sábado, 3 de fevereiro de 2018

“É importante treinar a criança a ficar na tarefa, a colocar nela mais esforço e investimento”


Ana Salgado, psicóloga e especialista em Psicologia da Educação, em entrevista ao EDUCARE.PT, lembra aos pais que a educação se faz também pelo exemplo. E explica como as birras das crianças não as devem fazer perder “oportunidades de aprendizagem”.

O medo da criança fazer uma birra não deve impedir os pais de a levar a um concerto. “O facto de a criança não conseguir autorregular o seu comportamento completamente não deve ser um motivo impeditivo de a tirar de casa. Porque assim se perdem oportunidades de estímulo e de autorregulação.” Diz Ana Salgado, psicóloga e especialista em Psicologia da Educação, numa diversificada entrevista ao EDUCARE.PT, dias depois de ter sido oradora numa palestra sobre autorregulação do comportamento e dificuldades de aprendizagem dirigida a uma vasta audiência de pais e mães. 

Os primeiros anos de vida da criança são os mais difíceis e exigentes. Comportamento e desenvolvimento infantil são questões que preocupam quem tem a árdua tarefa de educar a criança. “Cabe aos adultos – pais, avós, educadores e professores – dar pistas sobre o que a criança pode ou não fazer. Ou seja, fazer uma regulação externa.” Com o passar dos anos, “espera-se que esta regulamentação externa passe a interna”. Mas trata-se de um processo, lembra Ana Salgado, “os marcos nem sempre estão bem definidos e muitas vezes temos adolescentes e adultos ainda a precisarem desta regulação externa”.

“A educação também se faz pelo exemplo”, insiste Ana Salgado. No pré-escolar, surgem as preocupações iniciais com a aquisição de competências. O que podem fazer os pais para criarem “bons alunos”? É assim tão importante pôr as crianças aos três anos a aprender Inglês? “Nos primeiros anos de vida, a criança não precisa mais do que relações positivas, adultos de referência e estímulos diversificados”, tranquiliza a psicóloga.

Mas atenção à superestimulação: “É muito fácil ver crianças com 3 anos que saltam do desenho para a plasticina para os “Legos”, para as bonecas, para o tablet, tudo em 30 minutos. É importante treinar a criança a ficar na tarefa, a colocar nela mais esforço e investimento.”

(E): Como podemos ensinar a criança a controlar o seu comportamento? É pelo exemplo?
Ana Salgado (AS): As crianças quando nascem têm os seus níveis de consciência menos desenvolvidos. A consciência social do que é uma norma, uma regra ou uma expectativa varia com a cultura e o contexto onde crescem, mas vai sendo desenvolvida ao longo dos primeiros anos de vida. Significa que no início a criança terá mais dificuldade em controlar o seu comportamento. Cabe aos adultos – pais, avós, educadores e professores – dar pistas sobre o que a criança pode ou não fazer. Ou seja, fazer uma regulação externa.

À medida que o tempo passa, espera-se que esta regulamentação externa passe a interna. Pelo meio, surge a questão de regular pelo exemplo. Como faz o pai? Se no supermercado ajuda a senhora mais idosa a levar as compras, a criança terá esse exemplo de vida e provavelmente vai querer ajudar os outros. Se o pai não grita com a mãe, provavelmente a criança não vai gritar com a mãe, nem com os amigos. A educação também se faz pelo exemplo.

E: Que fatores comportamentais podem afetar as aprendizagens?
AS: Existem fatores de risco e fatores protetores. A investigação tem-nos mostrado que pais com habilitações superiores tendem a conseguir apoiar melhor os seus filhos na escola. Até dar outro tipo de oportunidades em termos de progressão académica. Mas há exceções. Alguns estudiosos também vão dizendo que, nos primeiros anos de vida, a criança não precisa mais do que relações positivas, adultos de referência e estímulos diversificados.

E: Não precisa de oportunidades de aprendizagem?
AS: Os estímulos diversificados já são as oportunidades de aprendizagem. Mas até aos três anos não importa tanto se a mãe da criança tem o 4.º ano de escolaridade ou o doutoramento. Importa sim que a mãe esteja disponível para cuidar, para ser a base segura de vinculação e para ser um adulto de referência que dê confiança, segurança à criança e a estimule. 

E: Até aos três anos os pais não devem estar preocupados que as crianças aprendam os números, as letras ou até Inglês?
AS: Sabemos que, em termos de processamento cognitivo, as crianças são capazes de aprender idiomas. Muitas crianças até conseguem ser bilingues quando têm pais de diferentes nacionalidades. Mas ter crianças a falar um segundo idioma não deve ser, nestas idades, uma preocupação para os pais. Nos primeiros anos, a multiplicidade de experiências é o mais importante. Levar a criança a um concerto ou ouvir um CD em casa. Fazê-la contactar com as artes, a música, o teatro, a dança. Também levá-la ao parque da cidade, à quinta para perceber de onde vêm as maçãs ou colher um tomate.

Esta multiplicidade de experiências, às vezes até muito sensoriais, vai permitir às crianças explorar o que elas são, o mundo e por sua vez também a autorregular o seu comportamento. As crianças vão perceber que em determinados contextos podem sentar-se no chão ou pegar em montes de folhas secas e atirar ao irmão. E noutros contextos têm de fazer silêncio, porque estão num ritual.

E: Há experiências que são desaconselhadas. Não levar a criança a certos sítios para evitar as birras...
AS: Levar uma criança de 4 ou 5 anos um concerto de música clássica é muito exigente em termos de autorregulação. Mas os pais não devem impedir uma criança mais nova de ir ao concerto do irmão mais velho, porque há risco de ela fazer uma birra. O facto de a criança não conseguir autorregular o seu comportamento completamente não deve ser um motivo impeditivo de a tirar de casa. Porque assim se perdem oportunidades de estímulo e de autorregulação.

Não vamos exigir de uma criança de 3 anos o mesmo tipo de comportamento e regulação de um jovem de 15 anos. Os pais podem levar a criança ao concerto, mas vão os dois, para um deles poder sair com a criança em caso de necessidade. Os pais precisam de deixar as crianças testarem-se a si próprias e perceber quais são os limites. Uma queixa frequente dos pais é que as crianças não sabem lidar com a frustração e que perante qualquer obstáculo pensam que o mundo vai acabar. Se estivermos sempre a proteger as crianças, obviamente que estamos a cuidar delas, mas a fazê-lo dentro de uma gaiola.

E: É com experiências destas que a criança aprende?
AS: Se pensarmos no sentido lato de aprendizagem, estamos a aprender quase involuntariamente em qualquer segundo da nossa vida. Os pais vão no carro a ouvir música na rádio, a criança ouve e mesmo que a letra seja em inglês, muitas vezes aprende e consegue cantarolar. O que aconteceu? Uma aprendizagem involuntária. Houve um estímulo, captou a atenção da criança, o input foi processado pelo cérebro, a memória ativou-se e a letra ficou lá. O facto de a aprendizagem poder ser voluntária tem um potencial gigantesco e um risco muito grande, porque temos o reverso da medalha. Mas para a criança aprender não basta ter um ambiente enriquecedor, é preciso motivação.

E: A motivação é uma questão delicada...
AS: Há meninos e meninas em países muito desfavorecidos que não têm os estímulos, nem o ambiente enriquecedor que têm as nossas crianças, mas estão tão motivados para aprender que fazem quilómetros a pé para irem à escola. No oposto temos a nossa realidade, superestimulante, com todo o tipo de brinquedos de diferentes categorias e meninos e meninas sem motivação para aprender. Temos cada vez mais crianças com défices de atenção provavelmente ligados ao facto de serem superestimulados.

É muito fácil ver crianças com 3 anos que saltam do desenho para a plasticina para os “Legos”, para as bonecas, para o tablet tudo em 30 minutos. Depois, os pais pensam que a criança é muito ativa e curiosa. Até pode ser! Mas também é importante treinar a criança a ficar na tarefa, a colocar nela mais esforço e investimento. 

E: Como é que os pais podem fazer isso?
AS: A criança começa um desenho e o pai ou a mãe podem observar e fazer perguntas como o que estás a desenhar? A criança responde uma flor. Os pais contrapõem: a quem vais dar essa flor? A criança responde a uma menina. Os pais dizem para a criança desenhar a menina. E continuam as perguntas: onde mora a menina? A criança diz que mora numa casa. Os pais pedem para a criança desenhar a casa. Assim por diante.

Ou seja, levar a criança a investir na tarefa. De modo que aquele desenho não demore apenas 5 minutos a ser feito, mas demore 30 minutos. Isto também é prepará-la para o contexto escolar. Porque na escola a professora vai pedir tarefas não de 5 minutos, mas de 30 minutos. E como a criança não está habituada a estar tanto tempo a fazer uma tarefa, não vai gostar. Até porque é mais estimulante saltar de tarefa em tarefa. Mas vai ter de fazer o que a professora pede. E depois, surge a desmotivação ou a hiperatividade.

E: Quer dizer que a criança reage mal à diminuição de estímulos a que está sujeita na escola?
AS: É um problema da nossa sociedade. Há um diferencial gigantesco entre o que as crianças têm em casa, em termos de estímulos e possibilidades, e o que existe na escola. Continuamos a ter uma escola com um quadro negro, uma professora que fala, uma turma que escreve e uma carteira onde a criança está sentada ao lado da colega. Temos uma escola que não é tão estimulante quanto estar em casa.

Em algumas situações, as crianças acabam por aprender mais em casa com o tablet e o computador do que na escola. Aprendem ao ritmo delas, aprendem o que querem e quando querem. Este é um grande desafio colocado às nossas escolas e aos professores. Como respeito o ritmo de aprendizagem da criança? Como a motivo? Como torno a minha aula mais dinâmica? Como diferencio os níveis de conhecimento dentro da sala de aula?

E: Mas há exemplos de boas práticas nas escolas em torno de todas essas questões.
AS: Temos escolas com projetos inovadores e professores que se implicam muito. Há uma escola que já percebeu que é preciso fazer um mobiliário diferente para possibilitar que os alunos estejam em pé enquanto fazem algumas tarefas. Algo que, em termos de motricidade motora, respeita mais as necessidades daquelas crianças. Há outra escola que está a apostar nos quadros interativos, porque se apercebeu do potencial enorme da tecnologia. Outra escola faz intervalos a horas diferentes, porque testou e percebeu que essa mudança era importante. Há escolas a trabalharem em <i>problem-based learning</i> ou com metodologias de projetos. Claro que existem bons exemplos! Só não estamos a ser capazes de congregar todas as boas práticas numa sala de aula.

Informação retirada daqui

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