A partir dos anos setenta do século XX os sistemas educativos mostraram-se desadequados à nova procura social. Experimentaram-se as reformas globais e puseram-se em marcha outras que atacavam este ou aquele aspecto estruturante do sistema. Umas e outras destas reformas, tiveram como resultado mais visível, uma degradação da qualidade do ensino, um alargamento desmedido do mandato atribuído às escolas, um aumento da crítica e do descontentamento social face à educação e ao ensino, o desprestigio social do estatuto profissional dos professores e um progressivo aumento do mal estar docente.
A falência destas reformas é hoje inquestionável. O poder dominante usou, e continua a usar, os professores como «bode expiatório» para justificar o insucesso continuado das suas políticas de reforma. Neste processo reformista os alunos e docentes foram os mais penalizados.
Mais do que reformar defendemos a necessidade de reinventar os sistemas educativos abrindo novos caminhos à educação pública e à profissão docente. Este desiderato passa por dar autonomia às escolas e ao exercício da profissão. Pela ousadia e pela capacidade de colocar radicalmente em questão os actuais sistemas educativos, por sermos capazes de encontrar um novo valor de uso para a educação, por escolher e abrir, colectivamente, novos caminhos à profissão docente.
É este o grande desafio que se coloca à actual geração de professores. É necessário encontrar outras lógicas de enfrentamento dos actuais problemas educativos e da actual crise da profissão docente. Essa reflexão-acção é inevitavelmente política. Tem conteúdo ideológico. Obriga a tomar partido. Não se pode esconder por detrás de uma fingida neutralidade da ciência. É essa acção-reflexão comprometida que continuamos a propor. O que quer e o que faz a direita? No campo educativo a direita quer o que está a fazer com o apoio dos pesquisadores, cientistas e docentes politicamente insonsos. A direita[1], em nome da descentralização e da autonomia, centraliza fortemente as decisões que estruturam e dominam o andamento global do sistema, controlando os conteúdos a ensinar, o modo de submeter os alunos a uma formação que responda aos interesses da classe dominante e, em nome do mérito, garanta que o sistema reproduz uma sociedade cada vez mais hierarquizada e polarizada. O que pensa, organiza e faz a direita está à mostra. Que a apoie quem quiser.
A árvore da esquerda ? não só da coisa educativa, mas em geral ? mostra-nos ter hoje dois ramos, cada um com os seus galhos (uns vivos, outros secos). Um desses ramos é o da Esquerda Progressista, o outro o da Esquerda Crítica.
O ramo progressista aceita o sistema capitalista. Parafraseando Greg Palast, a Esquerda Progressista deseja "a melhor democracia que o dinheiro pode comprar". O reflexo deste posicionamento na educação traduz-se num esforço para procurar políticas que promovam a melhor distribuição social dos benefícios do ensino e da educação, sem tocar na estrutura-base do sistema. Os pedagogos progressistas são os partidários das «coisas giras». Preocupam-se com o carinho a dar aos «meninos» e esgotam o seu esquerdismo em temas como «a igualdade de género», o acompanhamento social e psicológico dos «meninos-problema» e outros temas afins «muito giros». Nada que ponha radicalmente em causa os fundamentos do sistema, a desigualdade e a exploração capitalista.
Por seu lado, o ramo crítico toma como sustentação do seu pensamento e acção o fim da exploração capitalista. Como modo de intervenção usa «o poder suave»[2], isto é, a aposta no debate, na cooperação e na renúncia a toda a acção violenta. O pensamento crítico não sendo compaginável com o capitalismo, não pode ser confundido com as «políticas de protesto» ? populares num certo sindicalismo ?, estas são, quando muito, um seu galho (seco), ainda que eu as veja como um epifenómeno da sociedade capitalista.
O pensamento crítico, usando o poder suave, tem em conta o movimento dialéctico da sociedade e as suas rupturas. Reconhece que a maturidade política se revela em cada ser humano quando este assume livremente a sua sorte abandonando as suas pretensões infantis a mandar sozinho no Mundo e a impor-lhe as suas convicções, emoções, crenças, caprichos ou preconceitos. É o reconhecimento dos direitos políticos dos outros que nos permite assumir o nosso poder de facto, como prémio da nossa renúncia em querer para nós o poder e a verdade absoluta. Também em política «quem tudo quer tudo perde».
A maioridade política é um processo em que nos inserimos e nos permite ver a democracia como a cidade onde os humanos conversam, se confrontam na Praça da República, argumentam e decidem cooperativamente sobre os caminhos mais aceitáveis. Caminhos de todos, despidos de violência e que nunca são perfeitos, ideais, acabados. São apenas caminhos públicos, aceitáveis, justos, transitórios e com rumo.
O pensamento crítico, e o poder suave, trabalham para construir o colectivo (e o individual decorrente deste), numa dada geografia, num dado tempo e num projecto partilhado com os demais sujeitos do processo histórico.
Na vivência deste processo histórico o crítico recusa radicalmente a exploração de classes e gera novos conhecimentos e novas práticas sobre como viver cooperativamente numa sociedade impulsionada por nós próprios.
A esquerda crítica serve-se de uma pedagogia crítica humanista. Para ela os direitos económicos são parte de uma luta mais ampla pelos Direitos Humanos, pela justiça social e por uma sociedade democrática plural, cooperativa e protagonista. Esta esquerda é patriótica, de um patriotismo sem nacionalismo, porque a sua pátria é o Mundo.
A esquerda crítica, e o poder suave, não circunscrevem o conhecimento à produção de prestigio e bem estar social. O prestigio e o bem estar social não são indicadores da boa sociedade humana. A aproximação ou o distanciamento da prática dos Direitos Humanos, esses sim, são indicadores da boa sociedade.
A esquerda crítica ? com o seu poder suave ? nunca é dona da verdade. Não ordena, não exige, procura, constrói. Não é sectária. Não é arrogante e não tem medo. "Se limitarmos a nossa actividade [social e política] devido ao medo, então essa é a atitude menos patriótica [no sentido universal] que podemos ter"[3].
É, pois, sem arrogância, sem violência e sem medo, com serenidade e inteligência que recusando o que está e a reforma do que está, a esquerda crítica deve ser chamada a descobrir e a construir os novos caminhos da educação (e da vida) mais aceitáveis, mais justos e viáveis. É para essa reinvenção colectiva que o colectivo deste jornal trabalha e vos convida. E boas férias!
[1] Mesmo a que se apelida de esquerda
[2] Sobre o «Poder Suave» publiquei, entre outros, um texto na Página de Janeiro de 2008
[3] Nathalia Jeramillo
José Paulo Serralheiro
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