Em apenas dez dias, os ratos e ratinhos usados na experiência conduzida por neurocientistas - da Fundação Champalimaud (Portugal) e da Universidade de Berkeley (Califórnia, EUA) - aprenderam a "pedir" açúcar sem mover um músculo do corpo. Para isso, recorreram apenas a impulsos eléctricos do cérebro que tinham como feedback um determinado som.
Os resultados da experiência, publicados na revista Nature, revelam um cérebro mais flexível do que se pensava e podem ser um importante contributo para o desenvolvimento de próteses movidas com "a força da mente" para pessoas com lesões na medula, amputações ou outras limitações na mobilidade.
O trabalho em laboratório permitiu demonstrar não só que o cérebro é capaz de aprender rapidamente regras arbitrárias, mas também que a plasticidade [a capacidade de adaptação do cérebro] presente neste processo intencional é idêntica à que encontramos quando resolvemos uma tarefa física como andar de bicicleta.
Até agora, a chamada interface cérebro-máquina (IMC) procurou provocar um movimento numa prótese imitando os circuitos eléctricos que são normalmente usados no gesto que se quer reproduzir, seja ele mover um braço ou uma perna. As experiências realizadas mostraram o sucesso desta tecnologia, mas também revelaram algumas limitações.
Já está provado que é possível "imitar" os impulsos neuronais e conseguir movimento numa prótese. Para isso, a actividade do cérebro é medida através da introdução de eléctrodos (fios da espessura de um cabelo) no cérebro, usando-se um chip que pode estar ligado a um computador ou a uma prótese (um braço, por exemplo) que "decifra" a ordem que está a ser dada.
Esta imitação da actividade neuronal, contudo, tem de ser feita caso a caso (cada um de nós tem impulsos neuronais diferentes para mexer o braço) e, no processo, perde-se alguma eficácia no movimento. Quando usamos uma prótese que tenta imitar o que o cérebro normalmente faz para ordenar esse movimento, a performance de uma tarefa normal cai para 60 ou 70%.
Rui Costa, investigador principal do Programa de Neurociências da Fundação Champalimaud, e José Carmena, co-director do centro de engenharia neural e próteses da Universidade de Berkeley, admitem que o que foi conseguido até agora já é muito bom, mas acreditam ter encontrado outro caminho no cérebro para conseguir mover uma prótese com 95% de acuidade. Como? "Mudámos as regras do jogo e, em vez de tentarmos imitar o que se passa normalmente, ensinámos o cérebro a fazer algo como se fosse uma coisa nova, arbitrária".
Na verdade, a experiência (ainda) não se fez com uma pessoa e uma prótese. O que os cientistas para já demonstraram, e que descrevem no artigo publicado ontem online na Nature, foi que os ratos e ratinhos usados na experiência aprenderam rapidamente uma regra arbitrária para obter o que queriam sem se mexerem, só com "a força da mente".
"Usámos ratos e ratinhos que estavam a controlar um computador que produzia um som. Criámos uma regra arbitrária: a actividade destes neurónios significa um som agudo e a destes um som grave. Se conseguissem a actividade cerebral capaz de dar um feedback de um som agudo, tinham como recompensa uma solução com açúcar, e se conseguissem um som grave tinham comida calórica", explica Rui Costa, entusiasmado com os resultados porque "rapidamente os animais aprenderam a regra".
"Logo no primeiro dia, os ratos começaram a perceber. Em três, quatro dias, estavam bons na tarefa. E em dez dias, estavam com 100% de performance", nota Rui Costa. "O que foi mais maravilhoso foi ver que o animal começou a aprender a controlar aquele som só com a mente. E, ao fim de dez dias, não só está excelente na tarefa como deixou de se mexer e controla só com a actividade cerebral o computador", conta o cientista.
A experiência permitiu perceber que "as áreas do cérebro [o córtex motor] e o tipo de plasticidade [presente nos gânglios da base, na região do estriado] envolvidas na aprendizagem desta regra abstracta são as mesmas que usamos para a aprendizagem motora, física. Ou seja, usamos os mesmos circuitos e mecanismos no cérebro para andar de bicicleta e para aprender algo abstracto e mental, como fazer contas.
"Mas será que ratos percebem mesmo que aquela actividade cerebral produz aquele som e aquela recompensa?", era a próxima pergunta dos investigadores. Para a resposta, nova experiência. "Fizemos mais testes que queriam demonstrar o conhecimento e intencionalidade da acção. Por exemplo, demos aos animais muito açúcar (que era a recompensa do feedback com som agudo) antes de realizar a experiência, e o resultado foi que quando começaram a sessão eles só faziam o som grave (que tinha como recompensa comida calórica). Fizemos ao contrário e eles só pediam o açúcar. Mais ainda, decidimos que para terem a bebida tinham de parar a actividade cerebral que produzia estes sons. E eles paravam".
Conclusão: "Os animais tinham conhecimento de que o controlo do som agudo servia para obter sacarose e o som grave para comida. Como se estivesse num restaurante e mandasse vir a comida que lhe apetecesse só com a actividade cerebral. O que é incrível".
Há, no entanto, uma nota importante a lembrar dos resultados desta experiência: parece ser essencial dar feedback da actividade neuronal. "Quando nós cortávamos o feedback, os sons, eles não conseguiam aprender".
Transferir este conhecimento para uma possível solução de uma limitação física de uma pessoa é a grande porta que se abre agora. "Na limitação física, uma pessoa que está paralisada pode utilizar a actividade neuronal para escrever directamente no computador desde que se definam as regras: a actividade nesta área é a letra A, nesta outra área é a letra B... e a pessoa rapidamente aprende", acredita Rui Costa.
O investigador admite também ser possível usar este caminho para outro tipo de tarefas que não são motoras. Por exemplo, para fazer uma chamada telefónica.
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