quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Notícia - O tecido artificial sabe respirar!


Laura Niklason é pioneira na engenharia de tecidos. Já fabricou veias e artérias a partir do zero e acaba de protagonizar um avanço que deverá revolucionar os tratamentos do pulmão.

Aos 47 anos, Laura Niklason, professora de engenharia biomédica na Universidade de Yale (Estados Unidos), é uma das maiores sumidades mundiais na síntese de artérias e veias em laboratório. As suas redes de tecido vascular não crescem sobre o “andaime” habitual de polímeros artificiais, mas sobre material biológico. Em Junho, Niklason obteve um feito neste tipo de tecnologia regenerativa: retirou in vitro as células do pulmão de um rato e conservou a chamada “matriz extracelular” (MEC, a malha que sustenta a trama ramificada das vias aé­reas e dos vasos sanguíneos), pulverizou esta rede com células novas e implantou com êxito o pulmão assim regenerado noutro roedor.

Como surgiu o seu interesse pela engenharia de tecidos?
Há 15 anos que trabalhamos nessa área. Tudo começou quando conseguimos desenvolver uma técnica que permitia isolar tecidos vasculares de porcos e fazê-los crescer num biorreactor capaz de imitar a acção do batimento do coração. Desde então, procuramos fazer algo parecido em humanos. O objectivo é conceber um processo rápido que encurte o tempo que os doentes cardiovasculares esperam por uma cirurgia de substituição arterial.

Qual é o truque para cultivar células humanas?
Conhecemos a combinação perfeita de factores de crescimento e condições bioquímicas que permitem a proliferação adequada das células no biorreactor. Cada estirpe celular requer um cocktail concreto. Além disso, em comparação com as dos animais, as nossas células são mais exigentes para crescer fora do corpo. Mas, há dois anos, conseguimos que se multiplicassem numa MEC

Em que consiste essa matriz?
É uma espécie de andaime formado pelo colagénio (e outras proteínas) libertado pelas próprias células. Esta matriz ajuda a que estas se organizem e dá-lhes apoio, força e protecção.

E de que maneira usam essa matriz?
Pegamos num fragmento de artéria e, com a ajuda de uma mistura de detergentes especiais e sais de elevado conteúdo iónico, retiramos as células. O fundamental é não partir aquela malha delicadíssima, porque é a estrutura sobre a qual vamos fazer crescer as células da artéria sã, que depois implantaremos no paciente. Em essência, é como ter uma pequena fábrica de vasos sanguíneos, já que também podemos fabricar a MEC e guardá-la durante meses no frigorífico, porque não é uma coisa viva. Por outro lado, uma vez que não tem as células originais, podemos destiná-la a qualquer pessoa (ou animal) sem que o seu sistema imunológico a rejeite. É um avanço médico gigantesco.

Nesse caso, deixa de ser necessário extrair, por exemplo, uma secção de veia da perna para fazer um bypass coronário?
A ideia é evitar o próprio bypass, e que um dia possamos simplesmente tirar o vaso sanguíneo do frigorífico e injectá-lo na zona cardiovascular afectada.

Porque é que a MEC é tão especial?
Quando a pulverizamos com células, vemos que, de alguma forma, lhes dá instruções sobre onde devem instalar-se. As células não se colocam ao acaso; pelo contrário, movem-se para o lugar da matriz que lhes compete, segundo a sua função. Creio que isso tem a ver com as proteínas, que são diferentes em cada zona do andaime biológico.

O que é uma artéria perfeita?
Tem de ser muito resistente e suportar uma sutura, o que depende muito da força da matriz. E tem de evitar a coagulação do sangue. Neste sentido, os vasos maiores que fabricamos, de uns seis milímetros de diâmetro, não dão problemas. Os de 3 e 4 mm, que são os que se utilizam num bypass coronário, conti­nuam a coagular. Para evitá-lo, estamos a colocar algumas células endoteliais do roedor na MEC, pois previnem a coagulação, mas queremos encontrar uma solução melhor.

Quando começarão estas artéria a ser implantadas em humanos?
Dentro de um ou dois anos.

Agora, começou a trabalhar também com tecido pulmonar.
Há cinco anos que usamos a MEC como andaime para cultivar células das diferentes partes do pulmão. De repente, um dia aconteceu algo que me deixou pasmada: o tecido pulmonar que tínhamos fabricado sobre a MEC estava a intercambiar gases. Respirava!

A estrutura dos pulmões é muito complexa...
Sim. A traqueia divide-se em dois ramais. Estes subdividem-se mais 23 vezes e, no fundo dos pulmões, onde se produz o intercâmbio gasoso, há centenas de milhões de alvéolos. É uma superfície muito vasta. Desperdiçámos muitos anos a tentar construir sem êxito um andaime de polímeros sintéticos que tivesse uma complexidade semelhante à do tecido real. A única saída era dominar as tecnologias que permitem descelularizar a MEC e aplicá-las ao órgão da respiração. E funcionou!

Ninguém tinha conseguido fazê-lo antes?
Fomos os primeiros a conseguir transplantar tecidos pulmonares fabricados com engenharia tecidular num organismo vivo (um rato).

E recorrem a células estaminais?
Para as artérias em geral, não é necessário. No caso dos pulmões, é preciso recorrer a células embrionárias pluripotenciais. A razão é que as células pulmonares, especialmente as de pacientes mais velhos e doentes, não crescem bem em cultura. É uma pena, mas o seu desenvolvimento em pacientes humanos ainda está a muitos anos de distância.

Então, a tendência é para usar a engenharia de tecidos em matrizes extracelulares naturais?
Sim. É melhor trabalhar com a natureza do que reinventar a roda. Andamos a falar de engenharia de tecidos desde a década de 1980. Deu muito trabalho realizar os primeiros progressos, mas agora é claro que a medicina regenerativa veio para ficar. E acredito, além disso, que o ritmo das descobertas vai acelerar nos próximos anos.

Como entrou neste campo?
Comecei nos anos 90, quando, de uma maneira geral, se pensava que a engenharia de tecidos era uma área de estudo que roçava a ficção científica e na qual apenas podiam trabalhar pessoas meio loucas. A mim, fascinou-me porque combinava a física e a engenharia com a medicina e a biologia. Não me incomodava nada que me considerassem uma lunática a trabalhar nos limites da ciência. E continuo assim! É como andar por uma rua desconhecida. Foi um passeio imprevisto que trouxe imensas recompensas.

A.P.S. - SUPER 152 - Dezembro 2010

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