quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O destino


O André não gostava da escola. Para ele estar ali, obrigado a fazer o 9º ano, não fazia sentido. Do que ele gostava era do trabalho no campo com o pai. As mãos rudes que se espetavam, desesperadas, nos cabelos desalinhados quando tinha que responder a uma pergunta, eram um sinal disso. O André gostava de se levantar cedo, tratar dos animais, cavar a terra. Tinha as unhas sujas e lascadas, calos nas mãos e alguma sujidade que uma lavadela rápida não conseguia tirar; e nem sempre as roupas estavam melhores; os livros e cadernos sofriam alguns maus-tratos, os materiais ficavam muitas vezes esquecidos em casa e as grandes passadas do André faziam-no entrar sempre desastradamente, na sala ou outro lugar que não fosse o espaço exterior de horizontes abertos.
A mãe do André não sabia ler e o pai mal assinava o nome. Não percebiam para que era a escola quando o filho podia ajudar muito mais em casa, nos trabalhos pesados da pequena quinta. E com dificuldade, sem uma alternativa à vista, o André esforçava-se desesperadamente para acabar aquele 9º ano, desenhado de igual modo para todos. O André era meu aluno e eu preocupava-me com ele, com os seus modos desastrados, quase primitivos, uma força da natureza. Tentava sobretudo que ele não perdesse a esperança, que terminasse o 9º ano.
Na mesma escola andava a irmã mais nova. Um dia descobri quem era. Fiquei espantada. No trânsito apressado entre salas e corredores já tinha reparado naquela aluna delicada, cuidada e sempre sorridente. Mais admirada fiquei quando descobri que era irmã do André. Soube depois que era uma excelente aluna que terminava 9º ano com 5 a tudo. A Teresa era em tudo o contrário do André. Delicada, harmoniosa, cuidada na sua aparência, sempre sorridente, mostrava a sua felicidade de estar na escola.
Um dia na cantina sentou-se na minha mesa. Esperou que eu terminasse de comer para se levantar. Entretanto falou-me dos seus sonhos, das suas expectativas. Tinha a certeza que ia conseguir uma bolsa de que a directora de turma lhe falara, ia continuar a estudar, queria fazer medicina (era uma barra a matemática e biologia) e os olhos brilhavam-lhe de entusiasmo. Já tinha conseguido convencer os pais e sabia que ia continuar a manter a sua média elevada.
No início do ano seguinte não vi a Teresa. Perguntei ao André que me disse que ela estava doente. Foi só em Janeiro que a voltei a ver. Trazia um braço engessado, estava triste e pensativa. Os olhos tinham perdido o entusiasmo e segurança que lhes conhecia. Contou-me então como, numa aula de Educação Física, num lançamento de basket (em que era exímia) tinha caído e fracturado o braço. Tinha sido operada no Hospital e alguma coisa correra mal. Fizera segunda operação e estava à espera. Não houve reclamações dos pais nem na escola nem no Hospital. Não era o tipo de coisas que os pais soubessem fazer, reclamar junto de instituições.
Quando voltei a falar com a Teresa era o fim do ano. O braço direito estava efectivamente ligeiramente defeituoso. Mas a mágoa da Teresa era outra: já não fazia lançamentos surpreendentes em Educação Física. O professor agora classificara-a com 13. A média em que ela tanto apostara tinha fugido. E com ela os seus sonhos e projectos. O acesso à bolsa estava comprometido e mais ainda a entrada em medicina.
E que disse o professor, meu colega, quando lhe coloquei a questão? Educação Física é uma disciplina como qualquer outra, se não executa no máximo não pode ter o máximo... Não, não tem que se preocupar com as diferentes especificidades de cada aluno. Isso da escola inclusiva é para outras situações, não para situações como esta. E a Teresa não vai para medicina? Paciência.
Paciência disseram os pais, já era o destino?


Angelina Carvalho

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