terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Conteúdo - Métodos da filosofia


Os trabalhos filosóficos são realizados mediante técnicas e procedimentos que integram os cânones do pensamento racional. Tradicionalmente, a filosofia destaca e privilegia a argumentação lógica, em linguagem natural ou em linguagem simbólica, como a ferramenta por excelência da apresentação e discussão de teorias filosóficas. A argumentação lógica está associada a dois elementos importantes: a articulação rigorosa dos conceitos e a correta concatenação das premissas e conclusões, de modo que essas últimas sejam derivações incontestáveis das primeiras. Toda a ideia filosófica relevante é inevitavelmente submetida a escrutínio crítico; e a presença de falhas na argumentação (falácias, sofismas, etc.) é frequentemente o primeiro alvo das críticas. Desse modo, o destino de uma tese qualquer que não esteja amparada por argumentos sólidos e convincentes será, frequentemente, severamente rejeitada por parte da comunidade filosófica. Embora a reflexão sobre os princípios e métodos da lógica só tenha sido realizada pela primeira vez por Aristóteles, a ênfase na argumentação lógica e na crítica à solidez dos argumentos é uma característica que acompanha a filosofia desde os seus primórdios. A própria ruptura entre o pensamento mítico-religioso e o pensamento racional é assinalada pela adoção de uma postura argumentativa e crítica em relação às explicações tradicionais. Quando Anaximandro rejeitou as explicações de seu mestre – Tales de Mileto – e propôs concepções alternativas sobre a natureza e estrutura do cosmos, o pensamento humano dava seus primeiro passos em direção ao debate franco, público e aberto de ideias, orientado apenas por critérios racionais de correção, como forma destacada de se aperfeiçoar o conhecimento; e abandonava, assim, as narrativas tradicionais sobre a origem e composição do universo, apoiadas na autoridade inquestionável da tradição ou em ensinamentos esotéricos.

Mas não se podem restringir os métodos da filosofia apenas à ênfase geral na argumentação lógica e na crítica sistemática às teorias apresentadas. Nas grandes tradições da história da filosofia, podem ser identificadas duas orientações bem abrangentes, cujos objetivos e técnicas tendem a diferir radicalmente: existem as escolas que privilegiam uma abordagem analítica dos problemas filosóficos e aquelas que optam por uma abordagem predominantemente sintética ou sinóptica.

A orientação analítica é exemplificada nos trabalhos filosóficos que se dedicam à decomposição de um conceito em suas partes constituintes e ao exame criterioso das relações lógicas e conceptuais explicitadas pela análise. O exemplo clássico é a análise do conceito de conhecimento. A reflexão sobre a natureza do conhecimento levou os filósofos a decompor a noção de conhecimento em três noções associadas: crença, verdade e justificação. Para que algo seja conhecimento é imprescindível que seja antes uma crença – em outras palavras, o conhecimento é uma espécie diferenciada do género mais abrangente da crença. A pergunta óbvia que essa primeira constatação sugere é: o que diferencia, então, o conhecimento das demais formas de crença? Nesse ponto, o exame do conceito conduz a duas noções distintas. Em primeiro lugar, à noção de verdade. Intuitivamente separamos as crenças falsas das verdadeiras. É por isso que mantemos a crença de que Pai Natal existe num patamar diferente da crença de que a Lua gira em torno da Terra – quem sustenta a primeira, tem apenas uma crença; quem sustenta a última, provavelmente sabe algo sobre o sistema solar, pois exprime uma crença verdadeira. Mas, para que seja promovida à condição de conhecimento, a crença precisa de algo mais: ela precisa ser apoiada por alguma espécie de justificação. Além de sustentar uma crença verdadeira, o sujeito deve ser capaz de apresentar os meios ou as fontes, consideradas universalmente legítimas, que lhe propiciaram chegar à crença em questão. Feito esse exame, a conclusão é a célebre fórmula: o conhecimento é crença verdadeira justificada. Nesse e em muitos outros casos envolvendo noções filosoficamente relevantes, o trabalho de análise é capaz de explicitar pressupostos importantes implicitamente presentes no uso dos conceitos.

A outra orientação – a sintética – percorre o caminho oposto ao da análise. Os adeptos dessa orientação buscam elaborar uma síntese de várias noções relevantes e apresentá-las como um todo harmónico. Às vezes chamada de “filosofia especulativa”, essa orientação filosófica pretende revelar princípios universais que possam reunir organicamente vários elementos díspares, que aparentemente não guardam relações relevantes entre si. Um caso paradigmático dessa orientação é a filosofia hegeliana, cujo fito é integrar numa dinâmica panteísta a evolução das mais diversas formas de manifestação da cultura humana – artes, leis, governos, religiões, ciências e filosofias.

Desde o surgimento da ciência moderna, vários filósofos buscaram separar a investigação filosófica da investigação científica por meio de uma caracterização dos métodos peculiares à filosofia. Como as ciências especiais privilegiam a investigação empírica, especialmente por adoção de métodos experimentais, defendeu-se que a adoção de métodos a priori (isto é, de métodos que antecedem a investigação empírica ou são dela independentes) seria o traço definidor do trabalho filosófico. Nos casos da argumentação lógica, da análise conceptual e da síntese compreensiva não há necessidade de observação dos fenómenos para que se decida se uma conclusão é ou não é logicamente correta, se um conceito está sendo ou não corretamente empregado ou se uma visão sinóptica é ou não é incoerente. Isso não implica um divórcio entre a ciência e a filosofia. Ao contrário, implica que os filósofos estão aptos a analisar os conceitos e argumentos das ciências especiais, e, nesse domínio, podem prestar um serviço relevante ao aperfeiçoamento das teorias científicas.
Além das orientações metodológicas acima explicadas, há outras duas estratégias que podem ser caracterizados como métodos a priori. Os experimentos mentais e os argumentos transcendentais. Um experimento mental (às vezes também chamado de "experiência de pensamento") é a elaboração de uma situação puramente hipotética – geralmente impossível de ser construída na prática – por meio da qual o filósofo testa os limites de determinados pressupostos ou conceitos. O experimento mental mais famoso da história da filosofia é a hipótese do Génio Maligno concebida por Descartes: ao imaginar um Deus omnipotente que se dedica a ludibriá-lo, Descartes leva o cepticismo ao seu extremo a fim de identificar uma certeza inabalável capaz de superar até mesmo a hipótese do Génio Maligno. (Essa hipótese recebeu uma roupagem moderna na elaboração de outro experimento mental – o cérebro numa cuba).

O outro método – o dos argumentos transcendentais – foi concebido por Kant, e consiste em tomar como dados os fatos da experiência, e deduzir coisas que não são passíveis de ser experienciadas, mas que constituem a própria condição de possibilidade daqueles fatos. Com essa espécie de argumento, Kant concluiu, por exemplo, que a forma pura do espaço é uma das condições necessárias pressupostas pela experiência dos objetos externos, pois sem ela tal experiência seria impossível.

Embora o emprego da lógica formal, da análise conceptual e dos experimentos mentais sejam constantes na filosofia contemporânea, predomina hoje, sobretudo na tradição analítica, a orientação que se convencionou chamar de naturalismo filosófico. Essa orientação tem suas origens nos trabalhos do filósofo americano Willard Van Orman Quine (1908-2000) que criticam a distinção entre questões conceptuais e empíricas. Os adeptos do naturalismo rejeitam a suposição de que a filosofia se diferencie das ciências por um conjunto de métodos próprios: os problemas filosóficos e os científicos pertencem a uma única e mesma esfera e, portanto, os métodos científicos, historicamente bem-sucedidos, devem também ser aplicados à problemática filosófica.

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