Em muitos lugares do país, um dia o comboio partiu e nunca mais voltou. Para trás, deixou populações resignadas e centenas de quilómetros de linhas férreas abandonadas. Enquanto a desejada reactivação do transporte ferroviário se mantém uma miragem distante, surge uma nova esperança para o desenvolvimento local e para o turismo sustentável: a transformação dos antigos corredores ferroviários em pistas ecológicas. O biólogo Jorge Nunes faz o ponto da situação.
O fim do que restava da mítica linha do Tua, considerada uma das mais belas de Portugal, foi apenas o último capítulo, e porventura o mais badalado (com destaque para o documentário Pare. Escute. Olhe., de Jorge Pelicano, que teve honras de visionamento nas salas de cinema), de uma triste história que tem levado à lenta agonia do transporte ferroviário português e ao encerramento de muitas linhas férreas espalhadas pelo país.
Os argumentos a favor dos encerramentos assentaram essencialmente nos elevados custos de manutenção, na demora de alguns trajectos em virtude dos seus traçados sinuosos e concomitantemente na sua fraca rentabilidade económica, dado que alguns itinerários nem sempre passavam onde a economia e a demografia aconselhariam. As vozes que se fizeram ouvir contra o fim das linhas alegaram razões de identidade e desenvolvimento regional, falta de outras acessibilidades válidas como alternativas ao comboio com graves implicações para o despovoamento do interior e ausência de coragem política e empresarial para investir na ferrovia como promotora da tão proclamada mobilidade sustentável.
Mesmo sabendo-se que algumas das linhas mais antigas, como as do Tua, do Corgo, do Sabor e do Vouga, entre outras, mantinham interesse regional e poderiam ter potencialidades turísticas promissoras, a racionalização da exploração ferroviária falou mais alto. Especialmente entre os anos de 1985 e 1987, pouco antes de comemorarem os seus centenários, diversos ramais e linhas, especialmente de via estreita, foram apagadas do mapa ferroviário português.
Impulsionada pela política de obras públicas de Fontes Pereira de Melo, a aventura do caminho-de-ferro em Portugal nunca foi um processo fácil. Desde as críticas acérrimas de muitos contestatários, passando pela geografia montanhosa das terras lusas e culminando nas dificuldades financeiras do país, muitos foram os grãos que ajudaram a emperrar a engrenagem. Há quem advogue, inclusivamente, que “o financiamento da ferrovia representou um esforço desmesurado que agravou o endividamento externo do país, abrindo uma crise financeira que se terá arrastado, pelo menos, até à queda da monarquia”.
Seja como for, a rede ferroviária acabou por arrancar lentamente em 1856 (com um pequeno troço entre Lisboa e o Carregado), sendo rapidamente elevada à condição de desígnio nacional que levou o país a semear-se de carris, túneis, pontes, estações e apeadeiros. Mesmo os locais mais ermos da nação, onde nunca chegaram estradas de jeito, passaram a ser visitados por vagões apinhados de gente e mercadorias, assistindo-se ao rápido desenvolvimento de alguns lugarejos que até aí haviam servido apenas para decorar os mapas portugueses. Pode mesmo dizer-se, com algum exagero, que o comboio foi para muitas regiões recônditas a internet do século XX português: o primordial meio de comunicação com o resto do mundo.
Desde o final do século XIX, a via férrea foi considerada a peça fundamental para tirar Portugal do seu atraso ancestral. Contrariando a geografia acidentada do território, o comboio foi trilhando progressivamente o país de lés-a-lés e encurtando as distâncias entre as povoações, abrindo-as ao mundo e ao desenvolvimento. Porém, volvidos pouco mais de cem anos, o entusiasmo pela aventura do caminho-de-ferro começou a desvanecer-se e a racionalização da exploração ferroviária impôs, nas últimas décadas, o encerramento de muitas linhas férreas.
Os troços encerrados até à actualidade ultrapassam já os 20 por cento da rede ferroviária nacional, ou seja, mais de oitocentos quilómetros de trilhos votados ao abandono. Na região Norte, assinala-se o fecho dos ramais entre Valença e Monção (17 quilómetros), entre Póvoa de Varzim e Famalicão (29 km), entre Guimarães e Fafe (21 km), entre Pocinho e Barca d’Alva (28 km), e das linhas do Tâmega (entre Amarante e Arco de Baúlhe, 39 km), do Corgo (entre Régua e Vila Real, 72 km), do Tua (entre Tua e Bragança, 126 km) e do Sabor (entre Pocinho e Duas Igrejas, 105 km).
No Centro, o destaque vai para o fim das linhas do Vouga (entre Sernada do Vouga e Viseu, 76 km) e do Dão (entre Viseu e Santa Comba Dão, 49 km).
Na região Sul, mais propriamente no Alentejo, foram desactivados os ramais do Montijo (entre Pinhal Novo e Montijo, 11 km), de Montemor (entre Torre da Gadanha e Montemor-o-Novo, 13 km), de Mora (entre Évora e Mora, 60 km), de Reguengos (entre Évora e Reguengos de Monsaraz, 40 km), de Moura (entre Beja e Moura, 59 km), de Vila Viçosa (entre Estremoz e Vila Viçosa, 16 km), das antigas minas do Lousal (3 km) e de Portalegre (entre Estremoz e Portalegre, 63 km).
Com a partida do último comboio, muitas das regiões do interior ficaram cada vez mais longe de tudo e de todos. Eu próprio pude sentir isso e ouvi-lo de viva voz da boca de ilustres desconhecidos com quem entabulei conversa quando há meia dúzia de anos palmilhei Portugal de Norte a Sul à cata de imagens e testemunhos para arquitectar o livro Pelos Trilhos de Portugal, uma ode às memórias ferroviárias das gentes – “os esquecidos do progresso”, como lhes chamou Jorge Pelicano – que jamais esquecerão o apito do seu comboio.
Com o encerramento do tráfego de passageiros e mercadorias em várias linhas e ramais, o património ferroviário, votado ao abandono, rapidamente foi vandalizado e degradado, correndo mesmo o risco de desaparecer. No entanto, a constituição da Unidade de Gestão do Património Desactivado da REFER, em 2000, fez nascer uma nova esperança para as linhas desactivadas e para a preservação e valorização do património que lhes está associado, como estações, apeadeiros, pontes e túneis.
Seguindo as pegadas de outros países europeus, estabeleceu-se o Plano Nacional de Ecopistas, que pretende “agregar políticas, vontades, interesses, em conjunto, de modo a que as ecopistas integrem e catalisem novos produtos turísticos em Portugal que sirvam o país, as regiões e as comunidades locais, com respeito pelo desenvolvimento sustentável”. Este plano visa a utilização de caminhos, canais e vias ferroviárias desactivadas que constituem um suporte privilegiado para o desenvolvimento das “vias verdes”, conforme a Declaração de Lille para uma Rede Verde Europeia, aprovada em 12 de Setembro de 2000.
Com o passar dos anos, os corredores ferroviários desactivados têm vindo a ser transformados nessas “vias verdes”, que em Portugal são denominadas “ecopistas”. Estas são caminhos pedonais onde os comboios foram substituídos pelos veículos não motorizados (como as bicicletas, os patins e os skates), garantindo uma utilização em convivência, acessibilidade universal e segurança a todos os utilizadores, independentemente da idade e das condições físicas. A comprová-lo, deixo registo do que vi: dezenas de crianças de tenra idade e alguns deficientes e idosos que se passeavam em cadeira de rodas na Ecopista de Viseu. Por essa razão, as ecopistas estão vedadas a veículos motorizados (excepto em caso de acidente ou de apoio técnico), não podem apresentar declives superiores a 3%, devem ser independentes em relação a outras vias de comunicação, se possível com reduzido número de cruzamentos com estradas, e devem ser vias totalmente públicas e de acesso livre.
Estas pistas ecológicas existem por toda a Europa sob diferentes denominações (voies vertes, voies douces, greenways) e são coordenadas pela Associação Europeia de Vias Verdes, conhecida pela sigla anglo-saxónica de EGWA (European Greenways Association), instituída em 8 de Janeiro de 1998, na Bélgica. Esta federação de instituições e associações de diversos países europeus, incluindo Portugal, persegue os seguintes objectivos: preservação de vários tipos de infraestruturas como as ferrovias desactivadas, promoção dos transportes não motorizados, apoio e coordenação do intercâmbio de informação e experiências entre os diferentes parceiros europeus e colaboração com as autoridades europeias, apoiando políticas de sustentabilidade, do meio ambiente, de equilíbrio regional e de emprego.
De modo a vencer a geografia acidentada das terras lusitanas e por razões economicistas, os traçados de muitas ferrovias privilegiaram os vales dos principais rios e dos seus afluentes, dos quais herdaram muitas vezes os seus nomes (Linha do Douro, Linha do Minho, Linha do Tâmega, Linha do Corgo, Linha do Tua, Linha do Sabor, Linha do Vouga, só para citar alguns exemplos). Este facto faz que os corredores ferroviários, entretanto abandonados, atravessem vastas extensões bravias e despidas de gente (muitos locais remotos acabaram por ser definitivamente abandonados após o encerramento das linhas que lhes davam serventia), bem como espaços naturais de grande valor paisagístico, muitos deles incluídos na Rede Natura 2000.
Compreende-se assim que as ecopistas, que usam os antigos corredores ferroviários onde outrora passaram as históricas locomotivas a vapor e mais recentemente os comboios a diesel, surjam como a forma mais adequada para desbravar esses territórios selvagens. A partir delas, podem descobrir-se recantos encantados de Portugal e um riquíssimo património arquitectónico, histórico, arqueológico e cultural, que extravasa as memórias ferroviárias.
Neste momento, dos 748 quilómetros de linhas abandonadas elegíveis para transformação em ecopistas, estão já em utilização 129 quilómetros (17%) em todo o país: Ecopista do Minho (Valença–Monção), Ecopista de Guimarães (Guimarães–Fafe), Ecopista de Famalicão (Famalicão–Gondifelos), Ecopista do Corgo (Vila Pouca de Aguiar–Pedras Salgadas), Ecopista do Sabor (Torre de Moncorvo–Larinho), Ecopista do Vouga (Paradela–Foz do Rio Mau, na região de Sever do Vouga), Ecopista do Dão (Viseu–Figueiró), Ecopista de Montemor (Montemor-o-Novo–Torre de Gadanha) e Ecopista de Mora (Évora–Vale do Paio).
Está planeado converter mais troços, e em fase de obras e com inauguração prevista para breve estão as antigas linhas do Tâmega (troço de Amarante–Chapa) e do Dão (Santa Comba Dão–Viseu). Todos os outros ramais, linhas e troços sem exploração ferroviária fazem parte do Plano Nacional de Ecopistas, mas estão em fases menos avançadas de concretização.
O plano afirma que “em todo o Território, as Ecopistas (e demais património adjacente) estão submetidas a todos os instrumentos de ordenamento em vigor e uma vez concluídas, constituirão um travão ao abandono e preservarão uma parte significativa do nosso território rural e do interior mais profundo”. No entanto, vozes mais contestatárias fazem-se ouvir gritando bem alto que estas infraestruturas seriam “muito mais úteis se cumprissem o desígnio para que foram construídas” e que a verdadeira “racionalização teria sido a sua modernização” e não o seu encerramento compulsivo.
Seja como for, as vias verdes são uma iniciativa que se integra no esforço de promover o desenvolvimento sustentável e a qualidade ambiental, pelo que têm sido apoiadas por diversos fundos comunitários, que financiam parte destes projectos conjuntamente com as entidades dos locais onde as ecopistas são executadas. Aproveitando financiamentos europeus, por todo o país não param de aumentar as ecopistas, de forma a travar a degradação dos traçados ferroviários desactivados, potenciando actividades culturais, educativas e recreativas, fomentando as actividades económicas, contribuindo para a criação de emprego e trazendo novas dinâmicas às regiões desfavorecidas que haviam anoitecido com a partida do comboio.
O Plano Nacional de Ecopistas prevê a utilização e recuperação dos traçados ferroviários, potenciando um sistema nacional de passeios de natureza. Porém, a dispersão geográfica das linhas abandonadas não permitirá constituir só por si uma verdadeira rede nacional, sem recorrer a outros corredores (sejam cicláveis ou percursos pedestres) ou à articulação com o transporte ferroviário (considerado um transporte rápido, seguro e não poluente). Porém, não restam dúvidas de que, através das janelas de muitos comboios ou a partir dos seus corredores ferroviários entretanto transformados em pistas ecológicas, ainda é possível surpreender algumas das mais belas paisagens de Portugal.
Ecopista do Rio Minho: um projecto pioneiro e ganhador
Nesta década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005–2014), não sendo possível devolver os antigos cavalos-de-ferro aos seus trilhos desactivados, a conversão das velhas linhas em ecopistas parece ser uma interessante aposta de turismo sustentável. A comprová-lo, estão o aumento significativo do número e extensão destas vias verdes, a crescente quantidade de utilizadores e o recente prémio atribuído pela EGWA à Ecopista do Rio Minho, a primeira construída em Portugal (inaugurada a 14 de Novembro de 2004) e a única portuguesa a ter obtido, até ao momento, um galardão num concurso de âmbito europeu. O júri enalteceu o projecto, entre outras razões, pelo seu potencial e pela peculiar localização fronteiriça, a bordejar a raia húmida do Alto Minho.
Os 13 quilómetros da Ecopista do Minho tiveram um custo total de 815 mil euros, financiados pelas autarquias valenciana e monçanense e pelo INTERREG. Após a reabilitação, a antiga linha férrea ficou quase irreconhecível: toda a estrutura dos carris e das travessas de madeira foi removida e substituída por uma película sintética que forma um piso de textura lisa apropriada para deslocações não motorizadas. A renovação não se ficou pelo corredor ferroviário mas estendeu-se igualmente aos equipamentos ferroviários anexos, como estações, apeadeiros e abrigos.
O percurso inicia-se nas imediações de Valença, junto da antiga casa da vigia, onde um pequeno Centro de Interpretação da Ecopista dá a conhecer aos visitantes as memórias da antiga linha do caminho-de-ferro e os valores naturais da região. O magnífico passeio pode iniciar-se com visita prévia à Praça-Forte de Valença e terminar com uma deambulação contemplativa pelos recantos da vila termal de Monção, considerada o berço do vinho Alvarinho. Pelo meio, atravessam-se vinhedos e campos de cultivo, descobrem-se monumentos como a Torre da Lapela e desfruta-se de uma vista exclusiva sobre o rio Minho, ao qual se podem fazer pequenas escapadas para apreciar com maior intimidade as praias fluviais, as pesqueiras e as ínsuas.
Um estudo desenvolvido pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, realizado em 2005/2006, no âmbito da disciplina de Teorias e Políticas de Desenvolvimento Regional, concluiu que “a Ecopista do Minho é uma aposta que Valença e Monção estão a ganhar”: “A sua concretização revelou-se um caso de sucesso, comprovado pela forte adesão popular, não só de Portugal como do outro lado do Rio Minho”, acrescentava. Por essa altura, já se vaticinava que a Ecopista do Rio Minho seria a primeira de muitas espectáveis vias verdes em Portugal. Volvida meia dezena de anos, o presságio parece estar a concretizar-se.
J.N.
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