terça-feira, 23 de abril de 2019

Dicionário Voltaire - Alma


Seria maravilhoso ver a própria alma. Conhece-te a ti mesmo(1) é excelente preceito, mas só a Deus é dado pô-lo em prática. Quem mais pode conhecer a própria essência?
Alma chamamos ao que anima. É tudo o que dela sabemos: a inteligência humana tem limites. Três quartos do gênero humano não vão alêm, nem se preocupam com o ser pensante. O outro quarto indaga. Ninguém obteve nem obterá resposta.

Pobre filósofo! Vês uma planta que vegeta, e dizes vegetação, ou alma vegetativa. Notas que os corpos têm e comunicam movimento, e dizes força. Vês teu cão de caça aprender contigo teu ofício, e crias instinto, alma sensitiva. Tens idéias combinadas, e dizes espírito.
Mas que entendes tu por estas palavras? Aquela flor vegeta. Existirá porém um ser material — vegetação? Aquele corpo impele outro. Porém encerra ele em si um ente distinto — força? Aquele cão traz-te uma perdiz. Existirá porém um ser chamado instinto? Não te ririas de um raciocinador (teria sido preceptor de Alexandre) que te dissesse Todos os animais vivem; logo, encerram uma forma substancial — a vida?

Se uma tulipa pudesse falar e  dissesse: Minha vegetação e eu somos dois seres juntos formando um só, não te ririas da tulipa?
Vejamos primeiro o que sabes, e do que estás certo. Que andas com os pés. Que digeres com o estômago. Que sentes com todo o corpo. Que pensas com a cabeça.

Pois bem. Pode a tua razão só por só dar-te luzes suficientes para concluíres, sem um recurso sobrenatural, que tens uma alma?
Os primeiros filósofos, quer caldeus, quer egípcios, disseram: Forçoso é haver em nós algo que produza o pensamento; esse algo deve ser extremamente sutil: sopro, fogo, éter, substrato, um tênue simulacro, uma  enteléquia,  um número, uma harmonia. Finalmente, segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do outro. São átomos que pensam em nós, disse Epicuro depois de Demócrito. Mas, meu amigo, como pensa o átomo? Confessa que nem o imaginas.
Aceita-se seja a alma um ser imaterial. Mas vós não concebeis o que seja esse ente imaterial.
Não, — respondem os sábios — porém conhecemos sua natureza: pensar.
Como o sabeis?
Porque ela pensa.
Oh sábios! Muito receio que sejais tão ignorantes quanto Epicuro. A natureza de uma pedra é cair porque ela cai. Pergunto-vos: que a faz cair?
Sabemos que uma pedra não tem alma.
De acordo.
Sabemos que uma negação, uma afirmação não são divisíveis, não são partes da matéria.
Da mesma opinião. Mas a matéria, que aliás desconhecemos, tem qualidades não materiais, não divisíveis. Possui gravitação para um centro, que Deus lhe deu. Essa gravitação não é formada de partes, não é divisível. A força motriz dos corpos não é ente composto de partes. A vegetação dos corpos organizados, sua vida, seu instinto, não são seres à parte, seres divisíveis. Não podeis cortar em duas a vegetação de uma rosa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, da mesma forma como não podeis cindir em duas uma sensação, uma negação, uma afirmação. Portanto vosso grande argumento inferido da indivisibilidade do pensamento abso- lutamente nada prova.

Que chamais então vossa alma? Que idéia tendes dela? Por vós mesmos, sem revelação, não podeis admitir em vós senão um poder de vós desconhecido de sentir, de pensar.
Agora dizei-me sinceramente: é esse poder de sentir e pensar o mesmo que vos faz digerir e andar? Confessais que não. Porque debalde ordenaria vosso entendimento a vosso estômago doente: Digere! Ele não digeriria. Debalde vosso ser imaterial intimaria a vossos pés gotosos: Caminhem! Eles não caminhariam.

Com razão observaram os gregos não ter o pensamento quase nenhuma influência no funcionamento dos órgãos. Admitiam para os órgãos uma alma animal. Para o pensamento uma alma mais tênue, mais sutil: um nous.
Mas eis a alma do pensamento que em milhares de ocasiões governa a alma animal. Ordena a alma pensante às mães que apreendam: as mãos apreendem. Porém não pode ordenar ao coração que bata. Ao sangue que circule. Que se forme o quilo. Tudo isso se faz independentemente dela. Aí estão as vossas duas almas metidas em maus lençóis e feitas péssimas donas de casa.
Claro que a primeira alma não existe. Não passa do movimento dos órgãos. Em guarda, homem! Tua fraca razão não é capaz de provar a existência da outra também. Não podes concebê- la senão pela fé. Tu Nasces. Vives. Ages. Pensas. Velas. Dormes. Sem saber como. Deus conferiu-te a faculdade de pensar como tudo o mais. E se não viesse ensinar-te nas idades assinaladas pela sua providência que tens uma alma imaterial e imortal, dela não terias prova alguma.

Relanceemos os interessantes sistemas arquitetados pela tua filosofia em torno dessas almas.
Um diz que a alma humana é parte da substância do próprio Deus. Outro que é parte do todo infinito. Terceiro que foi criada ab eterno. Quarto que foi feita e não criada. Outros afirmam que Deus as fabrica à proporção necessária, e que chegam no instante da cópula. Alojam-se nos animálculos seminais, exclama este. Não, diz aquele, vão habitar as trompas de Fallopio. Todos vós estais errados, intervêm aqueloutro: a alma espera seis semanas até que esteja formado o feto; então se acomoda na glândula pineal; se, porém, encontra um germe maligno, volta, a espera de melhor ocasião. A última opinião é que sua morada é no corpo caloso. É o local que lhe atribui La Peyronie. Era preciso ser primeiro cirurgião do rei de França para dispor assim do alojamento da alma. Pena é que o corpo caloso do ar. La Peyronie não tenha tido a mesma fortuna que o dono.

Diz Santo Tomás (questão septuagésima quinta e subseqüentes) que a alma é uma forma subsistante per se. Que está em todas as coisas. Que sua essência difere de sua potência. Que há três almas vegetativas: nutritiva, aumentativa, generativa. Que a memória das coisas espirituais é espiritual. Que a memória das coisas corporais é corporal. Que a alma racional é uma forma imaterial quanto às operações e material quanto ao ser. Sto. Tomás escreveu duas mil páginas dessa força e dessa clareza. É o pai da escola.
Não é menor o número de sistemas forjados sobre a maneira de sentir da alma depois de desertar do corpo por meio de que sente. Como ouvirá sem ouvidos. Como olfatará sem nariz. Como tocará sem mãos. Que corpo retomará de futuro: o que tinha aos doze ou aos oitenta anos? Como o eu, a identidade da mesma pessoa subsistirá. Como a alma de um indivíduo tornado cretino à idade de quinze anos e que cretino tenha morrido aos setenta anos retomará o fio das idéias interrompido na puberdade. Por que milagre uma alma que haja perdido uma perna na Europa e um braço na América reencontrará essa perna e esse braço. (Que, tendo se transformado em legumes, terão virado sangue de algum outro animal).

Singular é não haver nas leis do povo  de Deus palavra sequer a respeito da espiritualidade e imortalidade da alma. Nem no Decálogo, nem  no Levítico nem no Deuteronômio.
Em passo algum — e sobre isto não paira a menor dúvida — Moisés promete aos judeus recompensas e castigos em outra vida. Nem lhes fala da imortalidade da alma. Não lhes acena com céu nem os ameaça com inferno. Tudo é temporal.
Antes de morrer diz-lhes no Deuteronômio:  “Se depois de terdes filhos e netos vós prevaricardes, sereis exterminados no país e reduzidos a número ínfimo entre as nações.
“Eu sou um deus cioso que pune a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
“Honrai pai e mãe para que vivais longo tempo.
“Nunca vos faltará o que comer.
“Se seguirdes deuses estrangeiros sereis destruídos...
“Se obedecerdes tereis chuva na primavera como no outono. Tereis frumento, óleo e vinho. Tereis feno para os vossos animais. Para que comais e vos farteis.
“Gravai estas palavras em vossos corações, em vossas mãos, aos vossos olhos. Escrevei-as em vossas portas. Para que vossos dias se multipliquem.
“Fazei o que vos ordeno sem tirar nem pôr. “Se se erguer um profeta e vos predisser
causas prodigiosas; se a predição for verdadeira e se cumprir; e se ele vos disser: Vamos! Sigamos deuses estrangeiros... — matai-o incontinenti. E que todo o povo vos acompanhe.
“Quando o Senhor vos entregar nações estrangeiras, degolai a todos. Não poupeis um só homem. Não tenhais piedade de ninguém.
“Não comais aves impuras como a águia, o grifo, o ixiao.
“Não comais animais que ruminem e que não tenham a unha fendida, como o camelo, a lebre, o porco espinho, etc.
“Observando todos os preceitos sereis abençoados na cidade como no campo. Abençoados serão os frutos do vosso ventre, da vossa terra, dos vossos animais...
“Se não observardes todos os mandamentos e todas as cerimônias, amaldiçoados sereis na cidade como no campo... Padecereis fome, pobreza. Morrereis de miséria, de frio, de penúria, de febre. Tereis ronha, rabugem, fístula. Tereis úlceras nos joelhos e na barriga das pernas.
“O estrangeiro vos emprestará a onzena, e vós não lhe emprestareis a onzena... Por não servirdes ao Senhor.
“E comereis o fruto do vosso ventre. A carne dos vossos — filhos, etc.”.
É manifesto nada haver em todas essas promessas e ameaças que não seja temporal. Nem uma palavra sobre imortalidade da alma. Nem uma palavra sobre vida futura.
Muitos comentadores ilustres foram de parecer que Moisés estava perfeitamente avisado destes dois grandes dogmas. Provam-no com palavras de Jacó, que julgando que seu filho fora devorado pelas feras, exclamou em sua dor: “Eu acompanharei meu filho à sepultura,  in infernum, ao inferno”. Isto é: eu morrerei, já que meu filho morreu.

Provam-no ainda com trechos de Isaías e Ezequiel. Porém os hebreus a quem falava Moisés não podiam ter lido Ezequiel nem Isaías. Porque Ezequiel e Isaías só viveram muitos séculos depois.
Inútil discutir quanto aos sentimentos secretos de Moisés. O fato é que nas leis públicas ele nunca falou de vida futura. Todos os castigos, todos os prêmios, restringe-os ao presente. Se conhecia a vida vindoura, por que não expôs expressamente tão importante dogma? E se não a conheceu, qual o objeto de sua missão? É o que perguntam muitas personagens ilustres. E respondem que o Mestre de Moisés e de todos os homens se reservava o direito de explicar a bom tempo aos judeus uma doutrina que eles não estavam em condições de compreender quando no deserto.

Houvesse Moisés anunciado o dogma da imortalidade da alma, não o teria combatido uma grande escola de judeus. Não teria sido autorizada pelo estado a grande escola dos saduceus. Os saduceus não teriam ocupado os primeiros cargos. De seu seio não teriam saído grandes pontífices.

Parece que só depois da fundação de Alexandria os judeus se cindiriam em três seitas: fariseus, saduceus, essênios.  Ensina  o historiador fariseu José no livro 13 das Antigüidades que os fariseus acreditavam na metempsicose. Criam os saduceus que a alma se extinguia com o corpo. Para os essênios — é ainda José quem o afiança — a alma era imortal; segundo eles as almas, sob forma aérea, desciam do fastígio do firmamento violentamente atraídas pelos corpos. Após a morte as almas das pessoas boas iam morar além oceano, num país onde não fazia calor nem frio, não ventava nem chovia.

Lugar de todo em todo oposto era o desterro das almas ruins. Tal a teologia dos judeus.
Aquele que devia ensinar todos os  homens veio condenar essas três seitas. Sem ele, porém, jamais saberíamos coisa alguma da própria alma. Porque os filósofos nunca souberam nada certo e Moisés, único verdadeiro legislador do mundo antes do nosso, Moisés que falava com Deus face    a face e não o via senão pelas costas, deixou os homens em profunda ignorância dessa magna questão. Há apenas mil e setecentos anos que estamos certos da existência e imortalidade da alma.
Cícero não tinha mais que dúvidas. Seus netos aprenderam a verdade com os primeiros galileus que arribaram a Roma.
Mas antes disso, e até depois disso em todo o resto da terra onde não penetraram os apóstolos, cada um devia dizer à própria alma: Que és tu? De onde vens? Que fazes? Para onde vais? Tu és não sei que, que pensa e que sente. Mas ainda que pensasses e sentisses cem bilhões de anos, nada saberias por tuas próprias luzes, sem o auxílio de Deus.
Homem! Deus outorgou-te o entendimento para bem procederes e não para penetrares a essência das coisas por ele criadas.

Dicionário Filosófico (1764)* Voltaire (1694-1778)
Edição Ridendo Castigat Mores
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