por vezes até nos perguntamos se essa tarefa é possível…

Estamos já tão habituados ao papel legitimador, selectivo e uniformizador da Escola que até imaginar “uma escola para todos e para cada um” parece por vezes difícil. Lembro-me de uma estória que uma professora norueguesa uma vez me contou: enquanto criança ela fez a escolaridade numa remota cidadezinha onde todos os alunos iam à mesma escola (até porque não havia outra). Quando se diz todos, eram mesmo todos, incluindo os que se podiam etiquetar como “deficientes”. Quando ela foi fazer o curso para Oslo, disseram-lhe que naquela cidade havia escolas para alunos “deficientes”. Ela conta como ficou surpreendida. Mas existem escolas destas? A experiência que ela tinha vivido não lhe permitia facilmente encarar uma realidade que era incompatível com a sua vivência. A maioria de nós, que está familiarizada com a existência de “escolas especiais” pode fazer a mesma pergunta se lhe falarmos de uma escola em que todos os alunos têm lugar. Mas existem escolas destas?

A pergunta é a mesma, mas o sentido é oposto.

As atitudes, as omnipresentes “atitudes”, têm certamente muito a ver com a experiência que cada um de nós recolheu do seu percurso escolar, do que dele viveu e conheceu.

A reforma educacional inclusiva fala muitas vezes que é preciso mudar as atitudes, reconhecendo que as experiências que os actores desta reforma têm lhes dificultam o empenho em novas formas de pensar e de agir. Mas como mudar estas atitudes? Por vezes pensamos que a mudança se opera quando as pessoas são convencidas (através de uma boa bateria de argumentos) de que as suas atitudes não são as adequadas.

A este propósito, lembro-me que quando eu estava a fazer o serviço militar obrigatório, ao falar aos soldados fiz uma catilinária contra os homens que batiam nas mulheres. A companhia ouviu sem um comentário. Quando acabei e os homens começaram a sair da sala, um ficou para trás e disse-me: Meu alferes, tem toda a razão, eu também não gosto de bater na minha mulher, só uma bofetada de vez em quando… A minha tentativa de mudar atitudes através do convencimento não durou mais do que uns minutos…

Parece que a maneira segura de mudar atitudes é a de implicar os professores em ambientes e em práticas cujos resultados possam ser incompatíveis com as “velhas” atitudes. Por exemplo, se um professor for consistentemente apoiado para encarar as dificuldades de um aluno, não como sendo excepcionais, mas como sendo parte de uma continuidade de dificuldades que a classe pode apresentar, é possível que ele comece a encarar a classe de uma forma diferente, com uma atitude diferente. Mas aqui teríamos um problema da “galinha e do ovo”, isto é, como se podem criar estes ambientes e práticas se as atitudes não são as que predispõem a esta criação?

Aqui interessa certamente contar com o colectivo da escola, a chamada “comunidade de aprendizagem”, com grupos de professores que mutuamente se estimulam, reflectem e que apoiam a ousadia de quem se dispõe a fazer diferente. As atitudes deixam, assim, de ser só a causa dos comportamentos mais ou menos conservadores; passam a ser entendidas (e isto é muito importante) como a consequência das vivências que os professores tiveram. Importante, sim, porque nos permite trabalhar com as atitudes como uma entidade em permanente mutação e cuja mutação pode ser influenciada.

O trabalho para mudar atitudes é infindável. Começa desde logo na experiência que os professores têm como alunos, das experiencias que lhes são proporcionadas durante o curso de formação, nas experiências que têm enquanto profissionais, em particular nos primeiros tempos de ensino. Certamente, todas estas complexas experiências contribuem para moldar atitudes. Mas se entendermos as atitudes como consequências e não só como causas será talvez possível mobilizá-las para o lado da inovação e da reforma inclusiva.

Muitas vezes a atitude de desconfiança do apóstolo Tomé é amplamente citada como um critério de verdade: ver para crer. (Quantos enganos haveria nesta aparente certeza: “se vi é verdade!”). Na verdade, não se pode negar o impacto que uma dada evidência sensorial pode ter na mudança de formas de pensar. Mas eu gostaria de colocar uma outra perspectiva: quantas coisas nós não vemos porque não acreditamos? o que é que um sistema de valores e crenças nos faz ver (e não ver) numa dada realidade?

E assim sugeria que em lugar do estafado se não visse não acreditava passemos a dizer...

N.º 187, série II Inverno 2009

sábado, 31 de março de 2012

Será possível educar em qualquer contexto?

A pergunta é provocadora, claro, mas não a confrontar corresponde a virar as costas a um problema real como aquele com que se confronta o colectivo docente, especialmente nos países menos desenvolvidos, marcados pela existência de importantes bolsas de pobreza.

Vamos por partes. Sabemos que a educação constitui, de há muitos anos a esta parte, o investimento considerado necessário para conseguir o desenvolvimento económico e a ruptura com a reprodução intergeneracional da pobreza. Discursos, políticas e orçamentos coincidiram frequentemente na mesma direcção: mais educação para gerar as oportunidades necessárias que terminem com a injustiça, que pressupõe a imobilidade, que é consequência da origem social. Sabemos, contudo, que depois de tantos anos de discursos, políticas e orçamentos, continua a ser mais provável que uma criança pobre experimente uma trajectória educativa limitada, interrompida, ou, como muitas vezes acontece, de insucesso. Sabemos, inclusivamente, que a globalização e a desvalorização das credenciais educativas reduzem as possibilidades de mobilidade social, mesmo quando se obtêm níveis educativos superiores aos das gerações precedentes, e também observamos trajectórias educativas relativamente amplas que não se traduzem em melhorias significativas de inserção laboral e social.

Outra questão importante, porém menos explorada: por que é que o próprio processo de aprendizagem das crianças pobres está sujeito a mais obstáculos do que o de uma criança que não é pobre? Qual é a causa? Será a escola? Será a família? Serão as crianças pobres mais limitadas para aprender? Em suma, será possível educar em qualquer contexto?

A pergunta é feita por Néstor López e Juan Carlos Tedesco para chamar a atenção para a necessidade de nos interrogarmos sobre os efeitos da pobreza sobre a educação e não só sobre as virtudes da educação para erradicar a pobreza. Em cenários cada vez mais devastados pela pobreza e pela desigualdade, a pergunta torna-se fundamental. Pressupõe o alerta sobre as necessidades fundamentais da criança no plano material, afectivo, psicológico ou normativo. Pressupõe perguntar se a fome, a violência ou a ausência de afecto são factores fundamentais que podem impedir que uma criança, ainda que esteja fisicamente na escola, seja incapaz de se concentrar ou que lhe seja impossível assimilar as explicações dos professores. É legítimo perguntar, como o fazem estes autores, sobre as condições de educabilidade das crianças, isto é, sobre os factores alheios às suas capacidades individuais que limitam injustamente as suas possibilidades de aprendizagem e de sucesso escolar. Nas possíveis respostas a esta pergunta, é provável que se encontre grande parte das razões pelas quais as novas reformas e práticas educativas oferecem resultados tão pobres para modificar a educação das crianças pobres.

A ideia de educabilidade, quando aplicada aos contextos de pobreza, não deve ser entendida de modo algum como a potencial capacidade individual da criança de aprender. O conceito educabilidade, como sublinham López e Tedesco, aponta para a identificação do conjunto de recursos, aptidões ou predisposições que tornam possível que uma criança ou adolescente possa frequentar com êxito a escola, ao mesmo tempo que convida a analisar quais as condições sociais que tornam possível que todas as crianças e adolescentes acedam a esses recursos. O conceito de educabilidade como condição, expressa a ideia de um estado ou situação que possibilita alguma coisa e, portanto, indica uma disposição dinâmica e não uma determinação fixa. A educabilidade não se associa às potencialidades e capacidades individuais, se não precisamente como instrumentos necessários para possibilitar o desenvolvimento educativo. Apesar de toda a gente ser potencialmente educável, o contexto social, familiar e escolar desempenham um papel-chave no desenvolvimento ou impedimento dessa potencialidade, na medida em que influem na possibilidade de adquirir o conjunto de recursos, aptidões e predisposições necessárias para o desenvolvimento das práticas educativas. A educabilidade dos sujeitos nunca é uma propriedade exclusiva dos mesmos, mas, de algum modo, um efeito da relação entre as características subjectivas e o conjunto de mecanismos objectivos que contribuem para produzir essa subjectividade. A educabilidade não se define pela natureza do aluno, mas pelo conjunto de relações sociais, familiares, económicas e educativas em que o aluno se enquadra.

A consideração da educabilidade constitui um elemento muito valioso para analisar as relações entre educação e pobreza, dado que coloca a ênfase, precisamente, nos factores associados à pobreza que impedem o aproveitamento das oportunidades educativas. Não se pode evitar que a frequência da escola e o aproveitamento educativo impliquem o mínimo de condições materiais, afectivas e culturais que aproximem os alunos dos mínimos exigidos pela instituição escolar. E as condições de pobreza tendem a dificultar a garantia deste mínimo.

Falar de educabilidade prende-se, portanto, com a necessidade de dispor de um mínimo de condições materiais tão básicas como a possibilidade de desfrutar de alimentação, roupa e material escolar; com a necessidade de um contexto familiar que não constitua obstáculo às práticas educativas; com um contexto escolar com capacidade para aceitar diferentes ritmos de aprendizagem; com alunos que tenham interiorizado um conjunto de representações, valores e atitudes que os disponham favoravelmente para a aprendizagem escolar; com um professorado que confie nas capacidades dos seus alunos; com condições sociais que permitam às famílias ir à escola com regularidade.

Em suma, mínimos sociais, familiares e escolares para o desenvolvimento e para o potencial êxito das práticas educativas. Como diz Tedesco, “abaixo da linha de subsistência, as mudanças institucionais ou pedagógicas têm um impacto muito pouco significativo nos resultados escolares dos alunos”.

A reflexão sobre o conceito de educabilidade abre campo para que se pergunte se é possível garantir o desenvolvimento da educação em qualquer contexto social e educativo, ou por que é que um mesmo investimento educativo pode gerar impactos completamente diferentes, inclusivamente em indivíduos do mesmo contexto socioeconómico e cultural e com um nível idêntico de rendimento.

Pensar em termos das condições de educabilidade das crianças convida a pensar sobre quais os factores que podem incidir nas possibilidades de aproveitamento do investimento educativo ou sobre como interagem pobreza e educação nas práticas quotidianas dos alunos, nas suas expectativas.

A educabilidade, em suma, sugere que não se deve ignorar uma omissão que com demasiada frequência tem caracterizado a política educativa: quanta equidade social é necessária para conseguir a equidade educativa?

Em vez de questionar as potencialidades de aprendizagem das crianças ou a sua capacidade de resiliência, estudar as condições de educabilidade das crianças pobres é precisamente o que nos pode ajudar a não reduzir a interpretação da sua experiência escolar a uma reflexão sobre as suas capacidades.

Não existe heroísmo quando falamos de pobreza. A resposta à pergunta do título é, pois, não – não é possível educar em qualquer contexto, especialmente se não se faz nada para transformar o contexto.

A Página da Educação 187

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Quantos são... os alunos com dificuldades numa classe? Quantos são eles?

Tantas vezes ouvimos que “é preciso mudar as atitudes” que até poderíamos pensar que havia umas “técnicas especiais” para mudar atitudes. Seria tempo perdido. As atitudes mudam consequentemente quando a pessoa vive e reflecte sobre experiências que são incompatíveis com as representações que ela tem da realidade.

Numa reunião em que participei há pouco no Brasil, um grupo de professores levantava esta questão analisando os processos tal como se desenrolam no dia a dia das escolas. E as opiniões foram muito interessantes: dizia-se que, se um professor (vá-se lá saber porquê) identificar um grande número de alunos com dificuldades na sua sala de aula, isso acarretava consequências curiosas.

Antes de mais dava ao professor uma aura de rigor e de competência do tipo (“Este professor é muito exigente em termos de aprendizagem”). Depois, o professor marcava território no sentido em que se os resultados finais fossem maus ele poderá sempre dizer “Eu logo preveni que tinha muitos alunos com dificuldades”. Uma terceira consequência verifica-se no efeito desta identificação ao nível dos outros professores. Se um colega diz que tem muitos alunos com dificuldades, em que posição fica um colega que assinala poucos ou nenhuns alunos? Fica sem dúvida numa posição de fragilidade podendo a sua posição ser conotada com um idealista ou então mesmo de incompetente.

Diziam-me estes professores brasileiros que conheciam casos em que se verificou um “efeito de cascata”, em que começando um colega a assinalar as grandes e numerosas dificuldades dos seus alunos, os outros se sentiam na obrigação de seguir ou mesmo aumentar a parada. E este processo já tinha chegado a que se identificassem numa única sala de aula 40% (quarenta por cento) de alunos com dificuldades. (Parece aquelas conversas de idosos em que o seguinte tem uma doença sempre maior e mais dolorosa do que o anterior...)

E aqui vemos a necessidade de trabalhar em práticas que possam mudar estas atitudes. Repito: práticas que possam mudar as atitudes. Tantas vezes ouvimos que “é preciso mudar as atitudes” que até poderíamos pensar que havia umas “técnicas especiais” para mudar atitudes. Seria tempo perdido. As atitudes mudam consequentemente quando a pessoa vive e reflecte sobre experiências que são incompatíveis com as representações que ela tem da realidade.

Há tempos um professor contava-me que os alunos da sua classe ficaram bem espantados pelo facto do seu colega cego ter tido a melhor nota num teste em Língua Portuguesa. Este é o tipo de experiência que pode mudar efectivamente as atitudes destes alunos em relação ao seu colega cego. Assim em lugar de dizer “mudar atitudes” talvez devamos dizer “mudar as práticas para mudar as atitudes”.

Esta mudança de práticas é extremamente complexa. Uma determinada forma de actuar está profundamente ligada a um complexo de valores e práticas: ao mudar uma delas devemos estar conscientes que estamos a mexer uma pedra de um muro e muitas vezes não podemos nem mesmo estimar os efeitos desta mudança.

Que práticas poderiam conduzir a que as atitudes face à diferença dos alunos fossem positivas e esporádicas em lugar de negativas e generalizadas (como vimos podendo chegar a 40%)? Poderíamos talvez avançar 3 ideias.

Antes de mais a mudança da escola deve vir de dentro da escola. É a escola que deve avaliar as suas forças e vulnerabilidades e a partir dessa análise do que melhor pode fazer com as suas próprias forças estudar quais os meios que precisa para fomentar uma educação respeitadora e valorizadora dos diferentes esforços de cada um. E o que não conseguir fazer com as suas forças saber pedir o que precisa.

Depois, a avaliação deve ser mais e mais centrada nos processos e não só nos resultados. Este ano pedi aos meus alunos de Mestrado que decorassem um soneto (“Sete anos a Labão Jacó servia...”) e escrevessem numa simples folha quais as estratégias que usaram para o decorar. Foi um boa experiência sobre como os processos para atingir um fim semelhante podem ser diversos. No final a pergunta que presidiu à análise desta experiência foi: será que damos aos nossos alunos ferramentas e lhes permitimos usar estratégias para trabalhar semelhantes àquelas que nós próprios precisamos?

Por fim, saber que separar um aluno da classe por lhe termos identificado uma necessidade “especial” pode ser uma limitação que só nos permite ver os factos mais aparentes. Os professores que são mais eficazes a lidar com a diversidade trabalham no sentido de responderem a todos os alunos que podem, em qualquer momento, apresentar algum tipo de dificuldades (e são quase todos). Separar os alunos que têm dificuldades dos que não têm pode ser só um sintoma que não conseguimos identificar as dificuldades de uma grande parte dos alunos.

Quantos são, perguntávamos... São talvez todos os que podem ter dificuldades em algum momento, em alguma matéria em alguma experiência do ensino. Mas são talvez muito poucos os que por terem dificuldades precisam de meios de ensino que não podem ser usados na sala de aula e que não beneficiem da interacção, convívio e interacção dos colegas.


N.º 186, série II

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

As escolas públicas como heterotopias

Perpassa pelas nossas escolas um espectro de permanente heterotopia de crise, porque os agentes estudantis habitam essa mesma crise como um modo de vida. Se, outrora, como refere Foucault, aos indivíduos em estado de crise eram reservados lugares específicos e com uma particular codificação e simbologia, hoje, preferencialmente, serão as escolas a desempenhar tal função.

Michel Foucault estabelece uma distinção extraordinariamente heurística entre as utopias, espaços sem a possibilidade de um lugar real, e as heterotopias, lugares que estão fora de todos os lugares, mas que têm uma localização física e que funcionam, amiúde, como representação, contestação e inversão dos espaços hegemónicos; “espécie de utopias efectivamente realizadas”, “contra-colocações” [“contre-emplacements”] nas quais “todas as outras colocações que se podem encontrar no interior da cultura estão simultaneamente representadas, contestadas e invertidas, espécie de lugares que estão fora de todos os lugares, ainda que sejam efectivamente localizáveis” (Foucault, 1995: 755-756).

Impossível deixar de pensar, desde logo, nas artes pictóricas emergentes e ou marginais, como os graffitis, que invadem as superfícies dos muros e paredes interiores e exteriores da escola, com ironia, paródia, condescendência ou insurgência, nos casos em que assumem uma intencionalidade mais ou menos explícita de humor anti-institucional. Outras vezes, contra o anonimato, desenham-se indecifráveis assinaturas – para quem não as consegue ler… – de uma existência que, doravante, inscrita na paisagem, transformada em paisagem, não mais permanecerá anónima e anódina. Outras formas, ainda, lançam pontes, agonísticas ou cooperativas entre grupos e estilos de apresentação de si, celebrando ícones e mitos. Nas cadeiras, nas mesas das salas de aula e nas paredes dos quartos de banho, multiplicam-se explosões de uma sexualidade ora predatória e machista, ora experimental e hedonista, ora neo-romântica e devedora das virtudes de um amor cortês après la lettre.

Mas existem, igualmente, em numerosos exemplos, delimitações territoriais assinaladas nas paredes por inscrições que estabelecem fronteiras. Tais fronteiras, apesar de não terem existência física, possuem um real valor simbólico baseado no reconhecimento generalizado que lhes confere legitimidade. Não são, por isso, irreais. Só as atravessa quem possui um forte capital subcultural que transporta consigo o santo e a senha da passagem. Tal capital herda-se ou conquista. As fronteiras não são irreversíveis e mantêm uma certa porosidade. Tal como na análise das heterotopias efectuada por Foucault, ganha sentido um duplo sistema de abertura e fechamento, propício a determinados trânsitos.

De certa forma, os estudantes liceais estão em permanente passagem – da infância para a vida adulta, do estudo para o trabalho, dentro do lazer, marcado por consumos omnívoros, ecléticos e cumulativos, de sub género para sub género e na própria escola, transitando entre as regras formais da instituição, respeitadas apenas nas dimensões instrumentais da meritocracia gerencialista – elaborando, em cálculo de minuciosa estratégia, planos de estudo que lhes permitem obter, potencialmente, a média almejada para entrar no curso y da fileira x na Universidade z ou, então, assumindo a desistência do projecto escolar e vivendo o dia-a-dia na escola como uma margem precocemente interiorizada, uma etapa já precária de um percurso que se adivinha errático, intermitente e instável.

Não será jamais exagerado afirmar, assim o creio, que os estudantes são mesmo os prisioneiros dessa passagem, agentes em trânsito, híbridos sociais. Os vários espaços e fronteiras existentes nas escolas transmitem, precisamente, as várias ordens da interacção e a multiplicidade conflitual dos modos de relação com a instituição, quebrando o monopólio das instâncias clássicas de autoridade e manutenção da ordem.

Perpassa pelas nossas escolas um espectro de permanente heterotopia de crise, porque os agentes estudantis habitam essa mesma crise como um modo de vida. Se, outrora, como refere Foucault, aos indivíduos em estado de crise eram reservados lugares específicos e com uma particular codificação e simbologia, hoje, preferencialmente, serão as escolas a desempenhar tal função.

FOUCAULT, Michel, «Des espaces autres» in Dits et Écrits (1954-1988). Paris : Éditions Gallimard


João Teixeira Lopes

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A Importância de ensinar

Ensinar é questionar, partilhar e criar. É imaginar. Ensinar implica seleccionar tarefas que desafiem as capacidades e a inteligência dos alunos. Para que possam compreender a vida. Para que lhe possam atribuir significado. Para que usufruam da liberdade que o conhecimento proporciona. Para que se possa conhecer e compreender e ser mais livre e mais feliz.

Reunir consensos acerca do que significa ensinar nem sempre é simples porque é uma matéria que envolve valores (e.g., educacionais, morais, cívicos, políticos). Porém, há elaborações teóricas na literatura que têm merecido um significativo consenso. Os seminais e clássicos trabalhos de Nathaniel Gage, John Goodlad, Elliot Eisner e de Linda Darling-Hammond contribuíram para discernir quatro concepções sobre o ensino: a) o Ensino como Trabalho; b) o Ensino como Ofício; c) o Ensino como Profissão; e d) o Ensino como Arte.

No Ensino como Trabalho estamos perante uma visão racionalista e burocrática do processo de ensino, que parte do ingénuo princípio que as boas práticas podem ser definidas e especificadas de formas concretas, sendo apenas necessário que os professores as repliquem para que se alcancem os resultados que se desejam. O papel dos professores consiste na aplicação de orientações práticas previamente elaboradas.

No Ensino como Ofício entende-se que há um conjunto de regras, procedimentos e técnicas, mais ou menos sofisticadas, que podem ser aprendidas e desenvolvidas pelos professores. Ensinar será, nesta concepção, utilizar e aplicar adequadamente as regras e as técnicas prescritas pelas autoridades.

No Ensino como Profissão pressupõe-se que os professores possuem um sólido conjunto de conhecimentos teóricos que, aliado ao domínio de um alargado espectro de saberes-fazer, lhes permite uma atitude crítica e fundamentada sobre o currículo, o ensino e a aprendizagem e sobre as suas próprias acções pedagógicas. Reconhece-se que os professores são capazes de formular juízos profissionais e de agir em função desses mesmos juízos. São, por isso, profissionais que se desenvolvem mais autonomamente em cooperação com os seus pares e que ensinam de acordo com elevados padrões de conhecimento científico, pedagógico e de prática profissional.

Finalmente, no Ensino como Arte estamos perante uma concepção que reside muito na natureza imprevisível, não convencional e inovadora das acções de ensino e de aprendizagem. As práticas estão claramente orientadas para cada pessoa e não são estandardizadas e, por isso, o ensino é dificilmente orientado por regras ou por orientações precisas e algorítmicas. Há uma predominância de dinâmicas de sala de aula baseadas na intuição, na dramatização, na improvisação e na criatividade. Ensinar é utilizar a ciência mas não é uma ciência porque é imprevisível por natureza. Os professores mobilizam um conjunto de recursos pessoais e de conhecimentos que utilizam, de forma única, em interacção com os seus alunos.

Ensinar segundo as duas primeiras concepções tenderá a remeter os professores para o papel de meros executantes passivos, burocráticos, tecnicistas e funcionalistas do currículo. Ou seja, os professores dizem o currículo em vez de permanentemente o reinventarem e reconstruírem com os seus pares e com os seus alunos. Recorrem a técnicas e procedimentos mais ou menos mecanizados, mais ou menos pré-elaborados, mantendo os alunos ocupados na realização de tarefas marcadamente rotineiras. Tarefas que, como um dia nos escreveu Sebastião e Silva a propósito do ensino da Matemática, consistem em exercícios estapafúrdios equivalentes, no ensino das línguas, à retroversão de frases tais como: As sobrinhas dos capitães brincavam no jardim com as netas dos juízes...

Se, por outro lado, o processo de ensinar for encarado como uma profissão ou como uma arte, estaremos perante profissionais que se assumem como intelectuais, como investigadores das suas próprias práticas, capazes de reflectir sobre o que fazem e de participar activamente no desenvolvimento do currículo.

Assim, ensinar é questionar, partilhar e criar. É imaginar. É pensar o currículo como oportunidade única para que os alunos mergulhem a fundo nessa inesgotável fonte de inspiração que é a vida nas suas múltiplas dimensões. Ensinar implica seleccionar tarefas que desafiem as capacidades e a inteligência dos alunos. Para que possam compreender a vida. Para que lhe possam atribuir significado. Para que usufruam da liberdade que o conhecimento proporciona.

Ensinar é, assim, um processo complexo e exigente de mobilização sistemática e propositada de uma diversidade de saberes dos professores. É importante. Para que se possa conhecer e compreender e ser mais livre e mais feliz.


Domingos Fernandes

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Escola, Esquerda e Educação

Para a esquerda política é inaceitável, do ponto de vista dos princípios, que a Escola se afirme como um espaço de reprodução das desigualdades. Daí a exigência de se desenvolverem projectos de gestão democrática nas escolas e de se construírem colectivos docentes suficientemente solidários para possibilitarem a participação dos professores de forma reflectida e interessada.

No dia a dia em que vivemos, ao longo dos debates em que participamos, há algumas ideias que os atravessam de forma sólida e subliminar. Uma das mais interessantes tem a ver com a crença de que não é por falta de propostas que a escola pública se afirma como uma instituição que respeita uma lógica de funcionamento mais democrático, mas por falta de vontade política para concretizar essas mesmas propostas.

Tratando-se de uma perspectiva que não podendo ser desvalorizada no seio do debate em questão, não permite, contudo, que possamos afirmar, no âmbito de um tal projecto, que não nos defrontamos, também, com a ausência de respostas e de soluções credíveis. Ausência esta que justifica, por isso, que defendamos ser necessário promover reflexões e pesquisas consequentes, em função das quais possamos enfrentar, sem ambiguidades e sem subterfúgios, problemas como aqueles que, entre outros, se relacionam: (i) com a construção de projectos educacionais que não façam do combate à exclusão escolar o pretexto que, afinal, legitima essa mesma exclusão, quando se limitam a propor respostas que hierarquizam, do ponto de vista do seu valor formativo, os percursos escolares dos seus alunos, sem pôr em causa ou discutir, por exemplo, a relação entre esses percursos e a origem sócio-económica dos discentes; (ii) com a mobilização e o envolvimento dos professores num projecto deste tipo; (iii) com o desenvolvimento de projectos de gestão democrática ou (iv) com a construção de colectivos docentes que funcionem de uma forma colegial e tão esclarecida quanto possível. Só reconhecendo que não estamos, apenas, perante um problema de falta de vontade política, mas também perante a inexistência de projectos e de meios que permitam sustentar essa vontade é que poderemos discutir seriamente esses (e outros) problemas que foram por nós atrás referidos.

Trata-se de um desafio que, importa afirmar, decorre do património de preocupações que caracteriza a esquerda política, na medida em que para aqueles que se situam noutros domínios do espectro político esse é um desafio que lhes é estranho. Para estes, a hierarquização dos percursos escolares é inevitável, logo não faz sentido discutir se os professores terão que ser mobilizados para se envolverem em projectos educacionais que recusem e contrariem essa hierarquização. Para estes, igualmente, o desenvolvimento de projectos de gestão democrática e a subsequente preocupação com a construção de colectivos docentes que funcionem de uma forma colegial é uma reivindicação contra-natura, dado que, na sua opinião, a eficiência não se compadece com igualitarismos que contribuem para o funcionamento medíocre das instituições públicas.

Ao contrário, para a esquerda política é inaceitável, do ponto de vista dos princípios, que a Escola se afirme como um espaço de reprodução das desigualdades, assim como é inaceitável que os professores definam a sua intervenção como profissionais em função de um tal pressuposto. Neste sentido, importa reconhecer que o problema que se coloca àqueles que se situam à esquerda é, certamente, um problema que resulta de um desafio mais ambicioso e complexo. Um desafio que decorre de um imperativo ético e não tanto da resposta, por exemplo, a uma necessidade de maior conforto profissional. Daí a exigência de se desenvolverem projectos de gestão democrática nas escolas e de se construírem colectivos docentes suficientemente solidários para possibilitarem a participação dos professores nesses projectos de forma reflectida e interessada.

Se, hoje, um tal projecto nos conduz a produzir um discurso de carácter utópico, isto só pode querer dizer que há um percurso difícil a fazer. Um percurso que nos obriga a uma reflexão sobre os seus azimutes e o modo de o realizar. Um percurso cujas dificuldades e armadilhas se afirmam, actualmente, de forma mais explícita, após uma legislatura em que um governo que reivindica a sua pertença ao campo da esquerda, e com o apoio de uma maioria absoluta no Parlamento, nos mostrou como a fragilidade de alguns dos conceitos que alicerçam o projecto de uma Escola Pública, subordinada a uma racionalidade político-pedagógica de inspiração democrática, podem constituir não só um obstáculo à afirmação de um tal projecto, como um meio estratégico através do qual se promove a ilusão de que esse projecto foi ou está em vias de ser construído.

Daí a necessidade de, numa agenda de reflexão a promover pelas organizações que se situam no espaço da esquerda política, nos tenhamos de debruçar sobre esses conceitos, de forma a revisitá-los e a interpelá-los como objectos teóricos vulneráveis e, nalguns casos, desgastados e gastos. Um exercício que está longe de ser uma operação confortável ou isenta de riscos e de equívocos. Mais do que de um discurso radical, necessitamos de uma reflexão radical que sustente um programa político no domínio da educação capaz de alicerçar um projecto, a longo prazo, consequente e, sobretudo, congruente. Não é uma tarefa fácil. É uma tarefa necessária.

Ariana Cosme
Rui Trindade

sábado, 15 de outubro de 2011

A fortuna é de quem a agarrar!

À agenda global hegemónica no campo da educação deverá contrapor-se uma outra assente na palavra-chave da coesão social, o que implicará uma preocupação dominante com a equidade, a inclusão educativa e a celebração de boas práticas.

Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia em 2001 e antigo economista-chefe do Banco Mundial, escreveu que a crise financeira mundial de 2008 representou “para o fundamentalismo do mercado o que a queda do Muro de Berlim representou para o comunismo”1. Essa crise, associada à histórica eleição de Barack H. Obama para Presidente dos EUA, vem acentuar a convicção de que vivemos um tempo de transição que importa transformar em oportunidade.

A globalização neoliberal, hegemónica desde os anos 1980, assentou na velha ideia de que os governos, todos os governos, deviam deixar livre o caminho às grandes e eficientes empresas nos seus esforços para competir no mercado mundial. Essa velha ideia, ciclicamente na moda, conduziu, segundo Wallerstein (2008), a três ordens de implicações políticas: a primeira, é que (todos) os governos deviam permitir que as corporações tivessem toda a liberdade para atravessar fronteiras com os seus bens e os seus capitais; a segunda, é que (todos) os governos deviam renunciar a qualquer propriedade de meios de produção, privatizando as empresas públicas e criando mercados em sectores onde não existissem (saúde, educação, água); a terceira, (todos) os governos deviam minimizar, se não mesmo eliminar, toda a espécie de bem-estar social assente na redistribuição de rendimentos, desmantelando o Estado Providência.

Nesses anos de 1980, essas velhas ideias da globalização neoliberal foram apresentadas como contraponto às também velhas ideias Keynesianas e socialistas, que prevaleciam em muitos países em diferentes espaços do sistema mundial: que as economias deviam ser mistas, podendo o Estado manter sob o seu controlo empresas e actividades consideradas estratégicas; que os governos deviam proteger os seus cidadãos da depredação das grandes corporações estrangeiras, funcionando em regime de monopólio ou quase-monopólio; que os governos deviam tentar equalizar as oportunidades de uma vida digna, transferindo benefícios para os menos favorecidos (especialmente em educação, saúde e segurança social na velhice), o que requeria uma política de impostos fortemente regressiva, penalizando os maiores rendimentos e os lucros das corporações empresariais (Wallerstein, 2008).

A ofensiva neoliberal verificou-se após as crises económicas dos anos 1970, com problemas graves na balança de pagamentos de muitos países, especialmente do Sul e dos chamados países socialistas, e a diminuição acentuada dos lucros das grandes empresas no Norte. O consenso de Washington, construído sob a direcção e impulso dos governos de Reagan e Thatcher e a activa participação das duas principais agências financeiras intergovernamentais – Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, representa o conjunto de receitas recomendadas (ou impostas) para todos os países, independentemente do seu estádio de desenvolvimento ou localização no sistema mundial. A crise financeira de 2008, antecedida de múltiplos sinais que apontavam já para a necessidade de um pós-consenso de Washington, veio desocultar os resultados desastrosos para as condições de vida dos mais desfavorecidos (países, regiões, classes e grupos sociais marginalizados) desse ciclo hegemonizado pelo neoliberalismo e a sua forma dominante de globalização.

Mas a globalização neoliberal tem sido confrontada com uma outra forma de globalização, alternativa e solidária, construída a “partir de baixo” (Santos, 2005, 2006). Essa outra globalização contra-hegemónica, desenvolvida de modo mais evidente a partir do levantamento de Chiapas, dos protestos contra os acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a guerra do Iraque, e do surgimento de movimentos sociais e de organizações da sociedade civil que lutam contra as consequências da degradação ambiental e da exploração económica gerada pela globalização neoliberal, tem no Fórum Social Mundial (FSM) o seu espaço emblemático, onde, segundo a tese defendida por Boaventura de Sousa Santos, se têm construído as condições políticas do “surgimento de uma legalidade cosmopolita e insurgente” e se pode estar a gerar uma outra “matriz da governação” (Santos, 2006: 384).

Sendo ainda muito cedo para se determinar o sentido das mudanças geradas pela crise financeira de 2008, alguns sinais emergem, contudo, com suficiente nitidez para poderem ser apontados. O primeiro, é a confirmação do declínio dos EUA como potência mundial e a consagração de outros países e regiões como actores mundiais; o segundo, é o anacronismo do consenso de Washington e a total perda de autoridade do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial para impor políticas de ajustamento aos países do Sul; a terceira, é a emergência e consolidação de novos regionalismos, na América do Sul, em África e na Ásia; o quarto, é o regresso do Estado como actor de primeiro plano na resolução dos problemas económicos e financeiros.

Esses sinais implicarão mudanças na estratégia dos actores da globalização cosmopolita, que têm no Fórum Social Mundial o seu espaço de convergência mais relevante, e que incluirão, muito provavelmente, a afirmação de uma maior centralidade das lutas nacionais e regionais, uma redefinição das relações com os partidos ligados historicamente à emancipação social, a consagração da luta pela “refundação democrática dos Estados” como uma prioridade, ou a definição de políticas de alianças capazes de construir novos blocos sociais favoráveis a uma solidariedade cosmopolita (Habermas, 2001).

O neoliberalismo não se delimita à actividade económica. Atinge todos os sectores da vida humana e assumiu-se como uma tecnologia de governo. Na educação significou uma mudança radical de prioridades na agenda política: o ideal social-democrata da igualdade de oportunidades, que esteve na base da fortíssima expansão educativa do pós-segunda guerra, foi substituído por um vago conceito de qualidade, ponto de partida da trilogia reformadora das últimas duas décadas – competitividade, accountability e performatividade.

As políticas de educação, sobretudo depois dos anos 1990, foram incluídas como uma questão central da agenda da globalização neoliberal: a consideração do conhecimento como uma commodity transacionável relegou para segundo plano os factores potenciais de emancipação e de mobilidade social inerentes ao acto educativo e ao projecto de uma educação para todos. Muito provavelmente, à agenda global hegemónica no campo da educação imposta a partir desse conceito de qualidade se deva contrapor uma outra assente na palavra-chave da coesão social, o que implicará uma preocupação dominante com a equidade, a inclusão educativa e a celebração de boas práticas.

Tal como nos anos 1970, estamos a viver momentos de bifurcação, onde a intervenção cidadã, nos seus diferentes espaços, da ciência à intervenção política, se apresenta como particularmente determinante. Mas, também aqui, no espaço da educação, a fortuna é de quem a agarrar.

Referências:

Habermas, J. (2001). The Postnational Constellation. Political Essays. Cambridge, MA: The MIT Press.
Santos, B. de S. (2005). O Fórum Social Mundial. Manual de uso. Porto: Edições Afrontamento.
Santos, B. de S. (2006). A Gramática do Tempo. Por uma nova cultura política. Porto: Afrontamento.
Wallerstein, I. (2008). 2008: The Demise of Neoliberal Globalization. Commentary No. 226, Feb. 1, 2008. Disponível em http://www.binghamton.edu/fbc/226en.htm, em 17.11.2008.

António Teodoro

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Formação inicial de professores a interculturalidade em contexto de estágio

O alargamento temporal da formação para 5 anos, incluindo um mestrado, desafia a exigência e amplia as condições para a realização de formações reflexivamente fundamentadas, em domínios estruturantes das competências docentes

O tema da interculturalidade e da educação e diversidade tem sido, com regularidade, objecto de artigos de diversos colaboradores de A Página. Este texto mantém essa regularidade. Visa contribuir para a (re)contextualização do tema enquanto conteúdo do novo modelo (3+2 anos) da formação inicial de professores e educadores (FIPE). Apesar da inadequação de alguns aspectos da estrutura proposta, o alargamento temporal da formação para 5 anos, incluindo um mestrado, desafia a exigência e amplia as condições para a realização de formações reflexivamente fundamentadas, em domínios estruturantes das competências docentes. A preparação para o trabalho em contextos escolares caracterizados pela diversidade é, seguramente, um desses domínios. A FIPE é a etapa estruturante de concepções coerentes e pluralistas para a gestão do currículo pelos futuros docentes. A fundamentação teórica e reflexiva de práticas, em contexto de estágio, envolvendo a diversidade dos alunos, é condição para a consolidação de tais concepções. Não tem sido, no entanto, uma dimensão particularmente considerada na organização, na dinâmica e na supervisão dos estágios. Por razões sociologicamente explicadas, tem prevalecido alguma desvalorização ou ocultação de situações de natureza intercultural e racial, vividas ou observadas pelos estudantes. E, como referi no número de Verão de 2009 de A Página, tem sido frágil o protagonismo da investigação como prática ou como explicitação do observado e do realizado nos estágios. Independentemente da modalidade adoptada para o trabalho final – dissertação, trabalho de projecto ou estágio com os respectivos relatórios - a investigação, enquanto atitude e prática, deve constituir um elemento distintivo do 2º ciclo/mestrado. As decisões, as práticas, as situações e as interacções, vividas pelo formando em tempo de prática, e o desejo de antecipar bons desempenho como docente, acentua a sua disponibilidade e sensibilidade para questões que possam melhorar aquele desempenho no futuro. Assim o supervisor o oriente para o aprofundamento da relevância do que vive e do que observa no contexto do estágio!

Seja qual for a modalidade do trabalho final no 2º ciclo da FIPE (dissertação, trabalho de projecto ou estágio), as intervenções educativas proporcionam, de diversos modos, oportunidades formativas e a emergência de temas e processos, no domínio da educação e diversidade, que podem fundamentar trabalhos finais com níveis esperados num mestrado. Entre esses temas podem referir-se: a permeação do projecto curricular com a dimensão intercultural ajustando-o à diversidade dos alunos, contrariando assim práticas educativas monoculturais; a identificação e o aprofundamento, de acordo com metodologias de investigação, de questões/problemáticas interculturais; o desenvolvimento de trabalhos centrados no ethos escolar, na caracterização da classe, da escola e da comunidade em termos culturais, étnicos e sociais. Ao nível da sala de aula, são diversos os domínios, com relevância intercultural, geradores de questões para trabalhos mais aprofundados: interacções interculturais, constituição e funcionamento dos grupos, lideranças, culturas na sala de aulas (na gestão e realização do currículo, nas interacções), discursos, materiais, adequação curricular, etc.

A constituição, com maior ou menor institucionalização, na escola de formação, de linhas de investigação – por exemplo: educação e diversidade - alimentadas pelos trabalhos dos estudantes, ajudaria a consolidar práticas, percursos e culturas de exigência na FIPE.

Carlos Cardoso