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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A (auto)avaliação das escolas: pressões performativas e "danos colaterais"


Ao longo das duas últimas décadas, em diferentes geografias sócio-educativas, a agenda avaliativa foi catapultada para o centro das prioridades políticas, tendo-se transformado numa espécie de amuleto capaz de esconjurar a crise que (de modo recorrente) ameaça carcomer os sistemas educativos. Se, como observou Dias Sobrinho (2000: 184), "a década de noventa foi chamada a década da avaliação", a década em curso ficará muito provavelmente conhecida como a década da obsessão avaliativa.
Expressões como "surto de avaliacionite" (Estêvão, 2001), "avaliocracia" (diversos autores), "terrores da performatividade" (Ball, 2002), "esquizofrenia da performatividade " (Simões, 2007), "quantofrenia" (Dias Sobrinho, 2000) constituem alguns dos artefactos linguísticos que traduzem, entre outros aspectos, as obsessões métricas que invadiram o campo educativo.
No caso de Portugal, e no concerne à avaliação das escolas, as alterações recentes nos ditames jurídico-normativos que regulam (e regulamentam) estas instituições educativas, e a vida dos seus profissionais, refundaram os processos de avaliação externa e de auto-avaliação, impondo ao último "um carácter obrigatório", determinando ainda que deve desenvolver-se "em permanência" (Lei nº 31/2002, de 20 de Dezembro, art.º 6º). Paralelamente, tem-se vindo a "indexar" aos resultados da avaliação, sobretudo externa, a um conjunto de "prémios e castigos", nomeadamente: i) o contingente para atribuição das menções de Excelente e Muito Bom, (Dec. Regulamentar nº 2/2008, art.º 21), ii) a dotação do quadro de professores titulares (Dec.-Lei nº 15/2007, art.º 38º), iii) e as competências a transferir para as escolas no âmbito da celebração dos "contratos de autonomia" (Dec.-Lei nº 75/2008, preâmbulo).
Apesar de as agendas avaliativas se auto-justificarem invocando a demanda da qualidade e da excelência (conceitos cuja "dispersão semântica" raramente se questiona), as actuais induções performativas que pressionam as escolas para mostrarem resultados envolvem o sério risco de as "fantasias encenadas" e a "gestão da impressão" (Ball, 2002) se substituírem ao complexo, incerto e moroso processo de construção do sucesso educativo para todos.
Num contexto em que o que conta são os resultados, e considerando que a qualidade do produto final depende também da possibilidade de se seleccionarem as melhores matérias-primas, as escolas poderão sentir-se tentadas, senão mesmo obrigadas, a cuidar criteriosamente da sua safra. Por exemplo, há não muito tempo, chegou-nos o eco de uma "denúncia informal" relativamente a um agrupamento de escolas que, na sequência da assinatura de um "contrato de autonomia", no âmbito do qual assumiu o compromisso em relação ao alcance de certas metas em termos de resultados escolares, estaria a pôr obstáculos à admissão de alunos com necessidades educativas especiais. A singularidade (e "originalidade") deste caso, segundo a versão que chegou até nós, estaria no invocar do interesse das crianças excluídas para justificar a sua exclusão. De acordo com a versão que nos relataram, a "estratégia" envolvia (envolve?) o seguinte procedimento: o órgão de gestão, quando tomava conhecimento que os pais de determinada criança com necessidades educativas especiais desejavam matricular o seu educando naquela escola, chamava os pais à escola para lhes expressar a sua solidariedade na luta por uma educação de qualidade para os respectivos educandos, aproveitando a oportunidade para os informar que, lamentavelmente, naquele momento aquela escola ainda não tinha as condições ideais para dispensar a educação de qualidade que aqueles pais tinham o direito de exigir para os seus filhos, sugerindo-lhes de seguida algumas "alternativas". Estes parecem ser os "danos colaterais" que as derivas gerencialistas e as versões mercantis da qualidade parecem dispostas a tolerar.


Virgínio Isidro Martins de Sá



Bibliografia

BALL, S. (2002). Reformar escolas/reformar professores e os terrores da performatividade. Revista Portuguesa de Educação, Braga, Vol. 14, nº 2, p. 03-23.
DIAS SOBRINHO, J. (2000). Avaliação da Educação Superior. Petrópolis: Editora Vozes.
ESTÊVÃO, C. V. (2001). Políticas educativas, autonomia e avaliação. Reflexões em torno da dialéctica do reajustamento da justiça e da modernização. Revista Portuguesa de Educação, Braga, vol. nº 2, pp. 155-178.
SIMÕES, G. M. J. (2007). A Auto avaliação das escolas e a regulação da acção pública em educação. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 04, pp. 39-48. (http://sisifo.fpce.ul)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A educação e os media


A propósito da relação escola, media e educação, apresento aqui um diálogo entre o Professor Tradicionalista e o Professor Comunicólogo e Tecnólogo[1]:
Professor Tradicionalista ? Estamos perdidos, a televisão está a baralhar a cabeça dos nossos alunos.
Professor Comunicólogo e Tecnólogo ? Não é bem assim, temos é que ensiná-los a ser selectivos. E isso pode-se fazer na escola.
Professor Tradicionalista ? Está bem, lá vens tu com as tuas modernices. Mas como seleccionar no meio de tanta violência?
Professor Comunicólogo e Tecnólogo ? Bom, violência... Para já é difícil definir com rigor absoluto o conceito de violência na TV. Perguntei a um rapaz de 15 anos qual o programa mais violento que ele conhecia e ele respondeu-me: o Big Show Sic. Ele acha o programa uma violência por ser um insulto à sua própria inteligência.
Professor Tradicionalista ? Está bem, mas, para outros, possivelmente para uns milhões de pessoas, o Big Show Sic é muito divertido e nem lhes passa pela cabeça que alguém lhe chame violento.
Professor Comunicólogo e Tecnólogo ? Bem, ambos os pontos de vista têm o seu fundo de verdade... Também se pode afirmar que muitas peças de Shakespeare estão imbuídas de violência física e verbal. Mas isso é necessariamente tornar o teatro, e aquela peça em concreto, violentos?
Professor Tradicionalista ? Bem, lá vais tu outra vez por essa via. Mas queres comparar isso com a violência que alguns filmes transmitem? Os filmes de guerra, por exemplo, só transmitem violência.
Professor Comunicólogo e Tecnólogo ? Há violência em todo o lado... Tu queres educar os teus alunos para uma sociedade que não existe? Os filmes de aventuras também têm violência, a violência está nas ruas, nas frases que tantas vezes tu próprio usas, nas relações sociais em geral...
Professor Tradicionalista ? Então e não te parece que, por isso mesmo, deveríamos desaconselhar os alunos os pais, os nossos filhos a não verem cenas violentas? Que televisão queres então usar na escola para a educação para a não violência?
Professor Comunicólogo e Tecnólogo ? O assunto não pode ser visto em termos de causa-efeito. A transmissão da violência não é linear. A violência reveste-se de imensas formas e é muito difícil hoje qual ou quais os efeitos negativos sobre as crianças e as pessoas em geral.
Professor Tradicionalista ? Então, se não se conhecem os efeitos, o melhor mesmo é procurarmos que a escola apresente alguns cuidados a ter... talvez ensinar a saber criticar os programas televisivos?!
Professor Comunicólogo e Tecnólogo ? Isso talvez... Por aí estou de acordo. Educar para o sentido crítico, saber ver, saber ler e pensar a televisão. Não passar a ser um homo videns passivo e acomodado no sofá. Por outro lado, repara que os palhaços do circo não seriam divertidos se não andassem à chapada. Também o cinema de animação não teria público se não tivesse alguma violência, mesmo o caso do Bambi...
Professor Tradicionalista ? Por isso te estou sempre a dizer que isso deve competir à família. A família é que deve educar. Nós temos que primar pela transmissão da cultura científica... Temos que ensiná-los a ler, não é a ver televisão. Temos que ensiná-los a pensar.
O diálogo poderia continuar por aí fora.
Deixemos, contudo, aqui, a última palavra ao tradicionalista, ao ortodoxo. O crítico, o professor comunicólogo terá a palavra mais vezes, aqui, quiçá.
De facto, há sempre vantagens e desvantagens que se podem encontrar, dependendo também da maneira como se vêem os programas. Como nos lembra Eduardo Cintra Torres, "a influência da televisão na vida das crianças e o tipo de conhecimentos e vivências que lhes transmite deveriam estar estudados de forma a permitir aos educadores e professores atender à relação dos mais novos com o ecrã. Para começar, deve conhecer-se quais os programas que os mais novos vêem." (Torres, 1998: 145). "Em suma, as crianças não vêem exclusivamente programas infantis e vêem em primeiro lugar programas normalmente definidos como de adultos. Tendo em conta a vivência normal das famílias, conclui-se que as crianças vêem programas como as novelas e Big Show SIC na companhia dos pais [?]. A TV dá-lhes a «cultura do trivial», da mesma forma que a escola lhes dá ou deveria dar a cultura geral. Com a televisão que os pais lhes deixam ver, as crianças aprendem depressa as manhas do amor e comportamentos da vida social nos empregos, na rua, nas festas, nos lares. Com a televisão, as crianças crescem mais depressa mesmo que não contactem com a vida real. Nesse sentido, a televisão poderá ser uma «ladra do tempo» de cultura, mas é ao mesmo tempo uma aceleradora do tempo de aprendizagem das regras da selva humana, a sociedade" (Torres, 1998: 146).

[1] Diálogo inspirado num outro escrito por Dan Speber (1992: 17) entre o crítico e o ortodoxo a discutirem a Antropologia como ciência.


Ana Vieira
Ricardo Vieira



Referências Bibliográficas
SPERBER, Dan (1992). O Saber dos Antropólogos, Lisboa: Edições 70.
TORRES, Eduardo Cintra (1998). Ler Televisão, Oeiras: Celta.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Escolas do nosso descontentamento


«O homem não tem senão o passado e o futuro;
o passado para chorar, o futuro para temer.
O presente não é nada»
(Flores sem Fruto, Almeida Garrett)

O ritualizado início do ano lectivo, só por si, tem a garantia de acontecimento noticioso: os membros do governo desdobram-se em visitas às escolas (e os jornalistas atrás deles) durante a primeira semana de aulas no mês de Setembro, mostrando o "oásis educativo" nacional. A agenda deste ano não se distinguiu da dos anos anteriores (só os números se alteram, ligeiramente). A mediática novidade foi o brinquedo-pedagógico Magalhães, que vem enriquecer a lista do material escolar (endividando ainda mais as famílias de menores recursos). Para breve, o telemóvel, o ipod e a playstation serão também, estamos em crer, incluídos no pacote. Uma "especialista em Educação" defendia que, para evitar o «risco de acabar com a infância» (!?) as «escolas deviam ter jogos de consola», como intitulava a imprensa de distribuição gratuita de 8/9/08.
Fora esta "espuma tecnológica", os velhos conteúdos da rentrée mantiveram-se: (i) A (não) colocação de professores (sindicatos falam em 40 mil) contribuindo para tal o acentuado encolhimento da rede de escolas do 1º ciclo (encerraram mais de 800); mas Sócrates declara, convencido, que «o tempo da facilidade acabou» permitindo, entretanto, a irresponsabilidade social de 14 ESE e de 6 universidades ao abrirem 1256 vagas de formação inicial no curso de Educação Básica (por preencher ficaram, na 1ª fase de acesso ao ensino superior, 17% dessas vagas). (ii) O preço dos (muitos) livros escolares (com as editoras a aumentarem-nos, de forma despudorada, em 6%) e o atraso, costumeiro, na edição de uns tantos manuais. (iii) Os fracos resultados académicos, apesar das "melhorias" registadas nos exames do último ano, em particular na Matemática, mas por efeito da engenharia docimológica do GAVE; as associações de Matemática (APM e SPM) aqui estiveram de acordo: as provas eram fáceis. Nesta questão importa ter como referência as comparações internacionais que organismos como a OCDE possibilitam; o PISA não engana: continuamos entre os últimos! No conjunto destas nações «o ensino da leitura e da escrita, da matemática e das ciências abrange quase metade da instrução obrigatória para os alunos de 9 a 11 anos, ao passo que em Portugal apenas 12% do currículo é dedicado a essas matérias». Em Educação (também) não há milagres. Mas os programas nacionais de formação contínua de professores (TIC, Matemática, Ensino Experimental das Ciências e Português), lançados nos últimos três anos pelo Ministério da Educação, tinham que mostrar a sua utilidade antes do teste eleitoral de 2009. Daí a subida das notas dos exames das disciplinas nucleares.
O que se tem vindo a alterar profundamente é o clima das escolas com os professores em crescente desmotivação e abandono. Desautorizados e descredibilizados pela tutela, desgastando-se em tarefas burocráticas num ambiente cada vez mais pautado pela violência juvenil e agora confrontados com um processo de avaliação de desempenho que os coloca à «beira de uma ataque de nervos». Um recente estudo, realizado em 11 escolas públicas de Lisboa, revela a vulnerabilidade específica da profissão docente em tempos de crise: 42,4% dos docentes apresentam uma sintomatologia depressiva, com particular incidência nas mulheres e na faixa etária dos 55 aos 64, os maiores consumidores de psicoansiolíticos e antidepressivos. A fuga, pelo absentismo ou pelo abandono precoce da profissão, é o sinal evidente desse profundo descontentamento. O aumento dos pedidos antecipados de reforma quase duplicou: em 2008, o total de aposentações já vai em 5060 quando em 2007 tinham sido 3200. Só estes dois dados deviam levar o ME a repensar a sua estratégia para com um dos corpos profissionais mais qualificados e dedicados do país. Já nem a esperança, que sempre os anima no início de cada novo ciclo lectivo, os faz acreditar em melhores dias. É pena!



Luís Souta

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A difícil arte de educar


Educar requer uma grande dose de paciência, sabedoria, amor, perseverança e coerência, para conseguirmos estabelecer limites sem podar a criatividade nem sermos autoritários em demasia, dar amor sem que com isto e em seu nome nos tornemos por demais permissivos, dar liberdade para que seja exercido o livre arbítrio de cada um, de modo que haja responsabilidade pelas escolhas e pelos atos praticados.
É importante corrigir, sem ser excessivamente crítico, de modo a humilhar e desvalorizar, estabelecer regras que devem ser cumpridas, sem que sejamos tiranos, saber ser flexível, quando a situação requer, sem com isto estimularmos a impunidade.
É importante indicar caminhos, sem que com isto queiramos percorrer caminhos alheios, posto que a vida se faz a cada passo, a cada momento, a cada opção feita, a cada ato praticado, cada palavra dita (ou omitida), cada mão estendida, cada sorriso dado, a cada lágrima derramada, seja de alegria ou de dor.
Quando uma criança chega à escola, já leva uma bagagem de emoções, de sentimentos, de orientações recebidas, hábitos adquiridos pela educação que recebe na família na qual está inserida. Como vivemos num mundo globalizado, onde a informação chega a cada casa com uma incrível velocidade, por vezes tudo que se tenta passar para uma criança, parece ser algo em desuso, sem valor, frente ao que é visto através da imprensa ou da mídia televisiva.
Educamos através de coisas simples, que são reforçadas no dia a dia, como ao orientar para cuidar do que lhe pertence, não pegar nada do colega sem pedir permissão, não dizer palavrão, não mentir, exigir respeito aos mais velhos, que seja educado, gentil, que use palavras "mágicas" como Bom Dia, Com licença, Obrigado; fale sem que precise gritar, não jogue lixo na rua e uma série de outras regras básicas de boa, pacífica e respeitosa convivência

Isabel C. S. Vargas

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O PAR - um projecto de avaliação em rede


A escola vê-se, hoje, confrontada com a necessidade de aderir a uma cultura de avaliação para, dentro da sua margem autonomia, orientar as suas dinâmicas no seio de uma sociedade marcada pela incerteza decorrente das constantes mudanças. Associada à avaliação, a procura, a promoção e a qualidade, nomeadamente a qualidade dos seus currículos e, logo, das aprendizagens dos alunos, têm sido enfatizados por todos os que intervêm na escola.
Ao encararmos a auto-avaliação como um meio de aprendizagem da escola, sobretudo de criação de dinâmicas de desenvolvimento curricular flexíveis, integradas e contextualizadas, sustentamos que ela proporcionará, constantemente, informação com enorme probabilidade de ser utilizada em prol da regulação das acções necessárias ao alcance destes objectivos. Porém, o que é um currículo de qualidade? o que é uma aprendizagem de qualidade? os diversos elementos da comunidade educativa partilharão as mesmas perspectivas sobre a qualidade que a sua escola deve promover, ou existirão opiniões divergentes?
O recurso a uma metodologia que facilite, não apenas a junção dos múltiplos referenciais provenientes dos diversos pontos de vista que existem na e sobre a escola mas, sobretudo, que ajude a construir, a problematizar e a explicitar referenciais que indiquem um sentido colectivo das acções da escola, poderá ser um caminho com potencialidades formativas. A ausência de formação que tem prevalecido em Portugal e algumas investigações desenvolvidas neste domínio (Correia, 2006) identificam constrangimentos vários que as escolas enfrentam para desenvolver o seu dispositivo de auto-avaliação.
É, neste sentido, que surge o Projecto de Avaliação em Rede - PAR, cuja principal finalidade é a de criar uma comunidade de aprendizagem que desenvolva um dispositivo de auto-avaliação contextualizado, que permita o desenvolvimento de aprendizagens significativas que sejam úteis, entre outros, à melhoria do processo de desenvolvimento curricular. Assim, o PAR é uma iniciativa que surge da necessidade, quer de formação dos responsáveis, na escola, pela auto-avaliação, com incidência nas questões curriculares, quer da criação de uma rede de partilha de experiências que quebre o isolamento que ainda persiste nas nossas escolas. Estruturado em duas fases, o PAR pretende, numa primeira fase, desenvolver uma formação que habilite os actores a desenvolver o seu dispositivo de auto-avaliação e, numa segunda fase, promover a troca de experiências entre os actores e avaliar os seus procedimentos.
Agendado o seu início para o mês de Outubro de 2008, o projecto PAR integra onze escolas e agrupamentos de escolas da zona norte de Portugal, que responderam ao desafio de fazer parte de uma rede de escolas que, sustentadas nos contributos teóricos e nos resultados da investigação, construam um dispositivo com potencialidades de regular e avaliar as suas aprendizagens.

Bibliografia
Correia, Serafim (2006). Dispositivo de Auto-avaliação de Escola : intenção e acção. Um estudo exploratório nas escolas públicas da região norte de Portugal. Braga: Universidade do Minho. (Tese de Mestrado)


Maria Palmira Alves

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O destino


O André não gostava da escola. Para ele estar ali, obrigado a fazer o 9º ano, não fazia sentido. Do que ele gostava era do trabalho no campo com o pai. As mãos rudes que se espetavam, desesperadas, nos cabelos desalinhados quando tinha que responder a uma pergunta, eram um sinal disso. O André gostava de se levantar cedo, tratar dos animais, cavar a terra. Tinha as unhas sujas e lascadas, calos nas mãos e alguma sujidade que uma lavadela rápida não conseguia tirar; e nem sempre as roupas estavam melhores; os livros e cadernos sofriam alguns maus-tratos, os materiais ficavam muitas vezes esquecidos em casa e as grandes passadas do André faziam-no entrar sempre desastradamente, na sala ou outro lugar que não fosse o espaço exterior de horizontes abertos.
A mãe do André não sabia ler e o pai mal assinava o nome. Não percebiam para que era a escola quando o filho podia ajudar muito mais em casa, nos trabalhos pesados da pequena quinta. E com dificuldade, sem uma alternativa à vista, o André esforçava-se desesperadamente para acabar aquele 9º ano, desenhado de igual modo para todos. O André era meu aluno e eu preocupava-me com ele, com os seus modos desastrados, quase primitivos, uma força da natureza. Tentava sobretudo que ele não perdesse a esperança, que terminasse o 9º ano.
Na mesma escola andava a irmã mais nova. Um dia descobri quem era. Fiquei espantada. No trânsito apressado entre salas e corredores já tinha reparado naquela aluna delicada, cuidada e sempre sorridente. Mais admirada fiquei quando descobri que era irmã do André. Soube depois que era uma excelente aluna que terminava 9º ano com 5 a tudo. A Teresa era em tudo o contrário do André. Delicada, harmoniosa, cuidada na sua aparência, sempre sorridente, mostrava a sua felicidade de estar na escola.
Um dia na cantina sentou-se na minha mesa. Esperou que eu terminasse de comer para se levantar. Entretanto falou-me dos seus sonhos, das suas expectativas. Tinha a certeza que ia conseguir uma bolsa de que a directora de turma lhe falara, ia continuar a estudar, queria fazer medicina (era uma barra a matemática e biologia) e os olhos brilhavam-lhe de entusiasmo. Já tinha conseguido convencer os pais e sabia que ia continuar a manter a sua média elevada.
No início do ano seguinte não vi a Teresa. Perguntei ao André que me disse que ela estava doente. Foi só em Janeiro que a voltei a ver. Trazia um braço engessado, estava triste e pensativa. Os olhos tinham perdido o entusiasmo e segurança que lhes conhecia. Contou-me então como, numa aula de Educação Física, num lançamento de basket (em que era exímia) tinha caído e fracturado o braço. Tinha sido operada no Hospital e alguma coisa correra mal. Fizera segunda operação e estava à espera. Não houve reclamações dos pais nem na escola nem no Hospital. Não era o tipo de coisas que os pais soubessem fazer, reclamar junto de instituições.
Quando voltei a falar com a Teresa era o fim do ano. O braço direito estava efectivamente ligeiramente defeituoso. Mas a mágoa da Teresa era outra: já não fazia lançamentos surpreendentes em Educação Física. O professor agora classificara-a com 13. A média em que ela tanto apostara tinha fugido. E com ela os seus sonhos e projectos. O acesso à bolsa estava comprometido e mais ainda a entrada em medicina.
E que disse o professor, meu colega, quando lhe coloquei a questão? Educação Física é uma disciplina como qualquer outra, se não executa no máximo não pode ter o máximo... Não, não tem que se preocupar com as diferentes especificidades de cada aluno. Isso da escola inclusiva é para outras situações, não para situações como esta. E a Teresa não vai para medicina? Paciência.
Paciência disseram os pais, já era o destino?


Angelina Carvalho

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A Escola pós-25 de Abril chegou ao fim...


A escola que foi possível construir após o 25 de Abril de 1974, a escola que ficou conhecida como democrática, alicerçada em valores tais como a igualdade de oportunidades (de acesso) para todos, a democraticidade, a integração comunitária, a cidadania democrática, a liberdade e a justiça social, articulados com uma ideia de autonomia dos professores e das escolas (ideia, aliás, nunca concretizada nos planos político, educativo e organizacional), chegou ao fim e de um modo que, de certa forma, podemos considerar como surpreendente: este fim não anunciado foi concretizado por um governo que se afirma como (único?!) herdeiro do património democrático do país e defensor do que designa por escola pública democrática. A surpresa não está no facto de ser um governo que se afirma tributário do socialismo dito democrático, pois já possuímos abundantes exemplos, nacionais e internacionais, acerca do modo como os socialistas exerceram e exercem o poder no quadro da hegemonia ideológica neoliberal. A surpresa está no modo iluminado e, por consequência, autoritário, arrogante e inflexível como concebeu as mudanças em curso e o (curto) horizonte temporal definido para a sua aplicação no plano das escolas.
A leitura do Programa do XVII Governo Constitucional, no que à educação diz respeito, permite-nos, agora que nos encontramos próximos do fim da legislatura, perceber o alcance do mesmo, embora seja ilegítimo afirmar que as sucessivas medidas legislativas que todos conhecemos e que sufocaram as escolas em tão curto espaço de tempo, tenham sido objecto de legitimação através do voto popular. Todos sabemos que são poucos aqueles que têm como hábito estudar os programas dos partidos quando se submetem ao escrutínio do voto, assim como os programas de governo construídos na sua base. Mas nenhuma leitura do Programa em questão poderia antecipar o que ocorreu nos últimos três anos no campo da educação.
Como é hoje evidente, o consulado de Maria de Lurdes Rodrigues foi estruturado em torno de uma concepção de escola e de profissão que nos diz que a primeira seria um local de desperdício, de ineficácia e de ineficiência, e a segunda como um modo de afirmação de pessoas incompetentes, acomodadas e privilegiadas. Por outras palavras, as escolas seriam incapazes de educar adequadamente os alunos, não se preocupando minimamente com as suas aprendizagens e o seu desenvolvimento, e os professores uma espécie de mercenários que importava, rapidamente, colocar na «ordem». «Partir a espinha» aos professores terá sido a palavra de ordem (implícita ou explicitamente, interessa pouco) que orientou (e orienta) a prática deste triste consulado. Agora que nos encontramos próximos do seu fim, e independentemente do modo como será superado o radical antagonismo que opõe o Governo às escolas e aos professores, uma coisa parece certa: a escola que todos conhecemos e que edificamos nas últimas três décadas, chegou ao seu fim. Por isso, mais do que fazer de conta que se negoceia, seja o estatuto da carreira docente, a avaliação, o acesso à profissão, a escola a tempo inteiro, as novas oportunidades ou outro tópico qualquer, aquilo que importa é mobilizar as escolas (entendidas finalmente como interlocutores essenciais de qualquer processo de mudança estrutural da educação, dando significado ao conceito de autonomia) e os professores para um empreendimento ciclópico, é certo, mas necessário e urgente face ao estado a que se chegou: a concepção do que podemos designar por projecto de educação para o país, tarefa que nunca foi encetada entre nós de um modo explícito e que terá de ser concebida como central neste momento de transformação em que vivemos. O projecto neoliberal para a educação, centrado na ideia de avaliação externa das escolas e dos professores, no cheque-ensino e na liberdade de escolha parental das escolas, aí está em todo o seu esplendor argumentativo, à boleia da desastrada política do Governo apoiado pelo PS. A descentralização educativa e a consequente autonomia das escolas constitui, certamente, uma dimensão inelutável do futuro projecto para educação, mas sabemos que existem diferentes modos de o conceber, o que implica um sério debate no interior das escolas e da sociedade em torno da ideia de escola pública, de qualidade e democrática, orientada para o desenvolvimento das pessoas, afinal o único que verdadeiramente interessa.

Manuel António Ferreira da Silva

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Aprender a ser


Não é ao título do famoso relatório coordenado por Edgard Faure, por encomenda da UNESCO e datado de 1972, que me quero referir com a colaboração que hoje aqui trago, embora reconheça que o texto em referência bem merecia uma revisitação, dada a sua actualidade em muitos aspectos, designadamente em alguns daqueles de que me vou ocupar de imediato.
A articulação entre a aprendizagem e o sentido da existência é hoje uma questão que poderá soar a muito boa gente como destituída de todo o interesse, seja qual for a dimensão que se considere para a analisar. Na verdade, a representação dominante que se aplica à questão da aprendizagem passa bem longe do sentido da existência se por tal expressão entendermos um juízo que relacione intencionalmente o processo de aprender como um modo integrado de desenvolvimento do próprio ser humano, assumido na sua unicidade experiencial. À medida que a escola foi ocupando todo o espaço «educativo» em nome de uma legítima e muito desejável igualdade de direitos, foi remetendo para o limbo das preocupações sociais e morais o problema da especificidade da relação pedagógica, essencial ao estabelecimento de uma comunicação significativa mercê da qual o aluno possa ser reconhecido na sua identidade real. Sem esse reconhecimento, que tornará possível a construção de um projecto pessoal em busca de uma identidade potencial desejada, a pessoa do aluno corre o risco de se ver reduzida apenas à simples condição de aluno, inevitável e permanentemente disputada entre o sucesso o fracasso. O desfecho só pode ser o agravamento das desigualdades reais, reforçando a escola à saída o que era suposto combater à entrada.
A este propósito, é muito pertinente reflectir no que diz algures F. IMBERT quando escreve que "efeitos devastadores, na escola, de situações repetidas de insucesso acabam por gerar uma renúncia ao ser e consequentemente ao conhecer". Ninguém contestará que o artífice decisivo na construção da ponte entre o ser e o conhecer é a pessoa do professor, embora se reconheça com toda a simplicidade que as condições em que hoje se trabalha nessa ponte comprometem seriamente a possibilidade de ligação. Todas as reflexões que se ocupam desta problemática pedagógica, centrada na pessoa do professor como mediador da construção do aluno, põem em evidência a importância do bem-estar pessoal e do equilíbrio emocional, indissociável da confiança profissional, como condição essencial daquela ligação. Ora, é justamente isso que está em causa quando se olha para o interior da profissão a partir dos efeitos das intervenções políticas e administrativas registadas nos últimos tempos sobre a carreira dos professores. As intensas movimentações profissionais, o seu carácter compacto e massivo, simultaneamente festivo e indignado, só podem significar que os professores sentem que a sua segurança psicológica e profissional está por um fio e por isso se justifica toda a resistência, mesmo que isso possa não corresponder, de facto, à realidade. Os tempos, que aí vêm, adivinham-se como sendo de intensa competição, calculismo, estratégia e concorrência. É tempo de cada cuidar de si, ciosamente.
Que tempo sobra, então, para a disponibilidade, para a cumplicidade, para a ponte com o aluno, enquanto pessoa em construção?

Manuel Matos

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Professor-agricultor


As linhas que se seguem são um excerto de uma entrevista dada por uma das melhores alunas do Ensino Secundário: "as notas não são uma medida muito precisa das capacidades e competências. Claro que os testes servem para avaliar se uma pessoa está ou não nervosa. Se a pessoa sabe está mais segura, tira melhor notas. Mas as coisas não funcionam sempre assim (?). Por vezes, os professores são muito maltratados e culpados de todos os males. E isso não é justo. Há pais que não têm a percepção de que os professores estão a fazer um serviço à comunidade. Alimentam a história de que os professores não fazem nada, trabalham meia dúzia de horas, ganham bem.
Estamos perante um pequeno retrato da vida de professor. Ser professor é sem dúvida complicado. Não fosse esta conjuntura socioeconómica, tenho a certeza de que muitos professores abandonariam a profissão (tal como aconteceu em Inglaterra há uns anos). Recentemente, alguém me descrevia umas das suas aulas do 5º ano de escolaridade: "enquanto escrevia no quadro, o aluno batia com as mãos na carteira, como se fosse um tambor. E continuou, mesmo depois de vários avisos?.e continuou? até ser expulso da sala de aula. E tive que o agarrar pelo braço, porque não queria sair. Mais tarde, outro atirava bolinhas de papel, soprando com a esferográfica. Até colocou um alvo na parede? de repente, já estavam a enviar SMS uns para os outros? São muitos alunos desinteressados? Assim é difícil."
A verdade é que a escola pouco mudou em termos organizacionais ? e muitos professores pouco mudaram as suas práticas ? e tem vivido uma fase de estratégias "top-down", que a tem enredado numa teia legislativa esquizofrénica, nem sempre proveitosa. Não é por acaso que o professorado costuma dizer que quem decide não tem a noção do que é uma sala de aula. Este desfasamento entre quem decreta e quem pratica na sala de aula leva-me a relembrar um colóquio sobre questões curriculares que assisti na Universidade do Minho. Uma professora universitária defendia acerrimamente o Portefólio como instrumento no processo de avaliação dos alunos. Depois de confrontada por vários professores do 3º Ciclo, que não consideravam essa ideia exequível tendo em conta o número de alunos a seu cargo (entre 150 e 180), a investigadora declarou inexplicavelmente o seguinte: compreendo-os? eu apliquei este instrumento numa turma de 25 alunos e não voltarei a repetir, na medida em que foi extremamente cansativo?
Cada vez mais um Homem dos sete ofícios, a quem muito se pede, o professor raramente é valorizado socialmente, não aparece nos telejornais, sobrevive na maioria das vezes no anonimato dentro da sala de aula, mas tem um poder inimaginável ? o poder de revolucionar a sociedade. O poder de regar e adubar, de mover e melhorar o mundo, porque trabalha com as sementes.
Apesar de se viverem momentos conturbados, vale a pena nunca baixar os braços e continuar a ser um Professor-agricultor (sempre com a enxada na mão, para se defender das possíveis agressões).


Miguel Gameiro Silva

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

As escolas mudaram… em que direcção?

Ninguém recusa a necessidade de promover mudanças substanciais no quotidiano das nossas escolas. Algumas mudanças podem ser dolorosas. No entanto, a dor, a angústia e a tensão vivida pelos docentes, ao longo destes últimos quatro anos, foi inútil.

Maria de Lurdes Rodrigues, a ministra da educação, está em final de mandato. Olhando, em retrospectiva, a obra de política educativa pela qual deu a cara parece assemelhar-se a um campo de pastoreio onde um inábil e sôfrego guardador de rebanhos foi ateando pequenos fogos que, a partir de um determinado momento, se transformaram num incêndio de proporções desmedidas. Um incêndio de uma grandeza tal que não é possível calcular o montante e o impacto real dos prejuízos que possa ter causado.

Ainda que sejamos obrigados a acreditar que tudo se renova, quanto mais não seja porque a desesperança é o pior dos males, somos obrigados, também, a interrogarmo-nos porque é que foi possível viver um tal pesadelo. Trata-se de uma reflexão obrigatória quanto mais não seja porque, no futuro, nos pode ajudar ou a precaver-nos de outras catástrofes idênticas ou a prever, de forma mais rigorosa, os seus contornos e o nosso contributo para as mesmas.

A deriva tecnocrática, sustentada por um voluntarismo insensato que uma maioria absoluta permitiu, é uma das imagens mais marcantes deste governo e deste ministério, sobretudo quando se compreende que tal deriva tecnocrática se transformou numa deriva autocrática. Uma deriva que é responsável pela reforma antecipada de tantos professores que pautaram a sua vida profissional pelo empenho e pela dedicação profissionais, publicamente reconhecidas. Uma deriva que está na origem, também, do profundo cansaço e desânimo que, hoje, se fazem sentir nos discursos dos docentes no activo, os quais se devem, em larga medida, quer à imposição de um programa de avaliação de desempenho que nada tem a ver com avaliação e com desempenho, quer devido à adopção de medidas políticas no domínio da administração e da gestão das escolas, através das quais se expressa tanto a desconfiança face aos modos de governação colegiais, como, subsequentemente, a valorização das atitudes de liderança autoritárias que, assim, são entendidas como uma solução a mobilizar para enfrentar os problemas com os quais se defrontam as escolas nos dias que correm. Parte-se do princípio que é a falta de autoridade nestes contextos que explica as eventuais insuficiências e vulnerabilidades das acções educativas que aí se promovem. Embora este raciocínio faça doer pela linearidade do mesmo, é em função dele que se sustenta a crença que faz depender a competência e a qualidade da acção profissional dos professores dos constrangimentos a que estes possam ser sujeitos pelos respectivos directores.

Ainda que ninguém possa recusar a necessidade de promover mudanças substanciais no quotidiano das nossas escolas ou possa deixar de reconhecer que estas mudanças serão sempre dolorosas, importa considerar, no entanto, que a dor, a angústia e a tensão vivida pelos professores, ao longo destes últimos quatro anos, foi inútil. Isto é, não se deveu, de facto, a um projecto de transformação das escolas suficientemente pertinente e credível, do ponto de vista da valorização de novas atitudes por parte dos docentes, de novas práticas pedagógicas ou de novos modos de relacionamento entre pares. Como a medida, recentemente anunciada, de tornar obrigatório o 12º ano de escolaridade o comprova, muita da governação a cargo da equipa liderada por Maria de Lurdes Rodrigues fez-se para ficar bem na fotografia, de forma a legitimar iniciativas, apaziguando alguns grupos de pressão que foram decisivos, pelo menos até dado momento, para que a ministra sobrevivesse incólume e, simultaneamente, tivesse cumprido a sua quota-parte no combate ao deficit, esse propósito já esquecido, em função do qual se justificou o processo de consolidação da lógica de mercantilização no âmbito da administração das instituições e dos serviços públicos. Só isto explica, aliás, a bonomia demagógica com que o Ministério da Educação não se distanciou da proposta do presidente da CONFAP quando este sugeriu a possibilidade das escolas passarem a estar abertas 12 horas, afirmando, por exemplo, que esta é uma questão que não lhe diz respeito.

Ainda que se possa parodiar a referida proposta, lembrando que se os alunos passando a estar tantas horas nas escolas deixa de fazer sentido haver associações de pais, porque, neste caso, os pais e as mães passam a ser os professores e os educadores que aí trabalhem, importa afirmar, finalmente, que esta é outra das razões que explica o mal-estar que grassa, hoje, entre os docentes. Um mal-estar que tem a ver com a ideia que esta equipa ministerial permitiu acalentar e acalentou, em função da qual a escola necessita de se afirmar como uma instituição de carácter social para poder cumprir o seu papel como instituição educativa. Uma proposta que, como todos adivinhamos, contribuirá, a prazo, para destruir a escola pública, sobretudo quando se hesita em compreender que uma escola cumpre as suas funções sociais, no momento em que cumprir as suas funções culturais e não no momento em que prescindir destas para poder responder àquelas.



Ariana Cosme
Rui Trindade



quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma conciliação necessária na formação de professores


A recente exigência do grau de mestre – para além de uma licenciatura em educação - para a docência, só pode tornar-se oportuna e útil se a componente de investigação for genuinamente incorporada no 2º ciclo de formação (mestrado).

A legislação sobre os graus académicos e diplomas do ensino superior (DL.74/2006 alterado pelo DL 107/2008) estipula que «no ensino universitário (EU), o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre deve assegurar que o estudante adquira uma especialização de natureza académica com recurso à actividade de investigação, de inovação ou de aprofundamento de competências profissionais (art.º 18, 3)» enquanto no ensino politécnico (EP), o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre «deve assegurar, predominantemente, a aquisição pelo estudante de uma especialização de natureza profissional (art.º 18º, 4)». Mais adiante (art.º 20º, 1, b) refere que o ciclo de estudos conducente ao grau de mestre integra «uma dissertação de natureza científica ou um trabalho de projecto, originais e especialmente realizados para este fim, ou um estágio de natureza profissional objecto de relatório final (…)».

No conjunto deste articulado são omissas referências explícitas à investigação nos mestrados no EP. Percepciona-se, mesmo que entendido como recomendação, que os mestrados realizados no EU devem ser, primordialmente, de natureza académica com recurso à actividade de investigação e, como consequência lógica, a 2ª parte do curso seria constituída por uma dissertação de natureza científica. Por outro lado, os mestrados no EP devem assegurar a aquisição de uma especialização profissional que, embora não excluindo uma dissertação, culmina num trabalho de projecto ou num estágio. À 1ª vista parecem ser orientações com sentido tendo em conta a natureza potencialmente profissionalizante das formações no EP. No entanto, podem sugerir que as formações, ao nível de pós graduação, para competências profissionais, podem ser feitas, com qualidade, sem investigação ou processos cientificamente fundamentados. Além disso, pode reforçar negativamente as naturais diferenças entre os dois subsistemas desvalorizando, no EP, a investigação enquanto elemento essencial de qualidade em qualquer deles. Em ambos é uma das pedras de toque de qualidade das formações especializadas, independentemente dos modos como nelas é incorporada. Não são as incidências em trabalhos de projecto ou estágios e respectivos relatórios, muito importantes no EP, que deles arreda a investigação. Nem é a subjectividade do discurso da lei que impedirá que, através de diversas metodologias e estratégias, ela tenha um lugar de destaque na realização das pós-graduações profissionalizantes.

Esta questão tem particular relevância na formação inicial de educadores e professores dos 1º e 2º ciclos, realizadas no EP e em algumas universidades.

A recente exigência do grau de mestre – para além de uma licenciatura em educação - para a docência, só pode tornar-se oportuna e útil se a componente de investigação for genuinamente incorporada no 2º ciclo de formação (mestrado). Para isso, percepcionam-se resistências mas também possibilidades. Uma das resistências decorre da excessiva antecipação, para arena da formação inicial, da tradicional representação do professor enquanto prático, valorizando-se o que supostamente resulta, de modo imediato, em qualquer cenário real de ensino. Tal representação tem implicações na concepção dos currículos e nas práticas de formação e supervisão. Estas são, com frequência, exclusivamente baseadas em modelos de «boas práticas», supostamente generalizáveis, observadas e textualmente reproduzidas, isentas de reflexões críticas. Tem sido frágil o protagonismo da investigação como prática ou como explicitação do observado e realizado nos estágios. A ultrapassagem desta resistência, depende dos modos como as instituições, os formadores e supervisores perspectivam a investigação na concepção e realização dos projectos e dos estágios. No núcleo das práticas parece indispensável colocar supervisores com formações, a nível de doutoramento, e percursos de investigação e de práticas reflexivas com qualidade, que permitam apoiar os futuros docentes (a) a tornarem-se investigadores dos seus contextos educacionais e das suas próprias práticas e (b) a conceber quadros de referência profissionais em que as perspectivas práticas e investigativas na docência sejam conciliadas através de atitudes e modalidades de investigação adequadas às diversas exigências dos contextos e sujeitos educativos.


Carlos Cardoso

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Professores consideram que rankings originam “julgamento público negativo” sobre a classe


Estudo analisa as percepções dos professores do ensino secundário sobre rankings de escolas

Em Agosto de 2001 era publicado, em Portugal, o primeiro ranking de escolas. Desde essa altura, os rankings passaram a ser publicitados todos os anos por vários meios de comunicação social e têm estado no centro de um intenso e polémico debate. Atenta a esta questão, Benedita Portugal e Melo, professora do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, conduziu um estudo através do qual procurou analisar a reflexividade simbólico-ideológica do debate mediatizado, mas sobretudo perceber os efeitos da sua publicação nas práticas profissionais dos professores. Intitulado “Os professores do ensino secundário e os rankings escolares - reflexos da reflexividade mediatizada”, o estudo será publicado em livro em Setembro deste ano. Nesta entrevista damos a conhecer, e antecipamos, algumas das conclusões que resultaram deste trabalho de investigação.

O que a levou a avançar com este trabalho?

Este trabalho constitui o objecto de estudo da minha tese de doutoramento. Nessa altura, em 2003, os rankings escolares eram ainda um tema pouco familiar à maioria dos professores do 12º ano e não tinham sido sistematizados pelos meios de comunicação social. Além disso, e apesar das inúmeras reflexões mediatizadas que se iam produzindo em torno deles, os rankings não tinham sido ainda alvo de qualquer estudo científico que analisasse as consequências da sua publicação nas práticas organizacionais e pedagógicas dos docentes do ensino secundário.

Ao mesmo tempo, este era um tema que me interessava também como material pedagógico - os meus alunos colocavam-me variadas questões em torno dos rankings, nomeadamente o seu efeito nas práticas dos professores -, tendo procurado, através do debate que era produzido nos jornais, em particular no Público, explicar-lhes o contexto ideológico que estava por trás da produção e da defesa dos rankings. Por estas razões, e porque as minhas áreas de interesse cruzavam a Sociologia da Educação com a Sociologia da comunicação, decidi avançar para este trabalho.

Que metodologia utilizou?

O trabalho de campo decorreu ao longo de 2005, tendo sido pedido a 85 professores do 12º ano de escolaridade que manifestassem as suas opiniões sobre os rankings escolares relativos a 2001, 2002, 2003 e 2004. Os docentes eram oriundos de seis escolas secundárias situadas em diferentes regiões, ilustrando as disparidades socioeconómicas, culturais e geográficas do país. Estas escolas, aliás, ocupavam posições muito diferentes nos rankings escolares, uma invariavelmente nos primeiros lugares; outras nos últimos lugares; as restantes em posições intermédias.

O que evidenciaram os resultados que recolheu?

O inquérito mostrou que 57,6 por cento dos professores inquiridos discordam da publicação anual das listas que ordenam, por escola, as classificações dos exames de 12º ano, ao passo que 42,4 por cento afirmou concordar com a sua publicação. De uma maneira geral, porém, diria que os rankings escolares não são percepcionados pela maioria destes professores como um meio de dar a conhecer publicamente os resultados da sua competência pedagógica e permitir-lhes recuperar a auto-estima.

Na realidade, os critérios de justiça que passaram a regulamentar as práticas lectivas dos professores e que estes valorizavam poderão estar em causa desde que passaram a ser alvo deste tipo de avaliação pública. A questão passará justamente pelo facto de muitos docentes considerarem que não é o produto das suas práticas que é alvo de uma avaliação pública, mas os resultados que os alunos obtêm nos exames.

Neste sentido, mais de metade dos professores entrevistados entende que os rankings escolares originam um julgamento público negativo sobre eles. Aliás, é bastante mais significativo o número de inquiridos que considera que a acção de todos os professores do ensino secundário público é avaliada negativamente (20,2%) do que aqueles que apenas remetem esta emissão de juízos de valor para os docentes que leccionam nas escolas pior posicionadas (13,8%). Embora alguns destes professores também entendam que esta avaliação da opinião pública se dirige igualmente aos alunos que frequentam o ensino público (11,7%), têm a percepção de que é sobretudo a imagem do seu trabalho que está em causa. A consciência que evidenciam sobre a possibilidade de os rankings escolares terem acentuado a emergência de um mercado escolar é revelada por 18,2 por cento dos inquiridos.

Quais são os argumentos daqueles que se mostraram favoráveis à publicação dos rankings?

Nas justificações dadas pelos inquiridos que são a favor da publicação dos rankings escolares, é possível detectarem-se argumentos próximos das concepções que os entendem como um meio capaz de medir a qualidade do ensino ministrado nos diferentes estabelecimentos escolares, expressos em afirmações como “é sempre uma forma de tomar conhecimento da realidade global do ensino em Portugal” ou “é uma forma de comparação de resultados que considero bastante válida e, por vezes, dá para inferir conclusões quanto aos critérios de avaliação utilizados nas escolas”.

Confrontados com uma retórica que acentua a necessidade de os professores desenvolverem um serviço de qualidade com vista aos interesses dos utentes da escola, estes docentes parecem ter incorporado o discurso dos produtores de opinião que entendem que os rankings escolares produzem informações objectivas e fidedignas sobre a realidade educativa nacional.

Outras perspectivas associam-se a estas mas, apesar de traduzirem o mesmo espírito, mostram-se mais críticas, na medida em que colocam reservas ao processo de elaboração dos rankings escolares. Um outro conjunto de docentes revela-se mais preocupado com a utilização que deveria ser feita dos rankings, defendendo que estes deveriam ser aproveitados para se promover a melhoria do sistema educativo público.

E aqueles que discordam, o que dizem?

A grande maioria dos inquiridos que não concorda com a publicação dos rankings de escolas desconsidera precisamente os critérios “objectivos” que presidem à sua elaboração, entendendo que estes não são adequados para reflectir publicamente a qualidade do seu trabalho e o dos seus pares. Todavia, tal como os professores que concordam com a publicação dos rankings, parte dos inquiridos que apresentam uma opinião oposta não deixa de considerar que estão sujeitos a um julgamento público, porventura mais acentuado devido à existência de um mercado escolar atento aos resultados dos rankings.

Na opinião de outros docentes, o problema deste julgamento público reside justamente no facto de os rankings escolares reflectirem uma imagem errónea da actividade que é realizada nas escolas secundárias públicas. Nesta ordem de ideias, rejeitam a realização de uma hierarquização profissional produzida a partir do exterior da escola, que percepcionam como profundamente penalizadora e injusta.

Ao criticarem os critérios de elaboração dos rankings e ao não considerarem importante o lugar ocupado pela sua escola naquelas listas, outros docentes não só manifestam a sua discordância perante a ordenação e hierarquização do mundo escolar em torno dos valores da eficácia e da produtividade, como ainda denunciam os seus efeitos perversos, isto é, o facto de estes poderem gerar dissonâncias que ameaçam a função democratizadora da escola e o favorecimento de práticas de ensino instrumentalizadas e mercantilizadas.

Em síntese, os dados que estas listagens apresentam não só não traduzem a complexidade do trabalho escolar e o conjunto de dimensões que o envolvem, como inclusivamente ocultam o papel dos factores sociais e culturais no insucesso escolar, aspecto salientado por muitos docentes quando mencionam o facto de os rankings não terem em atenção estas variáveis.

Que tipo de efeitos produzem os rankings escolares nas práticas profissionais?

O facto de a maioria dos professores percepcionarem os rankings escolares como meios que produzem um julgamento público sobre o mundo escolar em geral, e sobre o seu desempenho, em particular, não é condição suficiente para que estes tenham alterado significativamente as suas práticas profissionais quotidianas. Na verdade, apenas 22,4 por cento dos inquiridos assumiram que a publicação dos rankings escolares influenciou o modo como passaram a leccionar.

O processo de recepção das mensagens mediáticas é um processo de “negociação do significado” no qual interferem diversas variáveis. A falta de credibilidade e confiança que os docentes atribuem aos critérios que presidem à elaboração das listas ordenadas das escolas, por um lado, e o facto de ideologicamente defenderem a realização de uma avaliação multidimensional que integre os aspectos qualitativos da realidade educativa, por outro, explicarão porque motivo a grande maioria dos inquiridos não alterou as suas práticas pedagógicas.

Um outro factor poderá, para além disso, ajudar a explicar porque razão uma parte significativa dos docentes não alterou as suas práticas lectivas: muito simplesmente porque estas já visavam o objectivo exame e já tinham em atenção as diferenças entre as notas obtidas na frequência e as notas dos testes nacionais.

Os rankings escolares parecem, assim, ter sobretudo influenciado a forma como os professores passaram a avaliar os seus alunos. A valorização da avaliação aferida dos desempenhos dos alunos em detrimento da avaliação formativa constituirá a consequência mais evidente da adopção destas práticas. O risco de a multiplicidade de olhares sobre os alunos se ir reduzindo e de estes passarem apenas a ser representados como meros reprodutores de conhecimento torna-se então bastante provável, como, aliás, o reconheceram alguns professores.

Os efeitos são mais visíveis nas práticas organizacionais?

Sim, penso que os dados obtidos permitem concluir que os rankings escolares já foram assumidos pelos professores, e pelas próprias escolas, no sentido de interferirem nas práticas organizacionais dos estabelecimentos de ensino. O grau de atenção que é dedicado aos rankings em cada escola é, porém, muito diverso, dependendo de factores tão diversos como a credibilidade que é conferida aos próprios rankings escolares pelos membros dos conselhos executivo e pedagógico, pelos restantes professores e mesmo pela situação de concorrência no mercado escolar vivenciada por algumas escolas. Neste sentido, 37,5 por cento dos inquiridos referiram, por exemplo, que os rankings levaram à adopção de estratégias específicas que permitissem à sua escola melhorar os resultados obtidos nos exames de 12º ano.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O ensino das artes é um problema com três pês


É preciso que a Educação seja encarada de forma transdisciplinar, de forma inclusiva e com metodologias eficazes a desenvolver a partir de opções de fundo que conduzam os jovens por um caminho de crescimento harmónico e cultural que consagre valores universais e direitos individuais.

A função das Expressões Artísticas nos curricula e no quotidiano real das escolas tem sido considerada segundo diferentes pontos de vista e, por isso, sofrido alterações bastante oscilantes nos últimos cem anos.

Para uns, a Arte nas escolas regulares funcionará apenas como um placebo. Para colmatar a doença que a Escola arrasta atrás de si há vários anos, muitos responsáveis pela educação forjam programas de índole artística em actividades super-extracurriculares, esquecendo a necessidade de formação dos professores especialistas e dos docentes generalistas e ainda o facto de as diversas expressões fazerem parte do desenvolvimento global de cada ser humano e deverem estar integradas em qualquer aprendizagem. A placeboterapia é bastante desapropriada neste contexto. Se é possível curar um doente de qualquer doença pressuposta ou real com um medicamento sem qualquer acção farmacológica, já em educação não é possível fazer de conta; mesmo quando se joga, a simulação tem um fim educativo; ainda que em jeito de brincadeira, é sempre uma realidade que pretende desenvolver a capacidade de iniciativa, a criatividade, a inteligência emocional.

Outros há que, não acreditando nas expressões na escola como algo que enriqueça a formação dos estudantes futuros cidadãos do mundo, as vêem como algo que serve para acalmar, um tratamento que, sem curar, consegue aliviar as dores de que “médicos”, “pacientes” e, sobretudo “directores de hospitais” tanto vão padecendo actualmente. As artes como um paliativo. Paliar: disfarçar, encobrir, remediar provisoriamente. Acrescenta-se mais uma coisinha, oferece-se um órgão musical, toma-se uma medida que até parece correcta; é a ideia de que as artes - mais do que o valor que possam ter por si mesmas, integrando faculdades físicas, intelectuais e criativas, contribuindo para o desenvolvimento cognitivo segundo perspectivas únicas impossíveis com outros meios educativos e para a reinvenção da humanidade cada vez mais urgente neste espaço de neo-botas-de-elástico - servem unicamente de “trampolim” para aprendizagens de disciplinas ainda, reaccionariamente (por que não dizê-lo?) consideradas mais “bem-nascidas”.

No meio de toda esta confusão surgem aqueles para quem as artes resolveriam tudo em educação. A Educação pela Arte, que Herbert Read tão bem defendeu (como outros, antes e depois), se encarada de uma forma absoluta e por isso reducionista, pode acabar por ser bastante paradoxal. Vista como panaceia (remédio para tudo) que vai fazer com que dos indivíduos irradiem potencialidades e possam desenvolver todas as suas múltiplas inteligências corre o risco de não subsistir. Damásio refere que a presença do cognitivo em detrimento do emocional é uma das causas do declínio das sociedades contemporâneas. Creio que é preciso que a Educação seja encarada de forma transdisciplinar, de forma inclusiva e com metodologias eficazes a desenvolver a partir de opções de fundo que conduzam os jovens por um caminho de crescimento harmónico e cultural que consagre valores universais e direitos individuais.

Estes três “pês”, placebo, paliativo e panaceia, poderiam surgir como estratégias, de acordo com determinados contextos escolares. Muito do que a nível cultural se vivenciar nas escolas passará por parcerias com actores locais. O mais difícil é fazer evoluir a cultura e as mentalidades, sobretudo de governantes de verdade absoluta engolida; é em nome do povo que se tomam certas medidas, como o desprestigiar e encurtar cada vez mais a carga horária das expressões no currículo do Ensino Básico Português, de forma a que nem todos venham a ter na sua educação (sem terem que ter uma carreira artística) poesia, música, drama, dança, plástica, ou outras vertentes artísticas? Estamos a falar de curriculum regular para um povo que também tem direito a solfejar como os pássaros livres, a pintar aguarelas que atravessam os pensamentos, a esculpir imagens do futuro, a dançar alegrias rodopiantes, a tocar motivos do quotidiano em sons de cores variadas e a construir castelos de palavras; porque queremos ter bons artistas, mas também pretendemos que eles se sintam em casa, compreendidos e amados pelo seu público. Essa aprendizagem básica e integrada deve fazer parte, também, das principais reivindicações dos professores portugueses. Um país deve abrir muitos caminhos e não ter medo da imaginação, da criatividade e da liberdade que daí advêm. Portugal merece-o e precisa de erguer essa bandeira, para ter o seu lugar na Europa e no Mundo.



Rafael Tormenta

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Pais preocupados, escola a tempo inteiro e… novas oportunidades


Muitas das crianças e jovens que hoje integram o Sistema Escolar são, literalmente, filhos do insucesso e do abandono, questionamos toda uma organização que reduz o tempo de convívio diário entre pais e filhos.

O discurso em torno de uma suposta situação calamitosa do Sistema Escolar Público e, consequentemente, dos alunos que o frequentam é recorrente. Por força de uma mediatização cirurgicamente exponenciada da voz de diversos fazedores de opinião transformados em especialistas ad-hoc da coisa da educação, aquele discurso tem vindo a engrossar os contributos do neoliberalismo para o enfraquecimento do público em favor do privado.

Além do tratamento indiscriminado que globalmente apresenta de educação e ensino, trata-se de um discurso falacioso que, sob a capa de crítica à instituição escolar, mais não faz do que veicular despudoradamente a lógica neoliberal e conservadora de responsabilização das vítimas pelos seus próprios insucessos.

Entre outras dimensões ou vectores de análise esquece que muitas das crianças e jovens que hoje integram o Sistema Escolar são, literalmente, filhos do insucesso e do abandono. Embora longe de perspectivas determinísticas ou fatalistas da análise social, queremos com isto dizer que basta resgatar para essa análise as estatísticas sobre o insucesso e o abandono escolares das últimas décadas para rapidamente se poder concluir que o que realmente está em causa é a injustiça social que tem grassado na sociedade portuguesa e, consequentemente, a desigualdade no acesso aos mais diversos meios indutores e facilitadores do desenvolvimento.

Se é verdade que temos vários problemas no ensino que urge resolver, o que, do nosso ponto de vista, passa pela reconfiguração da própria instituição escolar, dos seus desígnios e dos seus modus operandi, considera-se que o que realmente se coloca em questão na actualidade são questões de educação, no seu sentido mais vasto, que embora se situem a montante da sala de aulas e da escola consubstanciam de forma omnipresente tudo quanto nelas se passa no seu quotidiano.

Vem isto a propósito de uma situação recentemente vivida: a D. Carla, chamemos-lhe assim, é mãe de um menino de 8 anos que frequenta o 3º ano de escolaridade. Empregada fabril que trabalha por turnos e que tem que deixar os filhos bem cedo entregues a uma ama, é uma mãe muito presente na escolaridade do filho e com permanentes preocupações relativamente ao seu desempenho escolar. Contacta amiúde com o professor para obter informações e gizar com ele estratégias de acompanhamento ao estudo em casa. Vive intensamente as dificuldades escolares do filho. Diz que já não sabe mais o que lhe há-de fazer até porque lhe dizem que o pai da criança também era um pouco assim. Diz que já não o consegue aturar e que até pensou que o melhor será reprová-lo para ver se melhora. Diz que já lhe prometeu uma “moto-quatro”, mas que por enquanto não vê jeitos de lha poder dar… “Ó senhor professor, olhe que nem com isto ele lá vai! O que é que eu faço?”.

Situações deste tipo não constituem algo de novo, ou extraordinário, no dia-a-dia de uma escola, no entanto, colocam, hoje, os professores que com elas são confrontados perante novas e muito pertinentes questões.

Desde logo, o acompanhamento que os pais fazem da vida escolar dos seus filhos, quando a actual equipa do Ministério da Educação enaltece as virtualidades do denominado programa de “Escola a tempo inteiro” e o dirigente máximo da Confederação Nacional das Associações de Pais advoga o alargamento do período de funcionamento das escolas da rede pública para as doze horas diárias. Pois, se somos defensores de uma escola pública que vá ao encontro das necessidades dos cidadãos, sejam eles pais trabalhadores com horários de trabalho alargados e desregulados, ou crianças provenientes de estratos sociais desfavorecidos que de outra forma não teriam acesso a uma refeição quente ou a aulas de Educação Musical, questionamos vivamente toda uma organização societal que tem reduzido a níveis muito preocupantes o tempo de convívio diário entre pais e filhos.

Interrogamo-nos também se a facilidade e rapidez com que as “novas oportunidades” concedidas àqueles que se viram precocemente afastados da escola – os pais das crianças que frequentam actualmente as nossas escolas – permitem que estes obtenham um diploma, não estará a contribuir para que os seus filhos – que hoje iniciam um percurso que a breve trecho terá obrigatoriamente doze anos – encarem com algum desmazelo as suas tarefas escolares, sabedores de que no futuro lhes será concedida uma “nova oportunidade”, eventualmente menos trabalhosa.




Joaquim Marques
ICE - Instituto das Comunidades Educativas
Rui Pedro Silva
CICS - Centro de Investigação em Ciências Sociais da Universidade do Minho

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

São precisas mais escolas de segunda oportunidade em relação à escolaridade formal


EDUCAÇÃO DE SEGUNDA OPORTUNIDADE

Todos os anos, cerca de quinze mil jovens portugueses saem da escola sem completarem o nono ano de escolaridade, aumentando as fileiras de cidadãos desqualificados. A Educação de Segunda Oportunidade, lançada na Europa em 1995, quer assumir-se como uma resposta educativa alternativa em relação sos sistemas formais de educação e formação. Para saber mais sobre este projecto, conversámos com Luís Mesquita, um dos mentores deste projecto em Portugal e presidente da Associação para a Educação de Segunda Oportunidade (AE2O).

Em que contexto surge esta escola?

Esta escola surge no âmbito do Projecto Europeu das Escolas de Segunda Oportunidade, projecto-piloto da Comissão Europeia iniciado em 1999 e prolongado até 2004, através do qual se criou uma rede de escolas - na qual chegou a estar incluída uma escola localizada no Seixal que, no entanto, acabou por encerrar. É em 2004, precisamente quando este projecto-piloto estava na sua fase final, que um grupo de professores destacado numa escola do concelho de Matosinhos abrangida pelo Programa Integrado de Educação e Formação na Escola (PIEFE), onde eu próprio me incluía, toma conhecimento dele. Na altura pareceu-nos que os intercâmbios internacionais previstos no projecto poderiam, de alguma maneira, ajudar os nossos alunos, pelo que estabelecemos um intercâmbio com uma escola dinamarquesa que integrava a rede. Nesse mesmo ano decidimos fundar a Associação para a Educação de Segunda Oportunidade (AE2O) e iniciamos o caminho que nos levou à abertura desta escola.

A associação tem um âmbito europeu e nacional?

O financiamento do projecto foi assegurado pela Comissão Europeia até 2004. Quando ele cessou muitas escolas fecharam portas. Depois disso, as escolas que permaneceram em funcionamento criaram uma rede a nível europeu através de uma associação de carácter não-governamental. Esta rede europeia, porém, é mais do que uma mera associação de escolas, porque inclui também autarquias e outras associações não-governamentais. Tem, por assim dizer, três níveis de filiação. Neste momento somos membros dessa rede como organização, porque o nosso processo de acreditação como escola está ainda a decorrer.

Esta escola distingue-se das do ensino formal sobretudo pela especificidade da sua oferta educativa. Pode elucidar-nos acerca deste aspecto?

Estas escolas surgem na medida em que existe um público europeu jovem, na faixa etária dos 15 aos 25 anos, caracterizado por baixas qualificações, pelo risco de exclusão social e, consequentemente, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, para o qual as respostas educativas formais são inadequadas. Neste sentido, as escolas de segunda oportunidade constituem sobretudo uma proposta motivacional, proporcionando uma oferta educativa que desperte interesse a estes jovens e lhes permita, entre outras coisas, regressar a um percurso formativo.

Cada formando tem à disposição oficinas vocacionais – electricidade, electrónica, construção civil, cozinha, hotelaria, turismo, multimédia e informática - onde ocupa a parte mais significativa do seu horário, complementada com actividades de educação artística, que incluem dança, música, grafitti, teatro, malabarismo, etc, representando cerca de um quinto do horário semanal de formação. Parte desta formação é dada por formadores estrangeiros convidados e por parceiros de projectos de outras organizações europeias.

Esta oferta concretiza-se não só através de uma componente vocacional associada a actividades de formação profissional, que procuramos serem ajustadas às necessidades do mercado de trabalho local, mas também a uma componente de aconselhamento e orientação, desenvolvida por um conjunto de técnicos que, assumindo um papel de tutor, se preocupam com os problemas destes jovens, estabelecendo com eles relações fortes de comunicação. Ou seja, ocupamo-nos de questões que não se limitam ao foro educativo, nomeadamente com os rendimentos das famílias, com a preocupação em assegurar o rendimento mínimo, a habitação, etc.

Estas escolas não estão incluídas na rede de ensino formal...

Não. Estas escolas resultam essencialmente de um esforço conjunto da comunidade local, desde os responsáveis educativos, às empresas, passando pelos organismos locais. Cada país tem, no entanto, um modelo próprio. Na Dinamarca, por exemplo, é um sistema público, em cada município existe uma escola de segunda oportunidade integralmente financiada pelo Estado.

No nosso caso resulta de uma parceria entre o Ministério da Educação, a Câmara Municipal de Matosinhos e a nossa associação. Uma das exigências deste modelo de escolas, aliás, passa pelo envolvimento de uma autoridade local.

Pelas características que nomeou, o projecto educativo deve assentar sobretudo em planos individuais de formação...

Precisamente. Um plano individual de formação onde procuramos combinar os interesses dos jovens com as ofertas da escola, o equilíbrio entre aquilo que os motiva e aquilo que precisam para desenvolver um conjunto de competências pessoais e sociais. A nossa principal ambição é manter estes miúdos connosco. Abrimos a escola com 45 jovens e decorridos quatro meses não temos nenhuma desistência. Para nós isso é uma vitória.

Paralelamente, temos também o objectivo de certificar a aprendizagem. Apesar de este tipo de escola não ter como principal objectivo a certificação, ela foi incorporada no nosso projecto educativo porque estes jovens precisam dela. E muitas vezes temos de negociar esse percurso com os jovens, porque eles acabam por ter actividades de formação de que não gostam muito, mas que são indispensáveis para entrar nesse percurso de certificação.

De que forma se processa essa certificação?

Actualmente temos dois percursos de certificação, um correspondente ao 6º ano, outro ao 9º ano. Até porque temos também dois tipos de público: os jovens adultos, maiores de 18 anos, para os quais existe um protocolo com os centros de novas oportunidades – a formação é da nossa responsabilidade, a certificação cabe ao CCRV; e os mais jovens, em que o processo de certificação é feito em colaboração com a Escola Secundária Óscar Lopes, em Matosinhos, ou com centros de formação profissional com quem articulamos a formação correspondente ao 9ºano. É um modelo muito flexível, os problemas vão sendo resolvidos à medida que vão aparecendo. Estamos a aprender fazendo.

Para além do protocolo existente entre o ME e a autarquia de Matosinhos, com que tipo de apoios institucionais e financeiros contam?

Este projecto nasceu do impulso da nossa associação. É, acima de tudo, um projecto associativo que congrega profissionais de educação que não se conformam com a situação destes e de outros jovens. Nós pensamos que o abandono escolar resulta de uma dupla realidade: é feito de abandonantes e de abandonados – porque, num certo sentido, o sistema educativo os abandonou a eles. Nós sentimos que as escolas têm uma responsabilidade para com estes jovens e achámos, nesse sentido, que fazia falta este tipo de resposta. Basta dizer que começamos com 45 jovens e temos uma lista de espera enorme. Nos primeiros três meses de funcionamento fomos contactados diariamente por instituições como as comissões de protecção de menores, equipas da segurança social e instituições que trabalham com crianças e jovens a sinalizarem-nos casos. Isto significa que este tipo de resposta é indispensável e que existe uma franja de jovens a que não estamos a conseguir responder.

Será que a resposta a este tipo de problemas não passará, entre outras possibilidades, por uma nova oferta curricular e por um leque mais alargado de currículos vocacionais nas escolas do ensino regular?

Eu acho que este é um trabalho que deveria envolver um maior número de instituições. As estatísticas mostram que em Portugal cerca de 20 por cento dos jovens não conclui o 9º ano. O que é muito preocupante, não existe outro país na Europa na mesma situação. E o problema não está na falta de respostas, está no modelo dessas respostas, que não conseguem envolver todos os jovens. É preciso, portanto, haver propostas de maior retaguarda em relação às respostas formais. E porventura outro tipo de respostas ainda mais recuadas em relação àquelas que nós oferecemos, porque existem jovens que nem sequer para este tipo de oferta educativa estão preparados.

Estes jovens contam com algum tipo de apoio à saída?

Nós encaramos este projecto de uma perspectiva socioeducativa, cujo objectivo passa, acima de tudo, por ajudá-los a prepararem-se para enfrentar os espaços de formação nos quais possam vir a reingressar ou directamente os espaços de trabalho. Eu acredito que eles próprios, resolvendo alguns dos seus problemas e estruturando-se pessoalmente, serão capazes de responder e de se integrarem de forma capaz. Temos noção, porém, que as oficinas de formação vocacional, ao prestarem serviços à comunidade, podem assumir um papel importante nessa reintegração. E esse é um trabalho no qual estamos também apostados, o de criar uma rede de locais de estágio, trabalhando em parceria com empresas e instituições que se queiram articular connosco.

Partindo deste relativo curto período de experiência, que outros desafios se colocam a um projecto desta natureza?

Eu julgo que existem resultados muito positivos nestes quase cinco meses de trabalho. Estamos a trabalhar com 45 jovens que estavam em abandono escolar, muitos deles há três, quatro, cinco anos, que nunca haviam estado mais do que uma semana em lado nenhum. E aqui estão há cinco meses, diariamente, o que na minha opinião é um resultado absolutamente extraordinário.

Partindo daqui, penso que o principal desafio será agora estruturar melhor o nosso trabalho. Apesar de termos trabalhado neste projecto praticamente dois anos, ele foi lançado muito em cima do início do ano lectivo e tivemos, por isso, muito pouco tempo para o desenvolver. O desenho curricular, por exemplo, foi sendo aperfeiçoado numa altura em que a escola já se encontrava em funcionamento. Apesar desta contrariedade, penso que durante este ano iremos ser capazes de estruturar melhor a nossa aposta. Compreendermos melhor a nossa missão e aperfeiçoar a resposta será, em síntese, o nosso principal desafio.

A Associação para a Educação de Segunda Oportunidade tem outros projectos, nomeadamente expandir-se a outros pontos do país?

A AE2O é uma pequena associação que congrega técnicos e profissionais de educação, pessoas interessadas, que tinham este sonho, um bocadinho impossível, de abrir uma escola em Matosinhos. Ao longo destes cinco anos de existência fomos participando em outras iniciativas e desenvolvendo outros projectos, que lhe conferem uma dimensão internacional. Neste contexto, integramos não só a rede europeia de escolas de segunda oportunidade, mas estamos a ajudar a criar uma outra rede europeia de organizações que, tal como nós, trabalham com jovens em risco, realizando um trabalho de cariz cultural.

Por outro lado, e embora estejamos sediados em Matosinhos, estamos a responder a solicitações que se estendem um pouco por toda a Área Metropolitana do Porto. E sentimos que esta resposta não é suficientemente abrangente. Só em Matosinhos existiam, em 2005, cerca de 4000 jovens que tinham abandonado a escola sem o 9º ano de escolaridade. Costumamos dizer, por graça, que a este ritmo irá demorar mais de cem anos para resolver este problema, só no concelho. Não quero com isto dizer que devamos multiplicar esta resposta. É importante que se dê tempo à consolidação desta experiência e avaliá-la. Mas acho, seguramente, que precisamos de encontrar mais respostas para além das que existem actualmente.



Luís Mesquita

Ricardo Jorge Costa

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

“Trabalhos de Casa”


As crianças, no seu papel de alunos, não se questionam e aceitam as regras de um jogo que não foi com elas negociado, pois não o aceitarem pode condicionar as suas vidas e, portanto, o seu “sucesso”.

Como todos sabemos, à maioria das crianças são propostos como “trabalhos de casa” tarefas que incluem cópias de textos, repetições de palavras (várias vezes), fichas com contas e problemas diversos que na maior parte das vezes se limitam a reproduzir os conteúdos dos livros ou o que eventualmente foi feito e explicado na aula. Para muitas crianças, os “trabalhos de casa” consistem no acto de abrir a pasta, tirar os cadernos, os livros e os lápis, fazer o que a professora mandou, fechar o caderno e voltar a guardar. Este ritual é para muitas crianças, sobretudo para as mais pequenas, tudo o que elas conhecem como próprio do acto de estudar. De facto, ao confundir-se estudar com este tipo de “trabalhos de casa”, estamos a afastar a hipótese das crianças se familiarizarem com o interesse pelo conhecimento satisfazendo a sua curiosidade natural através da pesquisa.

O conceito de estudar é muito confuso, e as crianças só o vão percebendo com o decorrer da escolaridade e à medida que se vão confrontando com outras situações – como, por exemplo, estudar a tabuada, estudar para um teste – e, mesmo assim, tudo isso depende delas. A função de estudar, não sendo uma operação muito concreta e codificada, é algo que não é muito claro para as crianças e, provavelmente, para os adultos com quem convivem. A maior parte das crianças não gosta de fazer “trabalhos de casa”, mas aceita a obrigatoriedade da tarefa mais ou menos pacificamente. Outras, contudo, manifestam-se: É uma seca... Tenho de estar sempre a escrever... cansa a mão... Já estou cheio. Apesar das dificuldades (não sabem fazer ou estão cansadas após um dia na escola), os “trabalhos de casa” aparecem sempre como alguma coisa que faz parte dos seus quotidianos, que está naturalizada e que, portanto, não se questiona – temos de fazer todos os dias e muitos... – ou cuja realização é condicionada pelo medo – se não fizer a minha professora ralha-me.

Para a criança ou para o adolescente, o trabalho escolar, com tudo o que ele comporta de actividade, representa o exacto equivalente ao trabalho profissional de vida de um adulto. Mas, enquanto a duração do trabalho profissional exige um grande descanso para a maioria dos adultos, o trabalho escolar é cada vez mais desenvolvido tanto dentro como fora da sala de aula. Há mais de 20 anos que se denuncia este excesso de trabalho e os consequentes malefícios físicos, psicológicos e morais para as crianças. Sabe-se que, para a maior parte dos adolescentes, a vida é dividida segundo um esquema condenado por todos os que se têm dedicado ao assunto e que se traduz em trabalho excessivo, que deveria ser seguido de repouso. Mas, em vez disso, é o lazer que é banido, salvo se houver um feriado ou férias. A psicologia da infância e da adolescência, assim como as ciências da educação e a sociologia, têm denunciado e reagido a este regime de trabalho escolar que continua não só a ser praticado como até desenvolvido, vulgarizado e disseminado. As crianças vão reagindo a este esquema quase por defesa natural: distraem-se na sala de aula, negligenciam no trabalho escolar, olham o tecto e o vazio, fazem pequenos desenhos nos cantos dos livros, falam sozinhas com os cadernos, riscam as secretárias, “aldrabam” os educadores fingindo que já fizeram tudo, vão “milhares” de vezes ao quarto de banho e fazem as mais diversas perguntas sobre coisas que não estão relacionadas com o que estão a fazer, trauteiam baixinho, etc. Ou seja, inventam toda a espécie de tarefas e de desculpas para não fazerem o que têm pela frente, ensaiando formas múltiplas de resistência a um trabalho cujo sentido não é explícito e que lhes é imposto do exterior. Não se conhecem ainda os benefícios que se podem tirar de tanto excesso, mas na maior parte dos casos os malefícios vêem-se generalizados nas revoltas das crianças. Neste caso, o ensino parece-nos estar atrasado em relação ao processo civilizacional. De facto, tal como o ser humano não se criou e não se cria somente pelo trabalho profissional, também as crianças não se formam somente pelo estudo formal. O conceito de trabalho de casa aglomera um conjunto de práticas e de efeitos que só aparentemente têm o mesmo sentido e intuito (sucesso, mobilidade social, emprego, integração...), para as mais diferentes motivações: as crianças parecem querer corresponder às expectativas dos pais e professores; os professores aparentemente querem corresponder às expectativas sociais; outros técnicos de educação dizem querer ajudar as crianças a ter melhores desempenhos escolares; os pais parecem querer proporcionar uma maior mobilidade social através da escola; e os técnicos da área social, por sua vez, defendem porventura esses trabalhos como um instrumento para ajudar as crianças a sair dos ciclos de reprodução da pobreza e da exclusão.

Muitas crianças evidenciam comportamentos agressivos, cansaço e dificuldade de adaptação ao trabalho que trazem da escola para fazer. Trata-se de um trabalho rígido, limitado e repetitivo, marcado pela necessidade e sobrevivência do aluno/a, construído a partir de uma visão conservadora da escola, contra uma visão “progressista” que procura um trabalho significativo, que ajude a compreender o significado emancipatório do conhecimento. Um conhecimento que fará com que as crianças compreendam a sociedade em que vivem e consigam adquirir os instrumentos para lidar com ela, tendo em conta os constrangimentos com que se deparam diariamente.

Em suma, as crianças, no seu papel de alunos, não se questionam e aceitam as regras de um jogo que não foi com elas negociado, pois não o aceitarem pode condicionar as suas vidas e, portanto, o seu “sucesso”. Aliás, como diria Bourdieu, é esta crença e aceitação das regras do jogo (a illusio) a condição da sua perpetuação. Este tipo de trabalho, não parece contribuir para o bem-estar e auto-estima das crianças, nem sequer para o seu sucesso. No entanto, compreendemos que o assumem como fundamental para não terem aborrecimentos, obter reconhecimento, uma nota ou passar no final do ano. Para muitas crianças, os estudos tornam-se, assim, um mal necessário, uma etapa a transpor, esperando a verdadeira vida anunciada, no futuro e sempre para depois da escola.


Maria José Araújo


Bibliografia

Araújo, Maria José (2004) ATL - Actividades de Tempo Livre Sem Tempo nem Liberdade. Dissertação de Mestrado. Porto: FPCE-UP.
Barrère, Anne (s/d) O Trabalho dos Alunos. Porto: Rés-editora
Bourdieu, Pierre (1979) La Distinction, Critique Sociale du Jugement, Paris: Minuit.
Duru-Bellat, Marie e Zanten, Agnés Van (1999) Sociologie de l'école. Paris: Armand Colin
Glasman, Dominique (2001) L'Accompagnement Scolaire. Paris: PUF.
Laloup, Jean (1962) Le temps du loisir. Paris: Casterman.
Ribeiro, Agostinho (1988) Brincar, Sonhar e Criar: Para uma psicopedagogia da Criatividade. Porto: FPCE-UP.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A importância das escolas


Aprender e ensinar constituem dois processos que deverão estar no cerne do trabalho que se desenvolve em qualquer escola. (…) O desenvolvimento do currículo, o ensino e a aprendizagem, têm que se centrar no que Michael Young designa por conhecimento poderoso, ou seja, o conhecimento especializado que os professores têm que dominar com segurança.

As escolas são instituições imprescindíveis para o desenvolvimento e para o bem-estar das pessoas, das organizações e das sociedades. É nas escolas que a grande maioria das crianças e dos jovens aprendem uma diversidade de conhecimentos e competências que dificilmente poderão aprender noutros contextos. Por isso mesmo elas têm que desempenhar um papel fundamental e insubstituível na consolidação das sociedades democráticas baseadas no conhecimento, na justiça social, na igualdade, na solidariedade e em princípios sociais e éticos irrepreensíveis.

Para muitos milhares de alunos, a escola constitui uma oportunidade única para romper com situações económicas e sociais desfavoráveis e precárias. Certamente por essa razão muitos pais sempre se sacrificaram para que os seus filhos a frequentassem. Aprender deve constituir o primeiro propósito da vida escolar. Exige esforço por parte dos alunos e o reconhecimento de uma hierarquia – os professores têm conhecimentos que os alunos não têm e que precisam de aprender. Ensinar constitui outro incontornável propósito da escola que exige, da parte dos professores, a mobilização de uma significativa variedade de conhecimentos e competências.

Aprender e ensinar constituem, assim, dois processos que deverão estar no cerne do trabalho que se desenvolve em qualquer escola. Por estranho que possa parecer estes dois processos não têm merecido a atenção devida por parte de uma diversidade de intervenientes sociais e políticos. As agendas dos investigadores da educação, das organizações sindicais, das sociedades e associações profissionais e das organizações políticas orientam-se, invariavelmente, por temas e problemas que pouco têm a ver com o ensino e com a aprendizagem.

Mas aprender e ensinar o quê? Certamente uma grande variedade de conhecimentos de domínios tais como a Língua Portuguesa, as Ciências da Natureza, as Ciências Sociais, a Matemática, as Artes e outras Expressões. Ou ainda de domínios transversais tais como a Resolução de Problemas, a Concepção e Desenvolvimento de Projectos, as Relações Sociais, os Valores Democráticos, a Utilização das Novas Tecnologias de Informação e a Recolha, Organização e Tratamento de Dados de Natureza Diversa.

Um número crescente de filósofos, sociólogos e estudiosos da educação vem defendendo que o desenvolvimento do currículo, o ensino e a aprendizagem, têm que se centrar no que Michael Young designa por conhecimento poderoso, ou seja, o conhecimento especializado que os professores têm que dominar com segurança. O conhecimento poderoso está associado ao conhecimento teórico, mais independente de contextos, e, consequentemente, tende a ter uma aplicação mais universal. O conhecimento prático e o conhecimento de procedimentos estão normalmente dependentes de contextos específicos e são, por isso, mais situados, mais localizados e menos susceptíveis de utilização generalizada.

Nestas condições, as disciplinas escolares constituem elementos centrais na definição dos propósitos das escolas porque são meios fundamentais para aprender e para conhecer “coisas” que, para a maioria dos alunos (jovens ou adultos), não é possível aprender noutro lugar. A valorização da escola, como meio de partilha e difusão do conhecimento poderoso, não deve, no entanto, estar associada à desvalorização de outros meios, mais ou menos informais, onde se pode aprender e desenvolver outros tipos de conhecimento (e.g., prático, técnico). As relações entre os conhecimentos escolares e os não escolares são complexas e podem assumir intensidades muito variadas. É uma área que interessa a muitos investigadores e pedagogos.

As escolas são decisivas para que os jovens compreendam o mundo em que vivem e para que possam intervir crítica e responsavelmente na vida social. Consequentemente, é importante valorizar o conhecimento escolar, no sentido do conhecimento poderoso, que constitui um meio incontornável de emancipação e de independência dos cidadãos, assim como de democratização, de coesão e de bem-estar das sociedades. É sobretudo para isso que as escolas servem e é também por isso que a sua importância não se devia questionar.

Domingos Fernandes