quinta-feira, 18 de junho de 2015

Conteúdo - A dieta da caverna



Preocupados com o aumento da obesidade e das doenças associadas ao excesso de peso, alguns nutrucionistas propõem o regresso à paleodieta. Vamos comer o mesmo que os nossos antepassados da Idade da Pedra?

No mundo desenvolvido, em especial nos Estados Unidos, o excesso de peso tornou-se uma epidemia que ameaça a saúde de milhões de cidadãos. Proliferam todo o género de obras sobre programas de emagrecimento: ter bom aspecto e um corpo elegante constitui uma obsessão para muito norte-americanos que procuram receitas mágicas para melhorar a sua qualidade de vida. Foi nessa busca de uma panaceia alimentar que irrompeu, com toda a força, a moda da paleodieta, a ementa que seria supostamente ingerida pelos nossos antepassados da Idade da Pedra e que, agora, conta mesmo com grupos de adeptos que se autodenominam cavemen: homens das cavernas...

“Sente-se obeso e com pouca vitalidade? Não se preocupe, consuma apenas carne magra, peixe, marisco, tutano, vísceras, frutos, verduras, nozes e bagas. Passadas algumas semanas, vai sentir-se muito melhor, mais ágil e magro. Poderá comer até cem tipo de vegetais, mas nada de leite ou dos seus derivados. Os cereais e os legumes são absolutamente proibidos. O grão e o milho podem ser bons para os pássaros, mas não para si.” Esta é uma das mensagens de Loren Cordain, professor de fisiologia do exercício na Universidade do Estado do Colorado e verdadeiro guru da palodieta. Nos últimos anos, Cordain estudou o seu efeito na prevenção de doenças coronárias, da diabetes, da obesidade e do cancro.

O conceito surgiu de um artigo publicado, em 1985, no New England Journal of Medicine por S. Boyd Eaton, médico e antropólogo da Universidade Emory da Geórgia, em Atlanta. Com pendor neodarwinista, o texto sugeria que o melhor regime alimentar que poderíamos ter era o seguido pelos nossos antepassados da Idade da Pedra, pois estamos geneticamente adaptados para nos alimentarmos da mesma forma que os caçadores-recolectores. No fim de contas, foi o que a humanidade consumiu durante centenas de milhares de anos e, como foi concebido pela natureza, ficou gravado no nosso património genético.

Tanto Eaton como Cordain consideram que as nossas necessidades nutricionais se adaptaram às pressões selectivas ambientais do Pa­leo­lítico (de há 2,5 milhões a dez mil anos atrás). Se regressarmos à alimentação para a qual estamos geneticamente programados, não só perderemos peso como, também, recuperaremos saúde e bem-estar.

Na opinião de Cordain, o progresso trouxe muitos alimentos que não estavam presentes na pré-história e que, por conseguinte, não devem ser consumidos, como os lacticínios, os cereais, o sal ou o açúcar refinado. As aldeias de caçadores alimentavam-se de carnes magras de animais selvagens e hidratos de carbono (açúcares) provenientes exclusivamente de frutos e verduras (estas não incluíam batatas e outros tubérculos, que Cordain recomenda suprimir devido ao elevado teor glicémico). Assim, os homens primitivos ingeriam poucos doces e muita fibra, a qual contribui para baixar o nível de colesterol no sangue, regula a função intestinal e evita a obstipação.

Em The Paleo Diet, o especialista escreve que todos os seres humanos, durante 2,5 milhões de anos, comeram deste modo, até que a revolução agrícola os fez abandonar o estilo de vida caçador-recolector, o que provocaria o aumento da população e o desenvolvimento da sociedade tecnológica e industrializada. A argumentação parece convincente, mas será que se ajusta ao guião evolutivo da nossa espécie? Parece demasiado tempo a comer sempre o mesmo. Não será verosímil que as modas e os hábitos alimentares variem à medida que os anos passam e a cultura se desenvolve? Vejamos o que nos diz o registo arqueológico.

A jazida mais antiga que ainda conserva ferramentas destinadas a obter alimentos fica situada em Gona (Etiópia). Trata-se de afiadas lascas de pedras, semelhantes a facas, que hominídeos utilizavam, há 2,6 milhões de anos, para cortar línguas de antílopes mortos e talhar pedaços de carne entre os tendões das patas, a julgar pelas marcas que surgem nos ossos fossilizados. Pela idade e localização da jazida, pertenciam seguramente à espécie Australopithecus garhi e provam que esta teve um complexo sistema social que exigia planificação e cooperação.

Todavia, para conhecer a ementa do homem primitivo é necessário viajar até ao Norte do Quénia, há 1,95 milhões de anos. Segundo um recente artigo do arqueólogo David R. Braun, da universidade sul-africana da Cidade do Cabo, os primeiros representantes do género Homo que viveram junto do Lago Turkana enchiam o estômago com viandas como hipopótamo, porco selvagem, crocodilo e peixe-gato. Parece que comiam tanto peixe como carne, e que os animais aquáticos que ingeriam eram ricos em compostos bioquímicos benéficos para o desenvolvimento cerebral; devemos mencionar os ácidos gordos poli-insaturados de cadeia longa e o ácido docosa-hexaenóico. Segundo Braun, essa dieta forneceu componentes nutritivos que serviram para abastecer de energia cérebros cada vez maiores.

Deste modo, com base nos vestígios arqueo­ló­gicos encontrados, tanto os australopitecos como os primeiros seres humanos incorporavam carne crua na ementa, mas comê-la directamente de um cadáver não é fácil, como demonstram as observações feitas com primatas. Apesar da sua sofreguidão proteica e da ânsia em caçar os pequenos colobos vermelhos, os chimpazés possuem mandíbulas pouco aptas para mastigar a carne dura e elástica de um destes macacos. Demoram duas horas a arrancar alguns pedaços de um exemplar recém-caçado, e o mais provável é acabarem por abandonar a presa e descansarem a comer fruta, mais adequada para a sua dentadura. Para aproveitar a energia dos pedaços fibrosos que conseguiram extirpar, alguns chimpanzés ficam a mascá-los acompanhados das folhas de árvores mais duras que conseguirem encontrar. O objectivo é proporcionar tracção ao bolo alimentar e fazer que a sua deglutição se torne mais fácil.

Diante do mesmo problema, é provável que os australopitecos também utilizassem fragmentos vegetais para ingerir melhor as presas que caçavam ou os cadáveres. Talvez os primeiros seres humanos tivessem aperfeiçoado a técnica com o seu cérebro mais sofisticado. Richard Wrangham, antropólogo da Universidade de Harvard (Estados Unidos), sugeriu que a cortavam em fatias finas com a ajuda de afiadas lascas de pedra e, depois, tentavam torná-la mais mole batendo-lhe com pedras planas, para poderem digeri-la melhor.

Parece, pois, que os seres humanos já pos­suíam, há dois milhões de anos, a destreza necessária para obter carne e tratá-la com ferramentas líticas, mas será que constituía a base da sua alimentação? Não necessariamente. A análise dos utensílios e do seu desgaste sugere que também eram utilizados para cortar e arranjar vegetais. É quase certo que extraíam com paus tubérculos, raízes, bolbos e caules subterrâneos, que lhes proporcionavam hidratos de carbono. Precisamente por essa altura, produziram-se importante alterações no ambiente dos ecossistemas africanos: a floresta tropical começou a perder terreno perante o avanço das pradarias, que transformaram a paisagem da zona oriental do continente na actual savana. Através da inovação tecnológica e de uma maior complexidade social, os nossos antepassados remotos conseguiram enfrentar esse ambiente instável.

Foi também naquela época que o recurso ao fogo veio melhorar para sempre a qualidade das vitualhas, que se tornam, depois de assadas, muito mais fáceis de digerir, energéticas e saudáveis, dado que o poder das chamas elimina germes e parasitas. Possui igualmente algumas desvantagens, pois os alimentos, em contacto com o calor, perdem vitaminas e produzem uma grande concentração de substâncias devido à chamada “reacção de Maillard”: moléculas complexas que se formam a partir da união de açúcares e aminoácidos quando são submetidos a uma temperatura elevada (é fácil de reconhecer pela cor acastanhada que confere à carne assada ou à côdea do pão). Todavia, os compostos de Maillard produzem mutações nas bactérias que poderiam induzir determinados tipos de cancro, além de provocar inflamações e uma sensação de mal-estar generalizado em algumas pessoas.

Seja como for, do ponto de vista evolutivo, os efeitos negativos de cozinhar os alimentos são mínimos comparados com as suas vantagens. A utilização do fogo na paleodieta dos caçadores-recolectores revolucionou a sua mastigabilidade e as qualidades nutritiva e calórica, pelo que contribuiu para aumentar a taxa de sobrevivência humana num meio natural hostil. Ainda se desconhece quando se iniciou o seu domínio sistemático, mas há indícios da existência de fogueiras há cerca de 800 mil anos, confirmados pelos vestígios encontrados na jazida israelita de Gesher Benot Ya’aqov. Cozinhar os alimentos produziu importantes transformações económicas e delineou a estrutura social dos modernos caçadores-recolectores.

A carne, pelo seu elevado valor nutritivo, foi sempre um alimento muito valorizado, mas é um erro pensar que a caça podia satisfazer todas as necessidades. O excesso de proteínas faz subir o nível de amoníaco no sangue e produz lesões no fígado e nos rins, desidratação, perda de apetite ou mesmo a morte. Por isso, para subsistir, os caçadores-recolectores (actuais ou primitivos) necessitam de grandes quantidades de plantas (ricas em hidratos de carbono) e/ou gordura para satisfazer as suas necessidades energéticas.

Com efeito, metade do regime alimentar das sociedades de caçadores que vivem nos trópicos é composta por plantas, pois os mamíferos dessas zonas têm pouca gordura (quatro por cento da massa corporal) e os tecidos ricos em lípidos, como as vísceras e o tutano, não passam de um pequeno complemento. Como os nossos antepassados viveram, inicialmente, num meio tropical, é lícito deduzir que também obteriam metade das calorias necessárias de fonte vegetal. Temos aqui, pois, um dos pontos mais controversos da proposta de Cordain: defende eliminar da dieta os tubérculos com excesso de hidratos e açúcares, como as batatas, mas sabemos que os actuais caçadores-recolectores raramente têm ao seu alcance outros vegetais calóricos, como abacates, azeitonas ou nozes. A sua alimentação baseia-se em bolbos ricos em hidratos de carbono, como seguramente terá acontecido com os paleolíticos. A noção de que estes teriam vivido num habitat superprodutivo é pouco realista: é mais provável que tivessem enfrentado a escassez sazonal e sentido a necessidade de colonizar territórios de recursos pobres em que os turbérculos são mais abundantes. Deste modo, um dos postulados da moderna paleodieta não parece encontrar apoio nem na antropologia nem nos ecossistemas do passado.

O outro elemento polémico é a rejeição frontal do leite e dos seu derivados, pelo baixo teor proteico (21%) e elevado conteúdo em gorduras saturadas (60%), que aumentam o colesterol, com o consequente risco de doenças coronárias. Será que o leite proveniente de animais é realmente um alimento nocivo? Durante centenas de milhares de anos, os povos paleolíticos basearam o seu modus vivendi na actividade cinegética e na recolha de alimentos, mas, como sublinha o antropólogo norte-americano Marvin Harris, as alterações climáticas do último período glacial destruíram a caça grossa. A carne tornou-se escassa, o que levou os nossos antepassados ao desenvolvimento de uma sociedade sedentária baseada na agricultura e na criação de gado.

Os arqueólogos concordam em assinalar que ovelhas, cabras, vacas e suínos foram domesticados pela primeira vez nos montes Taurus, na Anatólia (Turquia). Ali, na jazida de Nevali Çori, foram encontrados os mais antigos restos ósseos de reses (cerca de 8500 a.C.). Segundo o arqueozoólogo francês Jean-Denis Vigne, a criação de animais foi tão bem-sucedida que a prática se estendeu pelo Crescente Fértil e, há 7000 anos, já era conhecida em todo o Mediterrâneo.

Foi precisamente quando se começou a criar gado que a taxa de natalidade cresceu, assim como o tamanho das povoações neolíticas, uma relação que talvez não seja casual. O consumo de leite pode ter sido um elemento fundamental para as gentes neolíticas melhorarem a sua alimentação, pois as proteínas podiam atenuar a deficiência de aminoácidos resultante de uma ementa baseada em ce­reais. Tornou-se especialmente benéfica para as crianças, as quais obtinham, depois de serem desmamadas, do leite de cabras, ovelhas e vacas, proteínas, gordura e cálcio, três elementos indispensáveis para o crescimento ósseo, para vencer doenças e para aumentar a esperança de vida. O êxito demográfico do Neolítico talvez esteja alicerçado no leite.

Já os adultos precisaram de um processo adaptativo para assimilar o produto, pois o leite fresco contém lactose, um açúcar que a lactase, enzima segregada pela mucosa intestinal, desdobra nas suas duas componentes: a glicose e a galactose. As crianças e muitos adolescentes possuem essa capacidade de segregação, mas o mesmo não acontece com todos os adultos. Os que são intolerantes à lactose sofrem de distúrbios intestinais e flatulência, mas os restantes (aqueles que dispõem de um gene de persistência da lactase) assimilam o leite e usufruem do seu valor nutritivo.

O antropólogo Joachim Burger, da Universidade Johannes Gutenberg (Alemanha), indica que o aparecimento da persistência da lactase remonta a 18.000 a.C., na Europa, onde a selecção natural aumentou o número de indivíduos adultos que pode assimilar o leite (entre os asiáticos, a tolerância é muito menor). A moral da história parece ser que existe, por detrás deste nutriente, uma grande inovação genética que exige, como todas, um processo de adaptação. Os seres humanos precisaram de milhares de anos para a incorporar na sua alimentação, e algumas populações, como as nórdicas europeias, são praticamente tolerantes. Em suma, o leite e os seus derivados não são inadequados, mas um recurso valioso que assegurou a sobrevivência de muitos agricultores que não podiam ter a mesma vida dos caçadores paleolíticos.

Num sentido mais lato, nem as batatas, nem o açúcar, o sal ou os lacticínios são pouco saudáveis per se; são-no quando consumidos em excesso ou de modo desordenado (na forma de aperitivos ou guloseimas) por uma população cada vez mais sedentária. Numa perspectiva global, a humanidade diversificou, desde a sua origem, as formas de se alimentar em função da disponibilidade, das alterações no meio ambiente e do desenvolvimento cultural. Não houve uma ementa única no passado, mas uma ampla resposta ao duro desafio da sobrevivência. A paleodieta em voga parece atraente e promove um regime saudável e equilibrado, mas a sua base conceptual não se fundamenta verdadeiramente na rede nutricional dos nossos antepassado. É antes uma construção artificial que vende uma mensagem de saúde e bem-estar ligada a ideias românticas sobre tradições ancestrais e virtudes naturais.

Os nossos antepassados nem sempre seguiram uma alimentação equilibrada. O paleoantropólogo queniano Kamoya Kimeu descobriu na região de Koobi Fora parte do esqueleto de um Homo ergaster (ou de um H. erectus) que baptizou com a designação de KNM-ER 1808. Os ossos compridos dos braços e das pernas deste hominídeo com 1,7 milhões de anos de antiguidade exibiam um engrossamento anormal das paredes. Ao analisar a sua morfologia, os especialistas norte-americanos Alan Walker e M.R. Zimmerman concluíram que o hominídeo sofreu uma intoxicação por excesso de vitamina A. É provável que o KNM-ER 1808 tenha ingerido, de forma sistemática, fígado cru das presas e cadáveres que encontrava (essa e outras vísceras são muito mais fáceis de mastigar e engolir do que a carne crua), mas o consumo excessivo pode ter consequências fatais. O caso é um bom exemplo de que nem todas as paleodietas são necessariamente saudáveis, apesar de toda a sua antiguidade.



Os sete pilares da paleodieta
Deve-se comer maior quantidade de proteínas animais do que a recomendada noutras dietas. Fundamentalmente, carne magra, vísceras, peixe, marisco e aves.

Não se pode consumir hidratos de carbono provenientes de cereais, batatas ou açúcares refinados, e devem eliminar-se todos os lacticínios.

É essencial consumir muita fibra proveniente de frutas e verduras que não sejam ricas em hidratos de carbono.

Deve-se ingerir uma quantidade moderada de gorduras, tanto mono-insaturadas como poli-insaturadas.

É preciso comer alimentos com elevado teor de potássio e pobres em sódio.

É fundamental eliminar o sal da alimentação; umas gotas de limão são suficientes para dar sabor ao prato.

Não podem faltar alimentos ricos em vitaminas, minerais e antioxidantes.


M.G.B. - SUPER 153 - Janeiro 2011

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