sábado, 19 de novembro de 2016

Notícia - Envenenados pelo chumbo



Por incrível que possa parecer, os caçadores aniquilam mais aves quando erram o alvo do que quando dão tiros certeiros. O biólogo Jorge Nunes desvenda este mistério e conta como o saturnismo (intoxicação provocada pelo chumbo) tem vindo a dizimar anualmente milhares de aves selvagens.

Em 2007, a Associação Nacional de Proprietários e Produtores de Caça informou os seus associados de que “o governo espanhol aprovou um Decreto-Lei que proíbe a posse e a utilização em zonas húmidas de munições que contenham chumbo”. Ao ver estas palavras, certamente muitos caçadores terão ficado muito intrigados e perplexos. Porém, mais adiante a notícia desvendava o mistério:  “Esta normativa tem por objectivo resolver o problema da mortalidade das aves aquáticas causada pela intoxicação de chumbo, uma vez que estas aves ingerem os bagos de chumbo acidentalmente, vindo depois a perecer por problemas de saturnismo (intoxicação com doses letais de chumbo).”

Embora este assunto só recentemente tenha começado a merecer a atenção das entidades portuguesas, sabe-se desde há muito (este problema está referenciado desde 1894) que os bagos de chumbo resultantes dos tiros dos caçadores e que ficam espalhados pelo ambiente, podendo demorar entre 50 e 300 anos a decompor-se totalmente, constituem uma ameaça significativa para milhares de aves selvagens, sobretudo em zonas húmidas. Todavia, este problema não se restringe às aves e contribuiu de igual modo para a contaminação das águas e dos solos. 

As aves aquáticas, como os patos, as galinhas-d’água e os galeirões, são as principais afectadas, porque ao ingerirem areia e pequenas pedras, para facilitar a digestão mecânica dos alimentos na moela, engolem inadvertidamente as esferas de chumbo que existem no solo. Ao entrarem no sistema digestivo, os bagos irão desgastar-se e dissolver-se pela acção dos ácidos digestivos, acabando o chumbo por ser absorvido para a corrente sanguínea. Este metal pesado tóxico vai-se acumulando em vários órgãos, como o cérebro, o fígado e os ossos, debilitando as aves e podendo mesmo causar-lhes a morte por envenenamento.

Na opinião de David Rodrigues, investigador do Departamento Florestal da Escola Superior Agrária de Coimbra e autor de vários trabalhos sobre o saturnismo em Portugal, a probabilidade de ingestão de esferas de chumbo pelas aves aquáticas é maior do que nas aves terrestres. Isto acontece porque “nas zonas húmidas geralmente abundam lodo e vaza, sendo que a areia disponível [para facilitar a digestão] poderá ser escassa para a necessidade das aves que aí habitam”, esclarece.

Todavia, este não é um problema que se circunscreva apenas às aves aquáticas. Dado que se trata de um processo de bioacumulação, acabará por afectar toda a cadeia alimentar, nomeadamente os níveis tróficos superiores, com graves consequências também para as aves necrófagas e de rapina (estão referenciadas pelo menos 17 espécies afectadas, muitas delas em risco de extinção), como já ficou patente nos resultados de vários estudos. Além disso, não são de menosprezar os efeitos nas pessoas que consomem aves de caça intoxicadas por chumbo, uma vez que esse metal constitui um factor de risco para a saúde humana, afectando os sistemas nervoso central e periférico, cardiovascular, imunológico, pulmonar, urinário e reprodutor.

Segundo estimativas realizadas em Espanha, acumular-se-ão anualmente no solo e na água cerca de 5000 toneladas de chumbo resultante da actividade dos caçadores (cada cartucho tem cerca de 280 bagos de chumbo, num total de 35 gramas) e o saturnismo poderá ser responsável pela morte de 30 a 50 mil aves aquáticas por ano. Cálculos recentes para a Europa estimam em mais de 975 mil aves mortas por ingestão de bagos de chumbo, só durante cada Inverno (de Novembro a Fevereiro).

Num estudo realizado no Canadá, constatou-se que a densidade de bagos de chumbo rondava os nove a 180 mil por hectare na maioria das áreas de caça. Nas zonas húmidas sujeitas a elevada pressão de caça, esse valor poderia chegar mesmo aos dois milhões de chumbos por hectare, o que, feitas as contas, correspondia a aproximadamente duzentos chumbos por metro quadrado. Investigações levadas a cabo na Europa permitiram constatar que por cá a situação é igualmente inquietante: 399 chumbos por metro quadrado foram contados nos trinta centímetros superiores de sedimentos numa lagoa no Sul de Espanha, e mais de 100 chumbos/m2 nos vinte centímetros superficiais da maioria dos sedimentos das zonas húmidas europeias.

Quanto à realidade em Portugal, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves alvitrava em 2005 que o saturnismo afectaria mais de dez por cento dos anatídeos (patos) e ralí­deos (galeirões e galinhas d’água) portugueses. Além disso, em determinadas épocas do ano, nomeadamente durante e após a época de caça, 60% dos patos examinados tinham elevadas quantidades de chumbo no sangue.

Trabalhos coordenados por David Rodrigues, em 2001, nos estuários dos rios Vouga e Mondego, permitiram detectar até 99 chumbos numa única moela de pato-real (Anas platyrhynchos). Ao que parece, este problema agrava-se quando os patos se alimentam nos arrozais, onde os chumbos podem ser facilmente confundidos com grãos de arroz.

Sabendo-se que a “ingestão de uma única esfera de chumbo por uma ave pode causar a morte desta a curto prazo”, lembra o investigador, será fácil imaginar as consequências de tão elevadas quantidades na saúde e vitalidade das aves. Refira-se, no entanto, que o grau de saturnismo não depende apenas da quantidade de chumbo ingerida, mas é influenciado pelo teor de cálcio, proteínas e inertes ingeridos. Assim, embora as aves possam sobreviver quando ingerem um único bago de chumbo (pensa-se que 40% das aves aquáticas estarão nesta situação), verão as suas defesas e fertilidade consideravelmente afectadas, bem como a capacidade de acumular energia essencial para o esforço da migração.  

Já em 1992, num outro estudo realizado por Rodrigues, se havia verificado que o saturnismo atingia com preocupação os patos portugueses. Numa pequena amostra de apenas 75 moelas retiradas a patos-reais abatidos na foz do Mondego, constatou-se que cerca de 5% tinham chumbos.

Até ao momento, os estudos realizados em Portugal abordaram essencialmente o pato-real, no qual a taxa de envenenamento pelo chumbo variou entre 19% e 59%. Análises similares em marrequinha (Anas crecca), realizadas na Reserva Natural das Dunas de São Jacinto, permitiram observar taxas de envenenamento entre 12% e 36%. No entanto, se espreitarmos os trabalhos realizados aqui ao lado, em Espanha, ficamos a saber que muitas outras espécies aquáticas que também ocorrem em Portugal são igualmente afectadas, como o arrabio (Anas acuta), o pato-trombeteiro (Anas clypeata), o ganso-bravo (Anser anser), a negrinha (Aythya fuligula), o zarro-comum (Aythya ferina) e o pato-de-bico-vermelho (Netta rufina), entre outras.  

Perante esta ameaça que tem vindo a dizimar as aves aquáticas de forma silenciosa, vários países (a Dinamarca em 1985, a Suécia em 2000 e a Espanha em 2007, por exemplo) adoptaram medidas legislativas que proíbem o uso de materiais tóxicos, como o chumbo, em todo o tipo de caça em zonas húmidas. A alternativa passa pela utilização de munições com ligas de aço, estanho, bismuto e tungsténio, substâncias inócuas para o ambiente.

Apesar de Portugal ter assinado convénios internacionais relativos à protecção das aves e dos seus habitats e de este tema já ser discutido há alguns anos, o nosso país foi o último da União Europeia a abolir o uso do chumbo na caça. A boa notícia chegou somente em Maio passado (através da Portaria n.º 288/2010, de 27 de Maio), com efeitos a partir da época de caça 2010/2011. Assim, de agora em diante, “não é permitida a utilização de cartuchos carregados com granalha de chumbo no acto venatório: a) na caça às aves aquáticas, independentemente do local; b) nas zonas húmidas incluídas em áreas classificadas”.

Conscientes deste problema ambiental, que afecta várias espécies cinegéticas e não se restringe apenas às aves aquáticas, algumas zonas de caça associativa e turística anteciparam-se à proibição e já haviam adoptado munições alternativas. Para todas as outras e para muitos caçadores, este será obrigatoriamente um ano de mudanças. No entanto, o problema não acaba de imediato, como se alertou na Conferência sobre Saturnismo em Aves Aquáticas Portuguesas, realizada em 2005, na Escola Superior Agrária de Coimbra. Além de pedirem urgência na utilização obrigatória de cartuchos não-tóxicos na caça em zonas húmidas, havendo necessidade de que essa medida fosse tomada o mais cedo possível, os congressistas concluíram que “o saturnismo continuará a ocorrer por muitos anos após a entrada em vigor da interdição do uso do chumbo”, devido às dezenas de anos que os bagos de chumbo já existentes no solo poderão demorar a decompor-se.

Ultrapassado o vazio legislativo, que se manteve durante décadas, as aves aquáticas lusitanas já podem suspirar de alívio, ainda que muitas venham a perecer silenciosamente enquanto persistirem resíduos de chumbo. Apesar de terem escapado aos tiros certeiros dos caçadores, numerosas não conseguirão livrar-se tão cedo dos chumbos das suas antigas munições.

J.N.- SUPER 152 - Dezembro 2010

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