Durante décadas pensou-se que o Australopithecus afarensis, a espécie a que pertence a famosa Lucy, da África austral, era o único hominídeo no período entre 3,9 e 2,9 milhões. Afinal não era. Lado a lado, há 3,4 milhões de anos, havia outro hominídeo de que se sabe muito pouco. Apenas oito ossos do pé direito de um indivíduo desta espécie foram encontrados em 2009.
Tinha, tal como os gorilas, o dedo grande oponível, eficaz para quem trepava às árvores, mas era bípede como Lucy e caminhava com os dois pés a distâncias curtas. A descoberta, publicada nesta quarta-feira na Nature, ainda não valeu a junção de um elemento novo à árvore evolutiva dos hominídeos: são necessários mais dados, mas, para já, aumentou a complexidade da história humana e do aparecimento do bipedismo.
“Esta descoberta mostra-nos pela primeira vez que existia uma outra linhagem de hominídeos contemporâneos da Lucy. Temos um animal que estaria nas árvores durante uma parte significativa do tempo, mas quando descia até ao chão apoiar-se-ia nos metatarsos [ossos dos pés] laterais. Isto contrasta com o Australopithecus afarensis, que não subia às árvores e mostra as diferenças entre os dois padrões de locomoção”, explica Bruce Latimer, da Case Western Reserve University, de Cleveland, EUA. “Honestamente, pensaria que o Australopithecus afarensis era uma espécie sozinha”, diz o especialista, um dos autores do artigo.
Os oito ossos com 3,4 milhões de anos foram encontrados em Fevereiro de 2009, região de Afar, no centro da Etiópia. São quatro metatarsos do pé direito (os ossos que vêm antes de cada falange), três falanges proximais e uma falange média. A descoberta está longe de dar uma visão completa do hominídeo desconhecido como fez o esqueleto da Lucy, descoberto em 1974, em relação ao Australopithecus afarensis. Ou como aconteceu com a Ardi, encontrada em 1994 mas apresentada ao mundo só em 2009. Considerada por muitos a avó da humanidade, a Ardi, um homínideo mais velho do que a Lucy, viveu há 4,4 milhões de anos e pertence à espécie Ardipithecus ramidus.
“Os primeiros hominíneos [o ramo humano da evolução] são caracterizados por uma grande diversidade que se reflecte nos vários géneros e nas muitas espécies existentes entre 7 e 2,5 milhões de anos. A passagem para o bipedismo terá sido gradual e em função das características ambientais e, consequentemente, hábitos dietéticos”, explica Eugénia Cunha, antropóloga e professora da Universidade de Coimbra, que não esteve envolvida no trabalho.
A Ardi é importante para esta história, porque existiu um milhão de anos antes do dono do novo fóssil, na Etiópia, e os ossos do dedo grande mostram que ele era oponível, de quem vivia nas árvores. Mas o resto do pé indica que mantinha um caminhar a duas pernas, embora com um estilo mais coxo do que os hominídeos que surgiram depois. A espécie da Lucy, por exemplo, já tinha os ossos do dedo grande a acompanhar os dos outros dedos do pé, tal como o pé humano actual. Um sinal claro de uma espécie que fazia a vida no chão.
O novo fóssil tinha características intermédias. “Este pé parece ser uma continuação/evolução do género Ardipithecus de há 4,4 milhões de anos. Nesse aspecto é interessante verificar que esse género poderá ter tido continuidade”, avalia a investigadora portuguesa. Caminhava de forma bípede, porque a ligação entre os metatarsos laterais e as falanges tinha as características que permitiam dar o impulso com os dedos dos pés para iniciar o próximo passo. Mas não tinha o arco do pé, porque o dedo grande era oponível. “Provavelmente usava o dedo grande para se equilibrar”, sugeriu Bruce Latimer, numa conferência de imprensa. “Tenho dificuldade em pensar como é que esta espécie caminharia”, admite, rindo-se.
A descoberta reforça, no entanto, o que a Ardi já tinha mostrado. O antepassado de chimpanzés, gorilas e humanos (e tudo o que existiu entre estas espécies), um ser muito mais antigo do que Ardi, que viveu há cerca de dez milhões de anos, não teria um aspecto parecido com os primatas de hoje, como se pensou durante décadas. O gorila e o chimpanzé divergiram tanto desse antepassado como nós. “O pé do chimpanzé é um modelo impróprio e pobre para o que seria o pé ancestral humano. É muito diferenciado, e agora podemos ver isto”, reflecte Latimer. Faltam mais fósseis do esqueleto deste hominídeo para os cientistas conseguirem dizer que é uma nova espécie e para se conhecer os seus hábitos alimentares. “Este pé não é necessariamente uma nova espécie. A história da paleontologia humana diz-nos que devemos ser prudentes relativamente à criação de novas espécies. Os autores são cautelosos a esse respeito”, contextualiza Eugénia Cunha, explicando que pode ser uma “continuidade do Ardipithecus”.
Mas o contexto geológico responde a muitas questões sobre que local era aquele há 3,4 milhões de anos. “Era um ambiente aquático, os rios desaguavam numa massa de água perene, haveria floresta à beira da água, o que é consistente com o registo fóssil de uma criatura que trepava às árvores”, descreve Beverly Saylor, outra autora do artigo.
Estes dados sobre o ambiente são importantes. O registo fóssil da espécie da Lucy estende-se ao longo de um milhão de anos. Além de se sobrepor temporalmente à nova descoberta, muitos achados estão a poucos quilómetros de distância do fóssil do pé. Por isso, existiam duas espécies a servirem-se de nichos ecológicos diferentes na mesma região. Uma ficava em cima das árvores, a outra, por contraste, optou pelo chão. “Temos tipos divergentes de bipedismo, um como o da Lucy, a andar de forma erecta, decidida a caminhar no chão”, interpreta Latimer. O outro a ficar nas árvores.
Uma conclusão imediata é que, afinal, a variedade de hominídeos foi maior, assim como as suas morfologias e adaptações ao ambiente. Num artigo de análise da Nature, Daniel Liberman, da Universidade de Harvard, refere que “são necessários mais fósseis para determinar qual o corpo que acompanha este pé e para perceber que características [do bipedismo] evoluíram uma só vez ou várias vezes”. É preciso voltar ao terreno à procura das próximas ossadas.
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