domingo, 27 de maio de 2012

Gostam de ouvir histórias, mas têm “preguiça de ler”

Os alunos do 1.º ciclo preferem ler textos clássicos. Mas o gosto pela leitura diminui com a idade. E com o aumento da concorrência multimédia. Por isso, mais difícil que criar leitores é mantê-los. Os estudos mostram que os hábitos de leitura têm de nascer na família. Para que o gosto pela leitura absorva as crianças desde pequenas.

A tarefa estava a deixar o Miguel, de 13 anos, muito enervado. Como trabalho para casa, nas férias de Natal, a professora de Português do 7.º ano tinha pedido à turma uma ficha de leitura com um resumo original sobre um livro à sua escolha.
Como o trabalho não tinha "restrições oficiais", a explicadora sugeriu As Aventuras de João Sem Medo, de José Gomes Ferreira. "Pareceu-me fácil de ler e com um enredo atrativo para a idade dele", recorda Raquel, que prefere o anonimato. Mas o número de páginas não atendia ao requisito que o miúdo mais queria ver cumprido.

Quando viu o explicando dizer que ia ler a "Carta a El-Rei D. Manuel, por Pero Vaz de Caminha, e outros Textos sobre a Descoberta do Brasil", Raquel não conteve a surpresa: "Fiquei parva!" O critério da escolha do miúdo assentava na comparação da grossura das lombadas. "Disse-me que preferia o livro mais fininho", recorda a explicadora.

A "Carta" tinha chegado às mãos do aluno via distribuição gratuita juntamente com um jornal diário que o pai lia. E era de facto um livro pequeno. "Ele nem se tinha apercebido que o conteúdo da Carta era intragável para a sua idade", graceja a explicadora. Ler uma das páginas ao acaso foi quanto bastou para o demover dessa leitura que o miúdo julgava ser mais fácil.

Os dias de pausa letiva passavam e a cada visita à sessão de explicação, Raquel perguntava pelos avanços na leitura da obra que recomendara. Mas as páginas não se liam sozinhas. E o trabalho para casa teve de tomar outro rumo, confessa a explicadora: "Acabei por lhe contar a história toda oralmente. Ele adorou. Mas ler mesmo, só algumas partes e porque eu insisti." E assim a ficha de leitura acabou por ser feita sem que o livro tivesse sido lido.

O episódio não é único. Durante a atividade de explicadora, Raquel viu repetidas vezes situações como esta em que os alunos "empurram os livros para ler com a barriga". Mas, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a razão da falta de vontade para a leitura é menos óbvia: "O desinteresse pela leitura em livro não significa a ausência de gosto pela história, apenas preguiça de ler, talvez por falta de hábito."

Papel versus multimédia
Pedro Balaus Custódio, professor da Escola Superior de Educação (ESE) de Coimbra, tem uma explicação para este fenómeno. O "convívio muito precoce com diferentes e novos suportes de leitura e de escrita, associado às tecnologias da informação e da comunicação".

"Esta pode ser uma das razões para o afastamento dos jovens, pois cada vez mais cedo se embrenham em aventuras virtuais em consolas e plataformas de jogos, estando frequentemente habituados a enunciados visuais complexos e a elaborados enredos digitais", avança o investigador.

"Muitos desses alunos não conseguem, por vezes, clarificar as fronteiras entre o texto escrito e os outros suportes media que consideram mais atrativos e educativos." Esta constatação leva Pedro Balaus Custódio a concluir: "Há que levar em consideração as competências distintas que os jovens têm perante objetos e produtos culturais diferentes."

Contra o gosto pelos livros parecem jogar também, na opinião deste professor da área de Português, "os vínculos que a leitura mantém com a avaliação escolar", já que "nem sempre é linear" a distinção entre as vertentes educativa e lúdica do ato de ler.

Quando ensinava Português no ensino secundário, publicou duas coletâneas de contos com os seus alunos. Agora, Deana Barroqueiro, autora da odisseia de aventuras do Espião de D. João II Pero da Covilhã, continua a fomentar a leitura em outros moldes. Vai às escolas desvendar os contextos históricos dos cenários dos seus livros e revelar pormenores da atividade literária.

"Lê-se muito mais do que há uns dez anos e isso deve-se muito ao trabalho dos professores e à animação das bibliotecas escolares", constata a escritora. Ainda assim, "a reação dos alunos é de recusa às obras que os professores recomendam", admite. A indisciplina vivida nas escolas "também não ajuda a criar um ambiente propício à leitura". Por isso, Deana Barroqueiro não estranha quando lhe dizem que nos centros de recursos os computadores são mais procurados que os livros.

Mais novos preferem os clássicos
O Cavaleiro da Dinamarca e A Saga, de Sophia Andresen; O Gato Malhado e a Andorinha Sinhã, de Jorge Amado; Sexta-Feira ou a Vida Selvagem, de Michel Tournier; Falar Verdade a Mentir de Almeida Garrett e o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, são títulos que a professora Norberta Rodrigue tem identificado na lista de favoritos dos seus alunos de 3.º ciclo.

Os gostos destes jovens entre os 13 e os 15 anos "variam de ano para ano e de turma para turma, para não dizer de aluno para aluno". O motivo por que estas obras são bem acolhidas e outras não só eles sabem. "Explicações não tenho, a não ser talvez a qualidade dos textos", arrisca a professora.


As preferências de leitura dos alunos do 1.º, 2.º e 3.º ciclo do ensino básico de um agrupamento de escolas de Coimbra foram registadas num estudo realizado por Eduarda Seco. Segundo, Pedro Balaus Custódio, conhecedor deste trabalho, os dados obtidos através de inquéritos avançam algumas explicações sobre a relação dos jovens com os livros.


Entre as conclusões, a investigadora verificou que os textos clássicos são os preferidos dos alunos do 1.º ciclo. E, são estes também que passam mais tempo a ler e gostam mais de o fazer. "Ao contrário do que seria de esperar, o gosto pela literatura clássica vai diminuindo ao longo dos ciclos. Apesar de a maioria dos alunos do 2.º e 3.º ciclos gostar de ler e de algumas das obras clássicas fazerem parte do seu currículo, estas não se refletem nas suas preferências", lê-se no estudo.

Pedro Balaus Custódio concorda com as conclusões de Eduarda Seco que apontam ser "profícuo investir em atividades de leitura que envolvam autores clássicos em idades mais precoces, dado que isso influi na formação de leitores". Entre as vantagens da leitura destas obras literárias do passado está "um claro enriquecimento verbal e linguístico do aluno".

"Conclui-se, também, que o conhecimento de autores clássicos resulta, não da sua integração no currículo, mas da forma como a sua abordagem foi feita, de forma precoce, através de adaptações ou livros que se referem a estes mesmos autores", acrescenta o investigador da ESE de Coimbra.

Ler em família
É sempre o Gonçalo a escolher os livros que a mãe lhe lê. Para Liliana Ferreira, "mais do que na escola é no ambiente familiar que se cria o gosto pela leitura". Há histórias que são repetidas noites a fio, até que o filho de quatro anos se canse de as ouvir. "Mas tem mesmo de ser assim", avisa a progenitora, a pensar na fatiga que a repetição pode gerar nos outros pais que vão ler este artigo.

Durante as sessões de leitura, antes da hora de dormir, a mãe vai constatando as vantagens do seu empenho: "O Gonçalo já tem memória visual das palavras que lhe leio." O truque para conseguir esse resultado foi aprendido num manual sobre pedagogia: "Enquanto conto a história aponto a palavra com o dedo para ele ter em atenção o grafismo do que está a ouvir." No final da leitura invertem-se os papéis. E é Gonçalo quem reconta a história à mãe.

Ver o prazer do filho multiplicado pelos colegas do pré-escolar é o motivo por que Liliana Ferreira aceita sempre o desafio da educadora do Gonçalo para ler uma história à turma. Por alturas da celebração do Dia Mundial do Livro, a 23 de abril, a deslocação ao jardim de infância é uma certeza. Há dois anos que é assim. "A maioria dos pais não pode participar por estar a trabalhar durante as manhãs", lamenta Liliana Ferreira, valorizando a iniciativa da educadora.

No ano passado, leu os Três Porquinhos, uma recriação moderna da história de Luísa Ducla Soares. Há dias, foi a vez do Adivinha o Quanto Eu Gosto de Ti, de Sam McBratney. Uma das obras recomendas pelo Plano Nacional de Leitura para o ensino pré-escolar. "Compro sempre o livro para oferecer à sala, porque têm poucos recursos, e depois compro-o para o Gonçalo ter em casa", confidencia a mãe.

José Soares Neves, investigador do Observatório das Atividades Culturais, em Lisboa, confirma as vantagens destes pequenos gestos: "Os estudos mostram a importância do incentivo pelos pais para a formação de hábitos de leitura pelo que iniciativas dos professores que os envolvam poderão ser adequadas."

O autor da tese de doutoramento "Práticas de leitura da população portuguesa no início do século XXI" esclarece que, na opinião dos pais, "alguns dos incentivos mais relevantes [à leitura] passam pela seleção e contacto com os livros adequados à idade, a promoção de atividades lúdicas em torno de livros e autores e o contato com as bibliotecas escolares e públicas".

A competência e o prazer de ler
A diretora dos Serviços do Livro da Direção-Geral do Livro e das Bibliotecas, Maria Carlos Loureiro, defende que "antes de mais" é preciso dar aos alunos competências de leitura. "A escola deve estabelecer como objetivo primeiro a criação de leitores" e os "professores devem transmitir técnicas de indução à leitura, articuladas com uma didática dos sentimentos e das emoções".

Para que o ato de ler deixe de ser "mecânico", mera "junção de sílabas e de palavras" e passe a ser paixão, "não pode desligar-se da formação técnica, da estratégia de compreensão de um texto", sublinha a diretora, insistindo: "É a competência que fará [a criança] ser leitor e lhe dará, no futuro, autonomia para saber escolher e interiorizar."

O "salto para o livro como objeto de prazer só acontecerá "quando a relação com o texto permitir [ao aluno] ter competências para se distanciar da linguagem como veículo denotativo e para se aproximar da reescrita do texto através da capacidade imaginativa", conclui.

Crianças e livros: como incentivar à leitura?
A iniciativa "Ler + em Família" inserida no Plano Nacional da Leitura dá algumas pistas aos pais sobre a relação que as crianças estabelecem com os livros desde os 12 meses aos oito anos e como pode ser potenciado o gosto pela leitura. 


Idades 12/24 meses
A criança já se senta sozinha e consegue agarrar e transportar o livro. Entrega o livro ao adulto para que lhe leia. Volta as páginas, primeiro, várias de cada vez, depois uma de cada vez. Interessa-se muito pelas palavras. Observa os livros. Aponta as imagens com o dedo. Consegue apontar quando o adulto pergunta onde está isto ou aquilo? Nomeia as figuras conhecidas. Intercala palavras nas histórias conhecidas. E "lê" para as bonecas e animais de peluche.

Os pais devem dispor-se a ler, sobretudo quando a criança pede. Ler e reler as palavras do livro. Conversar sobre as imagens e as cenas. Ajudar a criança a virar as páginas. Deixar a criança controlar o livro. Apontar as imagens e perguntar onde está... e deixar a criança apontar. Perguntar "o que é isto?" e dar tempo à criança para responder. Fazer pausas e deixar que a criança complete a frase. Observar a criança para a interessar sem cansar. Relacionar os livros com as experiências da criança. Usar os livros nos momentos das rotinas, hora de deitar ou banho.


Livros mais adequados
Coloridos, com imagens ou fotografias que incluam outras crianças, brinquedos e objetos em situações familiares, como por exemplo dormir, comer ou brincar. Com situações nítidas: por exemplo, pessoas ou animais a dizer adeus ou olá. Com poucas palavras em cada página, com versos e rimas engraçadas e previsíveis. De cartão grosso, de pano ou plastificados. Resistentes e laváveis.

Idades 2/3 anos
A criança aprende a segurar o livro bem e a virar as páginas. Procura para a frente e para trás num livro as ilustrações que já conhece e de que mais gosta. Diz frases completas de cor. Por vezes consegue dizer histórias completas. Relaciona o texto com a imagem. Protesta quando o adulto se engana numa palavra de uma história conhecida. Lê sozinha os livros conhecidos.

Os pais devem continuar a usar os livros nas rotinas diárias. Ler na hora de ir para a cama. Dispor-se a ler a mesma história muitas vezes. Perguntar "O que é isto?" Relacionar os livros com as experiências da criança. Dar à criança papéis, lápis e canetas e incentivá-la a desenhar e escrever linhas imitando a escrita.

Livros mais adequados
Coloridos, com páginas de cartão - mas também com páginas de papel. Livros cómicos. Rimas, canções e textos repetitivos que possam aprender de cor. Livros sobre: crianças e famílias; fazer amigos; alimentos; animais; camiões; carros; comboios e barcos. Livros de palavras associadas a imagens.

Idades 3/5 anos
A criança já sabe segurar um livro corretamente. Voltas as páginas uma de cada vez. Ouve histórias mais compridas. Pode voltar a contar uma história conhecida. Compreende o que é o texto. Distingue histórias contadas de histórias lidas. Move o dedo ao longo do texto. Começa a conhecer as letras do alfabeto. "Escreve" o nome. Pode começar a saber ler palavras e expressões.

Os pais devem continuar a ler os livros preferidos e apresentar outros como surpresas agradáveis. Ler e reler ao ritmo do interesse. Perguntar "O que aconteceu?" Incentivar a criança a escrever e a desenhar. Deixar a criança memorizar e contar a história. Conversar sobre livros. Comparar imagens de dois livros que representam o mesmo objeto e falar sobre as diferenças de cor, tamanho, etc.

Livros mais adequados
Livros de histórias. Livros sobre crianças que são como eles e que vivem como eles - mas também livros sobre diferentes lugares e diferentes formas de vida. Livros sobre ir à escola e fazer amigos. Livros com textos simples que possam memorizar. Livros que ensinam a contar, ensinam o alfabeto ou livros de vocabulário.

Idades 6/8 anos
A criança começa a decifrar o código e vai aprendendo a ler. Está desejosa de conseguir ler sozinha, mas continua a adorar ouvir os adultos a lerem alto. O ritmo de aprendizagem varia. No início gosta de descobrir nos livros as letras, sílabas ou palavras que já reconhece. Vai conseguindo ler frases e, ao sentir os seus próprios progressos, sente-se vitoriosa. Gosta de mostrar os seus progressos.

Os pais devem manter as rotinas diárias. Ler todos os dias. O apoio individual de um adulto na fase de decifração evita muitos problemas e torna a aprendizagem mais rápida e segura. Ler alto e deixar que a criança descubra, e leia sozinha, palavras e frases que já conhece. Completar frases e ajudar com as palavras que ainda não decifra. Encorajá-la a ler cada vez mais. Ouvir ler e felicitá-la pelos progressos.

Livros mais adequados
Livros com imagens coloridas, muito variados: de início com pouco texto para ler sozinha e treinar a decifração; à medida que vai lendo melhor, com texto mais longo para ouvir ler e para descobrir sílabas, palavras e frases; histórias familiares; contos tradicionais; histórias de animais; informações sobre vários temas; histórias alusivas à época do ano, Natal, estações do ano, ir para a escola, tempo de férias. Deixar a criança escolher os livros de que mais gosta e incentivá-la a procurar sempre novos livros.

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