sábado, 27 de abril de 2019

Dicionário Voltaire - Apis


Era o boi Apis adorado em Menfis como deus, como símbolo ou como boi? É de crer que os fanáticos nele vissem um deus, os cultos mero símbolo e que o vulgo ignorante adorasse o boi. Terá Cambises feito bem, quando conquistou o Egito, em matar esse boi com as próprias mãos? Por que não? Com isso fez ver aos imbecis que se podia passar seu deus à faca sem que a natureza se armasse para vingar o sacrilégio.
Incensaram-se muito os egípcios. Não sei de povo mais desprezível. Encarrapatou-se-lhes sempre no caráter e no governo um vício radical que os fez um povo de eternos e vis escravos. Que tenham, em épocas imemoriais, conquistado a terra. Na clareira dos tempos históricos, porém, avassalaram-nos quantos povos quiseram dar-se ao trabalho — assírios, persas, gregos, romanos, árabes, mamelucos, turcos, enfim, toda gente, salvo os cruzados, que não lhes conheciam a fraqueza. Foi a milícia dos mamelucos que venceu os franceses. Não há talvez mais que duas coisas sofríveis nessa nação: primeiro, que adorando um boi nunca constrangeram quem adorasse um macaco a mudar de religião; segundo, terem inventado a chocadeira artificial.

Gabam-se-lhes as pirâmides. Mas as pirâmides são monumentos de um povo de escravos. Foi preciso pôr de baixo de canga toda uma nação, sem o que essas vis massas não teriam sido levantadas. Que finalidade tinham? Conservar em uma pequena câmara a múmia de algum príncipe, de algum governador, de um intendente qualquer, porque ao cabo de mil anos sua alma devia reanimá-la. Mas se esperavam a ressurreição dos corpos, por que lhes extraiam os miolos antes de embalsamá-los? Será que os egípcios deviam ressuscitar sem cérebro?

Dicionário Filosófico (1764)* Voltaire (1694-1778)
Edição Ridendo Castigat Mores
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