Artigo põe em causa ensaio do célebre especialista em evolução norte-americano sobre como preconceitos afectam a ciência.
Stephen Jay Gould, o famoso cientista que se distinguiu tanto pelo estudo da evolução como pela sua defesa frente aos ataques da direita fundamentalista americana, terá sido vítima dos preconceitos que ele próprio denunciou num célebre artigo na Science e num ainda mais célebre ensaio, no livro A Falsa Medida do Homem (Quasi).
Tudo isto tem a ver com um cientista do século XIX, Samuel Morton, que reuniu uma colecção única de 1000 crânios, a inteligência e o racismo. E, claro, a integridade científica.
Gould, que morreu em 2002, questionou a integridade científica de Morton, acusando-o de ter, subtilmente - inconscientemente -, manipulado as medições que fez da capacidade craniana dos homens brancos para demonstrar que estes seriam os mais inteligentes. Isto para demonstrar que a raça branca - e o seu expoente, o homem branco - era a superior. A seguir vinham os asiáticos, os índios americanos e, no fim, os africanos.
Na altura em que Morton fez as suas experiências (a década de 1830, ainda antes da publicação de A Origem das Espécies por Charles Darwin, em 1859), quem era contra a abolição da escravatura defendia que a Humanidade não era una, mas antes que cada raça tinha sido criada em momentos distintos por Deus.
Mas um artigo publicado este mês na revista científica Public Library of Science - Biology (PLOS), acaba por pôr também em causa a integridade científica de Stephen Jay Gould - não preto no branco, mas é o que se pode aferir das conclusões dos cientistas que reconstituíram as experiências de Morton e chegaram à conclusão de que ele não terá manipulado, nem inconscientemente, as suas medições da capacidade craniana, feitas com sementes de mostarda, como dizia Gould.
E, pelo contrário, encontram indícios de que Gould é que terá sido vítima dos seus preconceitos - ou desejo de demonstrar como o racismo não tem bases científicas -, o que o levou a tratar os dados de uma forma discutível. Não o acusam de fraude no artigo, mas em entrevistas dadas a propósito do seu trabalho alguns membros da equipa têm cruzado essa linha vermelha.
Morton, um médico de Filadélfia, como bom cientista, tentou substituir a especulação por factos e medições, usando a sua colecção impressionante de crânios, representando todos os grupos raciais humanos. Mas, de acordo com a crítica de Gould - que foi ao mesmo tempo biólogo, paleontólogo, historiador das ciências, ensaísta e divulgador de ciência e pensador sobre a teoria da evolução -, o trabalho de Morton é exemplar para ilustrar como "artimanhas inconscientes ou mal percebidas são provavelmente endémicas na ciência, pois os cientistas são seres humanos enraizados em contextos culturais, não autómatos que se dirigem para verdades externas", escreveu na Science, em 1978.
Gould tornou-se uma figura pública com uma enorme projecção - uma espécie de Carl Sagan para a evolução, embora tivesse algumas ideias polémicas. Mas, em termos de grande público, tornou-se uma figura incontornável, nos Estados Unidos e não só. Dele esperava-se um juízo acertado.
Mas o que a equipa coordenada por Ralph Holloway diz é que Gould, que nunca foi ele próprio repetir as medições de Morton, apenas analisou as suas notas em papel, estava errado quando afirmou que Morton foi influenciado subconscientemente pelos seus preconceitos raciais (compactando as sementes de mostarda nos crânios dos homens brancos, para caberem mais). A equipa voltou a medir 308 dos 670 crânios estudados por Morton, guardados no Museu de Arqueologia e Antropologia da Universidade da Pensilvânia em Filadélfia, e não encontrou nenhum desvio estatístico significativo na direcção apontada por Gould. Na verdade, as únicas excepções foram sete crânios, e três deles até sobreestimavam a capacidade de três crânios egípcios. "Estes resultados tornam falsa a afirmação de que Morton mediu mal os crânios com base nos seus preconceitos", escreve a equipa na PLOS de 7 de Junho.Gould acusa ainda Morton de ter usado vários subterfúgios, como ter dividido os dados em subgrupos e ter amalgamado outras populações e não ter fornecido dados sobre isso. A equipa descobriu que Gould fez algo semelhante, relativamente aos crânios de nativos americanos: excluiu 34 de uma amostra de 144. Se forem usados os dados todos, com o método de cálculo usado por Gould, escreve a equipa, a média das dimensões cranianas da população de nativos americanos é ligeiramente menor do que usando o método de Morton.
"Estes elementos do trabalho de Gould são surpreendentes", disse ao jornal The New York Times Jason Lewis, da Universidade de Stanford (EUA), o principal autor do trabalho agora publicado. "Não consigo dizer se foram deliberados." No artigo, a equipa escreve: "Ironicamente, a própria análise do trabalho de Morton é provavelmente o melhor exemplo de como um preconceito influencia resultados."
Não é a primeira vez que o trabalho de Stephen Jay Gould sobre Morton é posto em causa. John S. Michael, um estudante universitário da Universidade da Pensilvânia, publicou um estudo em 1988, em que concluía que os resultados de Morton eram "razoavelmente precisos". A sua crítica não vingou: "Não é inteiramente evidente que se deva preferir as medições de um estudante às de um paleontólogo profissional", escreveu o filósofo da ciência Philip Kitcher, da Universidade de Colúmbia (Nova Iorque), recorda o New York Times.
Hoje, Philip Kitcher diz que Gould provavelmente se defenderia com brilho. "Ele não sai disto como um mau carácter, mas como alguém que comete erros." Ian Tattersall, conservador do Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, que conheceu Gould, também não duvida de que ele "teria uma resposta pronta". Mas sublinha que Stephen Jay Gould provou mesmo aquilo que queria demonstrar: que a ciência é susceptível a preconceitos inconscientes.
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