sábado, 9 de janeiro de 2010
A língua inglesa como imperativo da globalização
…as relações entre o inglês e prazer, felicidade, êxtase, sofisticação são repetidamente reiteradas nos anúncios e propagandas, nos filmes e séries, nas músicas e revistas.
No capitalismo tardio, o processo de globalização parece ter um papel fundamental na forma como as pessoas se constituem como sujeitos. Assim, seja numa vila periférica, numa grande metrópole ou em áreas rurais, por meio das novas tecnologias (internet, TV a cabo, telefone celular, Ipods) é possível conectar-se, interagir, informar-se e consumir produtos de origens variadas e “distantes”. Apesar da imensa diversidade, uma língua em especial se propõe a ligar as pessoas e forjar muitas possibilidades de identidade – a língua inglesa.
A presença maciça do inglês pode ser observada no mundo do trabalho, da comunicação, das tecnologias, das viagens e do entretenimento. E isso não acontece por acaso. A expansão dos domínios desse idioma delineou-se a partir da Revolução Industrial e do processo de colonização de países nas Américas, Ásia, África e Oceania. Embora as condições para estabelecer o inglês como língua internacional tenham sido implementadas pela Grã-Bretanha, a emergência dos Estados Unidos como superpotência, em meados do século XX, garantiu a consolidação desse idioma como língua global. O surgimento e “democratização” da rede mundial de computadores – a internet − também contribuiu significativamente para essa expansão.
É nesse sentido que se pode falar de Universo da Língua Inglesa. Tal expressão é compreendida como um termo amplo que abrange essa língua, materiais didáticos e paradidáticos para seu ensino, discursos produzidos nela e a partir dela, produtos e artefatos culturais (roupas, perfumes, músicas, filmes, séries de TV, alimentos, tecnologia, ciência, modelos de comportamento e de educação formal) produzidos e/ou associados aos países anglófonos – especialmente Estados Unidos e Inglaterra – e a seus falantes (nativos ou não).
Esse universo é parte constitutiva dos modos de vida na contemporaneidade. Ele parece abranger literalmente todos os setores da sociedade e se fazer presente de forma mais ou menos explícita no nosso cotidiano. O uso de termos e expressões da língua inglesa deixa marcas, inaugura racionalidades onde quer que ela se infiltre. Como uma espécie de canto da sereia, somos envolvidos de maneira sedutora especialmente pela mídia. Em conseqüência disso, as relações entre o inglês e prazer, felicidade, êxtase, sofisticação são repetidamente reiteradas nos anúncios e propagandas, nos filmes e séries, nas músicas e revistas. Além disso, a idéia de ser “descolado”, “antenado” e fazer parte de um clube, que promete “nada além do melhor[1]”, está associada a tal língua. Em virtude disso, somos impelidos a conhecer, estudar, integrar esse universo, que promete garantir desde os melhores empregos − como demonstram diariamente os anúncios classificados dos jornais − até momentos sucessivos de prazer a serem consumidos no estilo fast food.
Considerando tal entorno, pode-se fazer uso da assertiva de Graddol (2007, p. 20) que aponta para a existência de uma elite que considera o inglês como uma marca distintiva. No mesmo sentido, tal língua tem sido apontada como forma de inserção na cultura globalizada. Embora, inicialmente, a língua inglesa tenha passado por um processo de domínio nos moldes mais tradicionais do imperialismo, atualmente ela surge como parte de um dispositivo que, por meio de um “micropoder capilarizado” (Foucault, 2008) nas suas mais diversas manifestações, parece capaz de ditar regras e normas às quais se moldam “corpos dóceis” para usufruir dos incontáveis benefícios que seu conhecimento e utilização prometem oferecer.
Como um dos operadores centrais na comodificação dos sujeitos da sociedade de consumo, a língua inglesa parece aumentar consideravelmente o valor de troca dos indivíduos que não apenas podem consumi-la, mas também podem ser consumidos globalmente. Conforme pontua Phillipson: “[a] conclusão parece ser a de que você está, num sentido muito concreto, desfavorecido se você não sabe inglês” (1992, p. 276). E quem se arriscaria a ficar desfavorecido num mundo onde a competição acirrada impera?
[1] “Nothing but the best” (Leavin’, Jesse McCarthy, 2008).
Referências
- FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2008.
- GRADDOL, D. The future of English? A guide to forecasting the popularity of the English language in the 21stcentury. United Kingdom: The English Company (UK) Ltd, 2000. Disponível em: http://www.britishcouncil.org/learning-elt-future.pdf. Acesso em: 05 jan 2009.
- PHILLIPSON, R. Linguistic imperialism. Oxford: Oxford University Press, 1992.
[1] “Nothing but the best” (Leavin’, Jesse McCarthy, 2008).
Gisvaldo Bezerra Araújo-Silva
P.E. N.º 185, série II
P.E. N.º 185, série II
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
Autoridade social da instituição escola e cidadania solidária
«EM CADA ROSTO IGUALDADE»
Mais importante do que tentar ser «o melhor do mundo», o melhor professor, o melhor aluno, a melhor escola, é tentar ser «o melhor para o mundo», respondendo com sentido de solidariedade ao outro que, sendo diferente, nos é próximo.
Num tempo em que se fala de «revolução social da aprendizagem» e se elege a educação como um bem humano essencial, as escolas portuguesas são organizações em situação de sofrimento, investidas de mandatos sociais inconsequentes, carentes de estima pública e privadas do clima de liberdade necessário à sua respiração, à sua dinâmica vital e ao seu desabrochar. Adoptando uma definição proposta por Paul Ricoeur, chamamos «instituição» à estrutura organizacional que configura o regime de vida «com e para os outros» num determinado contexto histórico, assegurando duração, coesão e carácter a esse viver, considerando que uma democracia com instituições escolares fragilizadas é, certamente, uma democracia vulnerável.
Pensadas para responder a necessidades humanas, as instituições não são apenas edifícios, muros, paredes ou regulamentos mas sim unidades sociais vivas, animadas por pessoas de «corpo e alma». Mas precisamente por isso, porque em referência estão as pessoas, os seus problemas, os seus dramas, os seus interesses e os seus sonhos, as instituições são também edifícios, muros, paredes e regulamentos. Ao contrário de outros dispositivos intangíveis e extraterritoriais, como as redes sociais, por exemplo, as escolas são instituições, isto é, organizações ligadas a «um chão», a uma realidade física perceptível e muito concreta, a um território de referência. A personalidade ou «rosto» de cada escola, o seu ethos organizacional, depende muito dos mecanismos que asseguram a sua inserção territorial, favorecendo relações de proximidade produtiva com outros actores sociais. Além do mais, a aprendizagem que acontece dentro da escola, e muito concretamente dentro da sala de aula, não pode ser dissociada daquela que se desenvolve fora dela, em especial no contexto familiar e na comunidade local.
Importa, nesse sentido, explorar linhas de intersecção entre a pedagogia escolar e a pedagogia social, sobretudo num tempo, como o da nossa contemporaneidade, marcado pela ameaça de agravamento das situações de pobreza, violência, desigualdade e injustiça social. Salientando, porém, que, subordinado a uma racionalidade sociopedagógica, o «social» a que nos referimos não se restringe ao universo da chamada «exclusão social», prendendo-se acima de tudo com o imperativo de construir solidariedade num mundo que nos surge cada vez mais deslaçado e obscurecido. Nessa medida também, importa defender a inserção social da escola mas prevenindo, por outro lado, a exaltação excessiva das virtudes da regulação sociocomunitária da educação, própria de um certo comunitarismo de tipo romântico.
Como instituição, a escola expressa um compromisso da sociedade para com os seus cidadãos, corporizando valores de cultura universal que, por definição, transcendem o universo dos interesses familiares e comunitários. A escola é um lugar de emancipação intelectual e de procura da verdade que resiste aos apetites de imediato, exigindo estudo, disciplina e lições. De uma forma singular, na escola celebra-se o privilégio de poder ser ensinado, que é como quem diz de poder acolher as verdades que vêm de fora e que, como tal, desafiam a mesmidade. Por esta razão, enquanto adulto especificamente preparado para a função educativa, o professor fará sempre a diferença. O respeito pela sua autoridade profissional, pela presença pessoal daquele que ensina, é condição fundamental para garantir a qualidade do desempenho das nossas escolas, enquanto «escolas do presente». Porque, na verdade, só através da posse subjectiva do presente nos tornamos capazes de futuro. O discurso em torno das «escolas do futuro» tende por vezes a desvalorizar a fecundidade do tempo vivido, sofrido, problematizado, partilhado e, nessa medida, sonhado.
Pelo lugar que ocupa no processo de desenvolvimento humano, a escola é uma instituição social por excelência onde, de forma privilegiada, se promove o «direito universal ao rosto». O ideal de igualdade e de universalidade que sublinha a nossa condição comum brilha em cada ser humano enquanto testemunho de uma irredutível unicidade. É essa misteriosa riqueza da subjectividade pessoal, posta em interacção em cada encontro humano, que nos permite falar da experiência relacional como uma experiência simultaneamente poética e política, onde desponta a crença em nós mesmos, nos outros, na vida e no futuro. Neste sentido, mais importante do que tentar ser «o melhor do mundo», o melhor professor, o melhor aluno, a melhor escola, é tentar ser «o melhor para o mundo», respondendo com sentido de solidariedade ao outro que, sendo diferente, nos é próximo. É justamente nesta cultura de responsabilidade relacional que reside o tipo de excelência ética que determina a qualidade do desempenho escolar, enquanto expressão de uma liberdade comprometida com o bem comum. Por serem lugares educativos, as escolas carecem de espaços de convivialidade reflexiva e de ambientes paz relacional que ajudem instituir lugares de cidadania e de fraternidade num mundo onde seja possível encontrar «em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade».
Isabel Baptista
P.E. N.º 185, série II
P.E. N.º 185, série II
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Professores podem ascender ao terceiro escalão sem depender da abertura de vagas
Na proposta anterior, o Governo fazia depender a progressão para o terceiro, quinto e sétimo escalão da carreira da abertura de vagas. Esta é uma das medidas mais contestadas pelos sindicatos.
Ao deixar cair a exigência de vagas para o terceiro escalão, o Ministério da Educação faz desaparecer aquele que seria o principal estrangulamento na progressão da carreira de muitos professores já que esta limitação de acessos abrangeria o maior número de docentes uma vez que seria válido logo ao fim de oito anos de docência.
O Ministério terá também deixado cair a obrigação de realização de uma prova de ingresso na docência. Mas para os professores classificados com Bom, a progressão na carreira para o quinto e sétimo escalão continuará a ficar dependente da abertura de vagas.
Esta condição é uma das questões mais contestadas pelos sindicatos, que faziam depender o seu acordo da garantia de que também todos os professores classificados com Bom poderiam contar aceder ao topo da carreira, um patamar que por enquanto continuará, à partida, a ser garantido apenas àqueles que têm Muito Bom ou Excelente na avaliação do seu desempenho como professores.
Apesar de se manter este ponto de discórdia, alguns dirigentes sindicais disseram aos jornalistas que o facto de as negociações prosseguirem "já quer dizer alguma coisa".
Hoje, ao contrário do que é habitual, as reuniões dos responsáveis pelo Ministério da Educação (ME) com os representantes dos vários sindicatos de professores não estão a decorrer de forma consecutiva, ao longo do dia, mas sim em simultâneo. Às 10h iniciaram-se quatro reuniões em outras tantas salas e são os representantes do Ministério quem circula por elas, na tentativa de construção de um consenso. A ronda negocial foi interrompida para o almoço e recomeça por volta das 15h.
A ministra da Educação e o secretário de Estado entregaram a sua proposta sala a sala. Até agora, só a Fenprof entregou as suas contrapropostas ao Governo.
Nas quatro salas, situadas em pisos diferentes o que obriga os governantes a andarem constantemente acima e abaixo, estão a Federação Nacional de Professores (Fenprof) - que representa cerca de 70 por cento da classe docente -, a Federação Nacional dos Sindicatos de Educação (FNE) e nas duas restantes estão, em cada uma, seis pequenos sindicatos de professores.
Público
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
83% dos professores recebem ‘Bom’
A ministra da Educação revelou esta quarta-feira que 83 por cento dos professores foram classificados com ‘Bom’ no último ano lectivo e que por isso os docentes com melhores notas devem ser distinguidos com uma progressão mais rápida na carreira.
Para Isabel Alçada, este número elevado de classificados com ‘Bom’ explica-se com "a tradição da atribuição desta nota aos docentes por parte de quem avalia", acrescentando que "houve menos de 0,5 por cento de classificações com a nota regular ou insuficiente".
"Estes dados também explicam a nossa intenção de distinguir os professores que obtenham Muito Bom e Excelente com uma progressão mais rápida" na carreira, destacou a ministra, citada pela agência Lusa, enquanto falava em Castelo Branco.
Governo e sindicatos realizam quinta-feira aquela que deverá ser a última ronda negocial para a revisão do estatuto da carreira e da avaliação docente, depois de terem falhado um acordo na semana passada.
No centro da discórdia está, sobretudo, a progressão dos professores classificados com ‘Bom’. Segundo a proposta do ministério, nem todos aqueles que conseguirem esta nota poderão aceder ao topo da carreira, ficando dependentes da existência de vagas.
A ministra disse ter esperança no sucesso das negociações de quinta-feira: "Tem havido sucessivas aproximações entre as nossas propostas e aquilo que as organizações sindicais nos têm feito chegar e que consideram ser importante para o estatuto da carreira docente e para a avaliação".
Isabel Alçada afirmou que "em relação ao sistema de avaliação, o modelo está praticamente aceite", mas no que respeita ao estatuto da carreira há "ainda algumas propostas a apresentar".
C,Manhã
Pensar e falar bem
A escola, na sua globalidade, não desenvolve destrezas ao nível do discurso oral. Deveria fazê-lo. Somos anestesiados do debate público porque, desde cedo, não somos treinados e motivados para argumentar.
O final do primeiro semestre na universidade é dedicado a provas orais. Desta vez, com o 2º ano do Curso de Ciências da Comunicação. Os estudantes avaliados assim já tiveram essa experiência o ano passado noutra cadeira leccionada por mim e mais colegas. Não sendo propriamente algo novo para eles, nota-se que essa é uma modalidade em que não estão muito à-vontade. Para quase todos, a prova oral do ano anterior constituiu uma novidade no seu percurso académico. A escola, na sua globalidade, não desenvolve destrezas ao nível do discurso oral. Deveria fazê-lo.
Trabalhando com grupos numerosos, não é fácil, em certas disciplinas, perceber, dentro da sala de aula, as competências de cada aluno. Mas há formas de nos aproximarmos dos estudantes. Por exemplo, fomentado o debate em torno das matérias leccionadas, promovendo o confronto de ideias, procurando que cada um dos elementos da turma seja uma parte activa no processo de aprendizagem. Isso implica que à voz do professor se juntem outras: a dos alunos cuja participação se quer diversificada, viva, pertinente. E é aqui que, por vezes, começam alguns problemas. Nem sempre ouvimos discursos articulados, com uma sintaxe fluida e com uma pronúncia sem ruídos. No caso das turmas das Ciências da Comunicação da Universidade do Minho, notamos, ao longo do curso, uma grande evolução a este nível. Certamente porque os estudantes começam a perceber que essa é uma dimensão importante no seu percurso académico. E, futuramente, na sua vida profissional.
Não sei como actualmente os ensinos básico e secundário trabalham o discurso oral dos mais novos. Quando me convidam para participar em conferências em escolas, noto que os estudantes, podendo evidenciar algum à-vontade na colocação de perguntas, não têm muitas destrezas na forma como o fazem. Estão em crescimento, poder-se-á dizer. E ainda em aprendizagem, acrescentar-se-á. Pois claro. Acontece que essa é uma limitação que a escola, por norma, não resolve. Por isso, já adultos, muitos de nós não se sentem capazes de falar (bem)em público. Bloqueiam. Recuam. Não participam. Muitas vezes, porque custa falar(pensar) diante dos outros. Ninguém nos habilitou a fazer isso.
Chegada ao final das provas orais, sinto que esse tipo de avaliação é muitíssimo cansativo para quem, durante vários dias, tem de fazer perguntas a dezenas e dezenas de pessoas. Mas penso que isso, a médio prazo, reverterá positivamente para os estudantes. Que se colocam à prova de uma forma espontânea, directa, sem rede. Estão ali, diante de nós, e valem por aquilo que demonstram saber. Ali. Naquele momento. O empenho aqui tem de ser enorme. A concentração máxima. Não é isso que muitas vezes exige o mercado? Será uma boa estratégia esperar que amanhã seja um bom dia para sermos mais produtivos e desenvolvermos um trabalho com mais qualidade?
Não podemos ambicionar que a escola forneça todos os instrumentos que habilitem os estudantes a exercerem com sucesso uma profissão. Hoje a aprendizagem deve ser contínua. Mas há competências que o ensino deveria incorporar desde muito cedo. Escrever e falar bem são importantíssimos aliados na tarefa de saber pensar. Os mais novos tendem a desvalorizar estas preocupações. Escrever é mandar SMS’s do tipo “n kero saber+”. Saudar alguém é dizer “Tá-se bem?”. E lá vamos nós, encolhendo os ombros e empurrando para a frente um problema que, mais tarde, se revelará ruidosamente.
Curioso o facto de valorizarmos, enquanto adultos, pessoas que escrevem e falam bem, mas parece ser indiferente o facto de as nossas crianças e jovens não terem uma aprendizagem contínua a esse nível. Quanto muito estas são tarefas acantonadas na área das Letras. Por isso, não podemos estranhar quando encontramos profissionais tecnicamente competentes, mas incapazes de transpor o seu pensamento para um texto escrito ou para um discurso oral. E essa incapacidade tem reflexos numa cidadania de baixa intensidade, que é a nossa. Somos pessoas anestesiadas do debate público, porque também, desde muito cedo, não somos treinados e motivados para argumentar a favor daquilo que julgamos ser o caminho mais eficaz a seguir. E se começássemos a inverter isto a partir das nossas salas-de-aula?
Felisbela Lopes
P.E. N.º 185, série II
P.E. N.º 185, série II
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
Um novo contrato social para a educação?
Identificar uma nova problemática para a educação para as próximas décadas e formas de a considerar e abordar é um desafio extremamente complexo, cujos parâmetros político, social e económico e âmbito parecem não ser claros para ninguém.
É evidente que estamos no limiar de um mundo novo e desconhecido, onde parece que nada é possível predizer, exceptuando talvez que a curto prazo é bastante desconfortável e que, a longo prazo, será muito diferente. Isto é tanto verdade para a educação como para qualquer outra actividade humana organizada - o que não quer dizer que não necessitemos de antecipar e moldar o futuro em vez de apenas esperar que ele aconteça, isto é, esperar por alguém que o molde.
Mas o que fazer? A primeira coisa é reconhecer que os instrumentos teóricos e conceptuais existentes e as nossas assunções acerca do lugar da educação no mundo têm que ser revistas. Contudo, ir para além desses instrumentos e assunções não é nem simples, nem fácil. Identificar uma nova problemática para a educação para as próximas décadas e formas de a considerar e abordar é um desafio extremamente complexo, cujos parâmetros político, social e económico e âmbito parecem não ser claros para ninguém (e, efectivamente, assumir a permanência desses três parâmetros tradicionais pode ser em si mesmo uma ousada tolice).
Isto não significa que tenhamos que recorrer a uma bola de cristal, mas temos de estar cientes de duas condições cruciais para desenvolver esse esforço.
Primeira, precisamos de estar cientes daquilo que Roberto M. Unger (1998) refere como ‘fetichismo’ - ‘os limites da nossa capacidade para imaginar e mudar a sociedade’. Estes podem ser de dois tipos; fetichismo institucional, a “identificação de concepções institucionais, como a democracia representativa, a economia de mercado e uma sociedade civil livre, com um só conjunto de arranjos institucionais,” e o fetichismo da estrutura, “que encontra expressão e apoio numa ideia que opõe interlúdios de efervescência, carisma, mobilização e energia para o reino comum da rotina institucionalizada, quando, meio dormentes, continuamos a desempenhar o guião escrito nos intervalos criativos” (26).
Segunda, recusar a bola de cristal não significa que possamos começar do ponto em que estamos em educação e ou perguntar como é que se mudará, ou, mais radicalmente, perguntar se ainda precisamos de escolas do tipo a que nos habituamos ao longo da história da educação obrigatória.
Começar por este tipo de assunções é ser-se demasiado tímido face à dimensão das mudanças no mundo, que podem significar que necessitamos de penetrar mais profundamente no tecido daquilo que se tornou reconhecido como ‘educação’. No sentido mais simples, isto significa não perguntar ‘como poderemos fazer educação de uma forma diferente?’, mas, antes, ‘por que é que fazemos educação?’. Pode ser mais fácil responder a esta pergunta se a reformularmos em termos de duas perguntas fundamentais, descontextualizadas. Primeira, qual é o ‘contrato social’ para a educação, isto é, o que é que a sociedade dá e espera da educação? Segunda, através de que ‘lógica de intervenção’ funciona a educação; como é que procura cumprir a sua parte do contrato social?
A questão do contrato social é particularmente difícil de responder, por uma razão fundamental - derivada da sua origem -, a de que contrato social para, pelo menos, a educação ocidental - que foi amplamente difundida pelo mundo - tem tido no seu cerne a ideia da relação positiva entre educação e progresso - que tende a querer dizer mais e melhor, e, por vezes, mais e melhor distribuído. E foi este realmente o caso independentemente da ampla variedade de formas que assumiu; a provisão de educação é sempre justificada em termos das melhorias que produz - novamente, o foco, o conteúdo e âmbito destas melhorias —‘sociedade’, ‘crescimento económico’, ‘realização individual’, ‘igualdade social’, preservação da ‘cultura’, ‘fortalecimento da identidade’ - são relativamente irrelevantes. Poderá ser útil, de muitas formas, pensar a ‘sustentabilidade’ e não o progresso no cerne do contrato social opera a educação; que tipo de ‘educação’ seria então necessário, e qual seria o seu papel?
Como seria de esperar a educação surge alternativa e simultaneamente como um fim em si mesmo ou/e um meio para outros fins. Podemos, assim, identificar ‘lógicas de intervenção’ operando através e na educação, mas por limitação de espaço, apenas me referirei brevemente à primeira. Talvez a forma mais simples de explicar o que é que significa lógica de intervenção seja através de um exemplo, e um exemplo particularmente útil é o da mudança das formas assumidas pelo contrato social em relação à educação e ao seu desenvolvimento entre 1945 e o presente. Veja-se o quadro:
CONTRATO SOCIAL | LÓGICA DE INTERVENÇÃO DA INTERVENÇÃO EM EDUCAÇÃO PARA CUMPRIR O CONTRATO SOCIAL | LÓGICA DE INTERVENÇÃO DA INTERVENÇÃO MECANISMOS CHAVE | IMPLICAÇÕES PARA/ORIENTAÇÕES DA GOVERNAÇÃO EM EDUCAÇÃO | |
1945-75 | Teoria da Modernização | Desenvolvimento através de estádios de crescimento | Apoio ao desenvolvimento | O Ocidente como modelo |
1975-2000 | O Consenso de Washington | Programas de ajustamento estrutural | Condicionalidade | Modelo da Nova Gestão Pública |
2000 - | Pós- Consenso de Washington / Economia do Conhecimento Global | Boa Governação Liberalismo socialmente inclusivo | Metas globais: cooperação dos dadores em torno dos MDM/EPT[1]: Metodologia de avaliação do conhecimento | Sectores nacional e globalmente orientados |
Em suma, a educação foi vista como central pela teoria da modernização, como o meio-chave através do qual osindivíduos tal se tornariam, i e. como no Ocidente, e a lógica da intervenção era a de construir programas de apoio ao desenvolvimento da educação. Pelo Consenso de Washington a assunção foi a de que o progresso seria alcançado em todos os países em desenvolvimento seguido de um regime de rigorosa ortodoxia económica, e depois de um regime mais ‘suave’, enfatizando a necessidade de participação de stakeholders.
A questão, contudo, não é a do pormenor destes programas. É antes o tentar indicar como é que os conceitos do contrato social e a lógica de intervenção podem ser usados para identificar a natureza e as implicações de possíveis mudanças na e para a ‘educação’, de forma a permitir a continuidade, mas não a escravatura, em relação ao que antecedeu.
[1] Metas da Desenvolvimento para o Milénio/Educação Para Todos (N.T.).
Roger Dale
P.E. N.º 185, série II
P.E. N.º 185, série II
segunda-feira, 4 de janeiro de 2010
«Vivemos num país onde o Estado avalia as escolas, os professores e os alunos, mas onde nem o Estado nem as políticas públicas são suficientemente avaliados.»
Almerindo Janela Afonso é Licenciado em Ciências Políticas e Sociais e Doutorado em Educação, na área de conhecimento de Sociologia da Educação. É Professor Associado do Instituto de Educação da Universidade do Minho e Pesquisador do Centro de Investigação em Educação (CIEd). As suas áreas de interesse na investigação e docência centram-se nos domínios da sociologia da educação, políticas educativas e avaliação educacional, temas sobre os quais tem publicado artigos em diversas revistas da especialidade, nacionais e estrangeiras, bem como em outras obras, das quais se destacam “Políticas Educativas e Avaliação Educacional” (UM, 1998); “Avaliação Educacional: Regulação e Emancipação” (Cortez, 2005, 3ª Ed.); e, em co-autoria, “Reformas da Educação Pública. Democratização, Modernização, Neoliberalismo” (Afrontamento, 2002). Co-organizou recentemente, com Teresa Esteban, o livro “Olhares e Interfaces. Reflexões Críticas sobre a Avaliação” (São Paulo: Cortez, em publicação). Em 1999 recebeu o Prémio “Rui Grácio” de Ciências da Educação, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação e Fundação Calouste Gulbenkian. É membro de conselhos científicos de prestigiadas revistas académicas e membro de diversas associações científicas nacionais e internacionais, entre as quais a European Evaluation Society e a International Sociological Association. É um dos mais prestigiados investigadores na área da avaliação educacional em Portugal. Aqui, a Almerindo Janela Afonso pedimos a sua opinião essencialmente sobre um tema que tem marcado a política educativa em Portugal: a avaliação.
Que mudanças ocorreram no plano da avaliação educacional em Portugal na última década?
Em meados dos anos 1980, em termos de políticas educativas, Portugal ainda se encontrava em relativo contraciclo face a países centrais, como os Estados Unidos ou o Reino Unido. Entre nós, por exemplo, as reformas postas em prática nos primeiros anos do cavaquismo colocavam uma ênfase muito forte na avaliação formativa – congruente, aliás, com o discurso de valorização do professor como profissional e com o desejo, que alguns sectores alimentavam, de virmos a ter um novo modelo de direcção e gestão que pudesse permitir uma autonomia relativa mais expressiva para as escolas e actores educativos. Mas é claro que os ventos neoliberais estavam a chegar e, nesse sentido, as medidas educativas acabaram por se revelar ambíguas e heterogéneas - oscilando entre a expansão conjuntural de direitos e a sua retracção ou, então, entre a intervenção do Estado e as lógicas e medidas de privatização – algo que designei na altura como “neoliberalismo educacional mitigado”.
Já a partir de meados dos anos 1990, com os governos de Guterres, houve alguma preocupação em conter alguns efeitos negativos de formas de avaliação externas, que entretanto reapareciam, tendo-se evitado, por exemplo, no consulado do ministro Santos Silva, que fosse o Ministério da Educação a publicitar os rankings de escolas baseados em exames nacionais. Nesse período, sobressaem os currículos alternativos e os territórios educativos de intervenção prioritária - medidas induzidas pela “ideologia da inclusão”, como a designou José Alberto Correia -, bem como o desejo de construir parcerias e fazer um “pacto educativo”, deixando a ideia das grandes reformas de lado.
Mais tarde, já com os governos de Durão Barroso e de Santana Lopes, a obsessão avaliativa instalou-se. Tivemos, aliás, um ministro da educação, David Justino, que foi um dos mais entusiastas defensores dos exames nacionais e dos rankings das escolas, e tudo isso sustentado num discurso de redefinição dos conceitos de público e de educação pública, que a proposta de Lei de Bases da Educação destes governos, entre outras coisas muito discutíveis, pretendia.
Esta legislatura fica marcada pela dificuldade em estabelecer um modelo justo, sustentável e exequível de avaliação dos professores
Qual foi, nesse sentido, a postura do actual Governo?
O actual Governo, sustentado por uma maioria absoluta do Partido Socialista, continuou, de certo modo, esta obsessão avaliativa na medida em que, como consta do seu programa de governo, pretendeu expandir a avaliação para todas as áreas do sistema de educação e formação, designando-a, aliás, como uma das ambições para a legislatura. E, para além da avaliação, este mesmo Governo introduziu, em vários normativos legais, referências a princípios e a formas parcelares de prestação de contas que julgo louvável, mas sem, todavia, ter criado um sistema de accountability para o sistema educativo que pudesse ser articulado, coerente e avançado em termos éticos, epistemológicos e democráticos.
Ao contrário, esta legislatura fica marcada pela dificuldade em estabelecer um modelo justo, sustentável e exequível de avaliação dos professores, ainda que tenha conseguido, por outro lado, iniciar e implementar, com um sucesso discreto, um novo programa de avaliação externa das escolas - a este propósito é interessante ver o parecer do Conselho Nacional de Educação.
Do meu ponto de vista, aliás, um dos aspectos muito positivos deste modelo de avaliação das escolas é o facto de ele se articular com formas parcelares de accountability, nomeadamente com dimensões de participação de todos os actores educativos, transparência e prestação pública de contas. A publicitação dos relatórios de avaliação externa e os seus contraditórios são, entre outros, um exemplo do que acabei de afirmar.
Mudanças que se inscrevem no contexto de um processo mais amplo a nível internacional...
Sim, claramente, num processo de globalização e de crescente “contaminação” e “importação” das agendas políticas, que é para levar a sério. E se muitos e importantes movimentos cívicos, culturais e políticos têm conseguido oferecer alguma resistência, mesmo assim eles continuam a ser insuficientes.
Curiosamente, falamos num momento em que se realiza mais um encontro do Fórum Social Mundial. Julgo que essa poderá ser, eventualmente, a alternativa possível: o reforço sustentado de movimentos de globalização contra-hegemónica que se articulem de forma mais organizada, de modo a tentar conter e modificar certas agendas e, sobretudo, propor e construir alternativas credíveis.
Talvez precisemos olhar mais de perto o último livro de Boaventura Sousa Santos – Epistemologias do Sul – para nos descentrarmos de visões eurocêntricas e neocoloniais que nos impedem de imaginar outras visões do mundo. Mas as resistências e o “pensamento alternativo de alternativas” em relação às agendas e políticas para a educação e formação parecem não estar tão presentes nos movimentos contra-hegemónicos.
Em termos de formas de avaliação, que outras mudanças estão a ocorrer?
As influências que pesam sobre cada país dependem inevitavelmente de factores tão diversos como a sua posição periférica ou semi-periférica relativamente aos países centrais, bem como de questões como as tradições, os níveis cívico, moral e de escolarização das populações, as formas de organização dos sistemas educativos, os graus de desenvolvimento económico, a natureza e configuração dos regimes políticos, a vitalidade da sociedade civil, os compromissos com organizações internacionais e supranacionais - como, entre nós, a própria União Europeia -, entre outros.
No caso português, sabemos que existe uma indução muito forte no sentido de tornar a avaliação mais presente e transversal, já não apenas com incidência na avaliação dos alunos, mas também nas escolas e nos profissionais da educação. Aliás, parece-me que o programa do actual governo, e muitas das orientações que este seguiu, são congruentes com essas pressões exteriores vindas da União Europeia, mas também de organizações como a OCDE e outras. Nunca como hoje, o governo dos números foi tão evidente. Aí estão as estatísticas internacionais, as avaliações comparativas - como as que são levadas a cabo por programas como o PISA -, os relatóriosEducation at a Glance, etc., etc.
O meu colega António Teodoro tem sido um dos investigadores que em Portugal mais tem chamado a atenção para este facto. Aliás, é no contexto da União Europeia que podemos localizar alguns dos impulsos iniciais mais marcantes no que diz respeito a uma dimensão menos estudada, mas, do meu ponto de vista, extremamente importante: a avaliação das próprias políticas de educação e formação. É esta, aliás, a minha actual área de interesse em termos de investigação e reflexão.
Sem pormos de lado a importância e as consequências do que alguns autores já chamaram o “comparativismo globalizador”, que não tem apenas aspectos negativos, há que não esquecer que a avaliação em educação visa sobretudo outras possibilidades, mais democráticas, criativas e emancipatórias. Como tenho repetido noutras ocasiões, as teorias e epistemologias da avaliação têm avançado muito mais em termos de complexidade metodológica e de validade social, ética e cultural do que pode parecer quando olhamos muitas das práticas e das políticas de avaliação. Frequentemente marcadas, aliás, por um revés neopositivista.
A emergência da figura do director de escola ocorre de forma lenta e gradual ao longo de vários anos
Partindo do trabalho que tem feito nesta área, que conclusões pode adiantar?
Vivemos num país onde o Estado avalia as escolas, os professores e os alunos, mas onde nem o Estado nem as políticas públicas são suficientemente avaliados. Neste aspecto, aliás, considero que a integração de Portugal na União Europeia trouxe alguns aspectos positivos porque, de alguma forma, tem induzido a avaliação das políticas, condicionando mesmo, por esse processo, muito financiamentos e programas.
Mas existe entre nós, apesar de tudo, uma forte relutância em avaliar políticas e acções de governação; e, sobretudo, uma grande relutância na adopção clara de sistemas ou modelos democráticos e justos deaccountability (prestação de contas e responsabilização). Deveria ser normal que um governante prestasse contas aos cidadãos, à sociedade civil, aos profissionais, aos pais – e que os cidadãos, os pais e a sociedade civil exigissem a prestação de contas e a responsabilização dos governantes e dos dirigentes que estão à frente de instituições públicas ou que visam o interesse público, sem que nenhuma das partes se excluísse das suas próprias responsabilidades. Afinal, a co-responsabilização é uma dimensão da vida colectiva que visa manter um mundo melhor onde possamos ter uma vida mais decente e digna.
A classe política entende habitualmente que essa prestação de contas deve ser feita apenas em altura de eleições...
Numa democracia representativa, os períodos que antecedem as eleições e as próprias eleições são, sem dúvida, momentos que possibilitam essa prestação de contas. Mas pretender circunscrever toda a questão a esses momentos dá-nos uma visão muito redutora sobre a política, a vida, e a “política da vida”. A exigência da prestação de contas faz parte dos discursos partidários de inspirações e recortes ideológicos muito distintos.
Esta é, por isso, uma questão mais complexa e ampla que não pode ser assumida sem um profundo questionamento dos seus pressupostos, dispositivos e consequências. Por isso, não pode depender de momentos, factos e motivações que têm, muitas vezes, uma dimensão pragmática, incerta e instável, e que se esgotam nas eleições.
Neste sentido, penso que é preciso assumir que a avaliação das políticas pode ser uma forma de integrar a prestação de contas e a responsabilização nos processos de governação. Com a vantagem de, também dessa forma, se assumirem com mais sentido ético os compromissos dos períodos eleitorais. Mas, não esqueçamos que há muitos modelos diferentes de accountability - desde os menos democráticos aos mais democráticos - para os quais precisamos dirigir a nossa disponibilidade de cidadania crítica e capacidade reflexiva.
As políticas educativas seguiram ao longo da última década, portanto, um rumo bastante diferente daquele que era preconizado nos anos 80 e 90?
Acho que houve uma maior clarificação em relação a certos caminhos. Se pensarmos, por exemplo, nas últimas alterações ao modelo de gestão das escolas públicas, podemos constatar que a emergência da figura do director de escola ocorre de forma lenta e gradual ao longo de vários anos. Possivelmente, a transição que os sectores mais conservadores e neoliberais realizaram noutros países não teve terreno tão propício, na mesma altura, para uma mudança idêntica em Portugal. Hoje, pelo contrário, uma gestão voltada para processos de eficiência, avaliação e controlo, inspirada na “visão” da chamada nova gestão pública (“new public management”), e que alastrou a partir de países centrais, acabou por ser adoptada, também entre nós, pelo Estado e pela administração pública.
Neste contexto, os dispositivos de prestação de contas hierárquico-burocráticos ou “managerialistas” têm muito pouco a ver com uma democracia crítica e participativa. Aliás, corremos o risco de termos algumas escolas transformadas em panópticos de instrução altamente desmotivadores para estudantes e professores. E isto é ainda mais grave se tivermos presente que, de há uns anos a esta parte, tem vindo a esboçar-se um fosso entre democratização e meritocratização/selectividade.
Criou-se a ideia, por exemplo, de que o ensino básico, porque universal e obrigatório, era um mal necessário decorrente das políticas de democratização, e que, por isso, teriam de ser os níveis educativos subsequentes, como o secundário, a assumir a função de “pôr ordem” no sistema e reintroduzir padrões meritocráticos e de maior selectividade. Este movimento reorganizativo acentuou-se por causa da massificação do ensino secundário e do aumento do desemprego dos jovens, conduzindo a uma crescente pressão, por parte da classe média no sentido de se adoptarem estratégias mais explícitas de preservação dos seus interesses e expectativas.
Neste sentido, a introdução de mecanismos de maior selectividade, como é o caso dos exames externos, pretende contribuir, entre outros aspectos, para fazer a gestão da crise da escola e das diversidades nela presentes. E esta maior selectividade e pressão para a produção de resultados mensuráveis não é, de todo, compatível com qualquer modelo de gestão.
Voltando ao tema da nossa entrevista e a uma questão que frequentemente se coloca neste debate: avaliar implica necessariamente classificar? Qual é a sua opinião?
Uma acção não é necessariamente consequência da outra. A avaliação tem uma dimensão muito mais ampla do que a classificação. Esta última poderá, eventualmente, ser uma das consequências da avaliação – uma consequência estática. Mas a avaliação é dinâmica, procura ajudar a promover, a mudar e a melhorar os nossos percursos e projectos, para termos uma consciência crítica dos processos, das organizações, das pessoas, das interacções. A avaliação é um universo maior, é um campo denso da prática social, de pesquisa e de investigação empírica e teórica, sendo, também, um campo de decisão política e educacional.
De uma forma generalista, que principais questões enformam hoje os sistemas de avaliação?
Há pelo menos duas questões a ter em conta. Antes de mais, a que diz respeito à forma como são utilizados os sistemas de avaliação pelos poderes constituídos e governos dos diferentes países, ou seja, como se assume a avaliação enquanto instrumento ou estratégia, quer de controlo, quer de gestão, quer de apoio à decisão. Por outro lado, temos a questão que diz respeito à forma como a avaliação é encarada enquanto ferramenta ao serviço da capacidade de empowerment, de desenvolvimento, de emancipação, de criatividade, de acesso ao conhecimento e de auto-conhecimento.
Ao mesmo tempo, temos de pensar não apenas nas grandes orientações das políticas de avaliação, mas também em tudo aquilo que hoje está disponível em termos de reflexão científica, metodológica e ética em torno da avaliação. Para responder à sua questão, diria que existem actualmente, pelo menos, dois movimentos: um que questiona a agenda em torno das políticas de avaliação - e da avaliação de políticas - e outro que se centra nas epistemologias e teorias da avaliação - ou numa meta-avaliação da avaliação.
Respeito muito aqueles que defendem que a avaliação é, e deve ser, uma disciplina científica, até porque muitos são grandes nomes do pensamento e da investigação em avaliação. Eu prefiro, todavia, falar de um campo, no sentido que lhe atribui Pierre Bourdieu, enquanto espaço atravessado por muitas influências, poderes, paradigmas, contributos…
Estas posições devem ser consideradas como pontos de partida para tentar responder ao que me pergunta – coisa que não poderei fazer por agora.
Não é com instrumentos burocratizantes, pouco credíveis ou impostos que se avalia uma profissão complexa como a docência
Defendia em tempos uma avaliação formativa no contexto de um “projecto de educação emancipatória” que funcionasse como eixo de articulação entre o Estado e a comunidade. Essa “utopia realizável”, como lhe chamava, ainda é possível no actual contexto?
Sim, perfeitamente, e isso inscreve-se, sobretudo ao nível local, nas perspectivas de resistência contra-hegemónica que há pouco referia. Mas uma avaliação formativa é mais complexa porque exige condições que, infelizmente, estão cada vez mais afastadas do quotidiano das escolas públicas. Pressupõe, por exemplo, uma relação de confiança entre professores e estudantes. Infelizmente, vamo-nos apercebendo que vivemos num sistema em que a desconfiança impera: dos governantes em relação aos governados, do ministério em relação aos professores, dos professores em relação aos alunos, dos pais em relação aos professores; e vice-versa. É uma característica muito marcante na nossa sociedade actual.
E julgo que, neste aspecto, este Governo começou muito mal. Mesmo conferindo o benefício da dúvida sobre as eventuais boas intenções da tutela, as críticas iniciais aumentaram a desconfiança sobre o sistema e sobre os professores. E grande parte do actual sentimento de desmotivação resulta desta desconfiança. Mas há outras condições que são necessárias para fazer uma avaliação formativa enquanto dispositivo de aprendizagem e de realização pessoal: motivação, autonomia e empenho profissionais, direito a ter voz e a ouvir outras vozes, conhecimento para lidar com as diferenças, possibilidade de acompanhar percursos distintos, tempo para fazer registos e planificar caminhos, colaboração sincera dos alunos, dos pais e da comunidade educativa…
Há certamente práticas docentes que estão imbuídas de orientações formativas em termos de avaliação, mas é muito difícil dizer que a avaliação formativa é uma prática normal no quotidiano das nossas escolas. Por isso, trata-se de uma modalidade de avaliação que, para poder ser concretizada com todas as condições pedagógicas, tem que ser assumida num compromisso entre o Estado, os estudantes, os professores e a comunidade.
Irá levar algum tempo a recuperar o sentimento de confiança mútua...
Claro, e sem essa confiança mútua não é possível pôr em prática uma avaliação formativa séria. Porque ela supõe que os alunos sejam capazes de se expor e falar das suas dificuldades solicitando ajuda; da mesma forma, cada professor, confiando nos alunos, deve ser capaz de compreender o que está em causa e criar condições para proporcionar essa ajuda e acompanhamento. A avaliação formativa precisa de mais tempo para ser preparada, quer em casa, quer na escola. Defender a avaliação formativa é, de alguma forma, abalar o sistema tal como está actualmente estruturado. Ora, essa mudança não parece compatível com a racionalidade dominante, nem com o predomínio de outras formas de avaliação, a que já aludi nesta entrevista.
É possível um sistema de avaliação aferir objectivamente a qualidade do desempenho de um professor?
Em avaliação, a objectividade é sempre a objectividade possível. Se a função docente é, em si mesma, complexa, os instrumentos de avaliação têm de corresponder a essa complexidade. E quando digo intrumentos complexos não pretendo dizer complicados, mas sim dispositivos de avaliação que consigam dar conta da amplitude das tarefas e das suas especificidades. Não é com instrumentos burocratizantes, pouco credíveis ou impostos que se avalia uma profissão complexa como a docência. Há, felizmente, muitos modelos testados e conhecidos sobre a avaliação do desempenho docente noutros países. Mas é necessário mais tempo para chegarmos a um modelo que seja consistente e consensual porque os professores querem, e precisam, de ser avaliados, mas de uma forma que os dignifique como pessoas e como educadores.
A este propósito, temos que pensar por que razão a experiência recente de decidir um modelo de avaliação do desempenho docente não correu bem entre nós. Talvez possamos aproveitar o balanço crítico dessa experiência para repensar muitas coisas. Já há muito tempo se sabia que indexar ou condicionar, ainda que fosse apenas em parte, a avaliação dos professores aos resultados escolares dos alunos seria uma decisão problemática e injusta.
Há alguns anos escrevi a este propósito, dizendo nomeadamente que seria uma das coisas mais nefastas que poderiam acontecer. Aqui, como noutras coisas, não aproveitámos as boas experiências. Se é verdade que a acção de um professor pode ser decisiva para o sucesso escolar de um determinado aluno, ou mesmo de uma turma, também sabemos que o sucesso é um fenómeno multifactorial que não se resume à competência profissional dos professores. Este aspecto acabou por ser provisoriamente deixado de lado, mas não sabemos como será resolvido.
Eu defendo que a questão crucial é saber se consideramos ou não os professores como profissionais, e o que é que isso pode significar exactamente numa época de mudanças educacionais e sociais profundas, não apenas em relação aos dispositivos de regulação como também em relação ao que podem ou devem ser as missões e objectivos essenciais da educação. Sem criar consensos em torno destes pressupostos é difícil decidir que modelo de avaliação deve ser proposto para e com os professores.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
Almerindo Janela Afonso + Ricardo Jorge Costa
P.E. N.º 185, série II
P.E. N.º 185, série II
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