segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Notícia - A cor do calor


Um novo nanotermómetro luminescente com promissoras aplicações na biomedicina foi criado por investigadores das universidades de Aveiro e de Saragoça. E o que é um nanotermómetro? Para que serve?

Já lhe aconteceu, com certeza. Pretende saber qual a temperatura de um determinado corpo. Vai ao armário, tira o termómetro e põe-no em contacto com a superfície do corpo. Se for um líquido, até pode mergulhar o termómetro no líquido. Agora imagine que quer medir a temperatura de uma mosca. Mais difícil, não é? Não só ela não pára quieta como não tem superfície que chegue para fazer o contacto adequado. Ou imagine que, por razões técnicas ou científicas, precisa de medir a temperatura de algo muito mais pequeno: mil vezes mais pequeno do que uma mosca, um milhão de vezes mais pequeno do que uma mosca; enfim, já que vamos por este caminho, e se quisesse saber qual a temperatura de uma célula? Precisaria, evidentemente, de um termómetro da ordem de grandeza do corpo em causa, e que pudesse posicionar com precisão, apesar da escala microscópica de toda a operação.

Imagine um pouco mais: não lhe interessa apenas conhecer a temperatura de uma célula específica, mas a de todas as células que compõem uma determinada superfície. Pense nas costas da sua mão, por exemplo: a camada exterior é composta por milhões de células. Se (por razões médicas, por exemplo) tivesse de construir um mapa da temperatura de cada uma dessas células, como fazia? Aplicava o termómetro a cada uma delas? Obviamente, o ideal seria ter um “termómetro plano”, um filme que pudesse aplicar sobre as costas da mão e que lhe indicasse, por exemplo sob a forma de cores diferentes, qual a temperatura de cada região, até ao pormenor individual, se fosse esse o objectivo.

Estas experiências imaginárias descrevem os problemas sentidos por muitos investigadores no seu dia-a-dia: como medir a temperatura de corpos microscópicos, talvez em movimento, talvez dispostos em superfícies ou volumes dos quais interessa conhecer a variação térmica, sem atentar na caracterização específica de cada um dos componentes. As áreas de aplicação de um tal mecanismo são inúmeras, e crescem de forma exponencial se o dispositivo concreto (o termómetro, digamos assim) puder funcionar de uma forma não invasiva, para não perturbar o sistema ou organismo cuja temperatura se pretende medir.

Foi precisamente um método destes que foi agora desenvolvido e apresentado por cientistas das universidades de Aveiro e Saragoça: um nanotermómetro que promete revolucionar as técnicas de medição de temperatura a escalas extremamente diminutas, e que até pode vir a ter aplicações biomédicas.

A medição da temperatura é crucial para inúmeras investigações científicas e desenvolvimentos tecnológicos, representando actualmente 75 a 80 por cento do mercado mundial de sensores. Os termómetros tradicionais não são geralmente adequados para medir a temperatura a escalas abaixo de 10 mícrons (cerca de dez vezes menos do que o diâmetro médio do cabelo humano). Esta limitação intrínseca tem encorajado o desenvolvimento de novos termómetros sem contacto e com precisão espacial da ordem dos mícrons ou, mesmo, nanómetros (um milhão de vezes menor do que o milímetro). Por outro lado, a dependência da luminescência com a temperatura é uma ferramenta não invasiva e precisa que permite medir temperatura a estas escalas. A técnica envolve geralmente iões lantanídeos trivalentes (como por exemplo o európio, Eu3+, e o térbio, Tb3+), e funciona remotamente através de um sistema de detecção óptica, mesmo em fluidos biológicos, campos electromagnéticos intensos e objectos em movimento.

Quer isto dizer que a propriedade em que se baseia o nanotermómetro é a luminescência, isto é, a emissão de luz por um ião quando é excitado por radiação (geralmente de energia mais elevada). Neste caso, o nanotermómetro usa iões Eu3+ e Tb3+ que emitem, respectivamente, nas regiões espectrais do vermelho e do verde quando excitados por radiação ultravioleta. O nanotermómetro inventado (foi patenteado em Espanha em 2009 e aguarda patente europeia) baseia-se no facto de a intensidade da emissão de luz dos iões Eu3+ e Tb3+ variar com a temperatura. Deste modo, pode medir-se a temperatura analisando as variações de intensidade da emissão de luz daqueles iões. Para registar estas variações de intensidade, não é necessário estabelecer contacto físico entre o termómetro e o objecto, visto que a luz se propaga no espaço.

Assim, a medição da intensidade da luz é efectuada à distância, através de uma fibra óptica convencional. Como os iões Eu3+ e Tb3+ podem ser dissolvidos ou dispersos em fluidos biológicos (o sangue, por exemplo), o termómetro funciona perfeitamente em líquidos. De igual modo, e ao contrário dos termómetros convencionais de contacto, que têm dificuldade em operar em objectos em movimento, os termómetros ópticos não têm essa limitação.

Por outro lado, os termómetros tradicionais, que em geral medem a temperatura por contacto entre o termómetro e o objecto, não são adequados para escalas abaixo dos 10 micrómetros (milésimos de milímetro), uma vez que são maiores do que o objecto (ou a região) que se pretende medir!

Com a necessidade tecnológica premente de miniaturização da sociedade moderna, por exemplo para diminuir o consumo energético dos dispositivos e a quantidade de materiais gastos na sua fabricação, estas escalas de tamanho são cada vez mais importantes para o aperfeiçoamento de novas tecnologias. Esta limitação intrínseca dos termómetros tradicionais tem encorajado o desenvolvimento de novos termómetros sem contacto e com precisão espacial da ordem dos micrómetros ou, mesmo, dos nanómetros.

Uma outra vantagem do novo termómetro é ele ser auto-referenciado (não necessita de uma referência externa para medir a temperatura), permitindo medições absolutas entre 10 e 350 Kelvin. Segundo o professor Luís Carlos, do Departamento de Física da Universidade de Aveiro e do Centro de Investigação em Materiais Cerâmicos e Compósitos (CICECO), “o nanotermómetro é formado por complexos de Eu3+ e Tb3+ incorporados em nanoagregados híbridos (100 a 400 nanómetros) formados por um núcleo magnético de óxido de ferro recoberto por uma camada de sílica orgânica”

A sílica é óxido de silício (SiO2) um material inorgânico. Sílica orgânica é sílica modificada com elementos orgânicos; neste caso, grupos amina (NH2). Esta camada de sílica orgânica cobre o núcleo de óxido de ferro das nanopartículas, separando a parte magnética da parte luminescente. Sem esta camada de sílica orgânica, a luz emitida pelos iões Eu3+ e Tb3+ seria absorvida pelos iões de ferro, impossibilitando o funcionamento do termómetro.

As nanopartículas alteram as suas propriedades de emissão (que os nossos olhos conseguem perceber como cor) de forma consistente com a temperatura, tornando possível determinar a temperatura pela “cor” do material. Pode ainda ser ajustado a gama de funcionamento actuando no rácio Eu3+/Tb3+ ou alterando a matriz de suporte.

Com tudo isto, o novo termómetro revelou uma sensibilidade máxima de 4,9% por grau, o maior valor registado até agora em nanotermómetros, entre os 153 e os 83 graus Celsius negativos, no caso dos resultados reportados no final de Agosto na revista Advanced Materials. O funcionamento pode ser estendido à gama das temperaturas fisiológicas (entre 30 e 50 °C), modificando a proporção entre o número de iões Eu3+ e Tb3+, ou utilizando um outro material híbrido orgânico-inorgânico.

Os investigadores demonstraram que a escolha adequada da matriz de suporte permite o processamento do material termométrico como um filme, para obter um mapa bidimensional de distribuição de temperatura de elevada resolução com potencial aplicação na microelectrónica, por exemplo. A resolução espacial é limitada pelo tamanho dos detectores empregues: um a dez mícrons para fibras ópticas comerciais e câmaras CCD.

A combinação do termómetro molecular luminescente com um núcleo magnético permite, além das propriedades descritas, adicionar multifuncionalidade ao dispositivo. Quando comparado com as alternativas disponíveis, o novo termómetro representa um passo em frente na termometria à escala nanométrica. As sinergias que resultam da combinação da medição/mapeamento da temperatura e do superparamagnetismo abrem caminho para novas aplicações promissoras, especialmente no campo da biomedicina.

Em particular, esta associação produzirá um instrumento ímpar para mapear, de uma forma não-invasiva, distribuições de temperatura em tecidos biológicos (tumores, por exemplo), durante a aplicação de um campo alterno às nanopartículas magnéticas (hipertermia magnética), sendo esta, sem dúvida, uma ferramenta poderosa para estudar os processos bioquímicos à microescala que ocorrem no interior da célula.

Instado sobre os ramos da biomedicina a que se aplica o novo aparelho, Luís Carlos acentuou que as aplicações que menciona “não passam, por enquanto, de ideias, embora de enorme potencial”. Por exemplo, na intervenção contra células tumorais: “O termómetro que inventámos é constituído por uma componente magnética e por uma parte emissora de luz visível, separadas por uma camada de sílica modificada. Quando sujeita a um campo magnético externo, a parte magnética das nanopartículas aquece, libertando calor, aumentando, portanto, a temperatura local em torno das nanopartículas. A ideia é aproveitar a camada de sílica modificada e funcionalizar a sua superfície com um anticorpo específico de um certo tipo de células, de molde a permitir a interacção selectiva das nanopartículas com esse tipo de células (por exemplos, células tumorais). Após a ancoragem das nanopartículas às células, a aplicação de um campo magnético externo vai aumentar localmente a temperatura até cerca de 45 °C, matando, assim, selectivamente, as células tumorais. A presença do termómetro possibilita a monitorização e o controlo do processo de aquecimento. É claro que o campo magnético externo só vai induzir um aumento de temperatura nas células que contêm as nanopartículas com um núcleo de ferro, e assim podemos controlar com precisão, com o nosso termómetro luminescente, a distribuição de temperaturas em torno das nanopartículas e, portanto, em torno das células que nos interessam.”

Um outro exemplo prende-se com o facto de o termómetro luminescente poder ser usado para mapear temperaturas com uma resolução espacial de um mícron. Como a temperatura das células tumorais é mais elevada do que a temperatura das células normais, as nanopartículas, depois de internalizadas nas células, podem registar a sua temperatura de uma forma não invasiva e, desta maneira, diagnosticar eventuais focos tumorais.

O trabalho foi desenvolvido no quadro de uma colaboração “extremamente frutífera” entre o Departamento de Física e o CICECO, da Universidade de Aveiro, e o Instituto de Ciên­cias dos Materiais da Universidade de Saragoça. O grupo de Aveiro escreveu um trabalho em 2002 reportando que a intensidade de emissão de um material híbrido orgâncio-inorgânico incorporando Eu3+ e Tb3+, e, portanto, a cor da radiação visível emitida, dependia directamente da temperatura e, assim, que este material poderia ser usada como termómetro. As ideias desenvolvidas em Aveiro foram combinadas com as valências do grupo de Saragoça na síntese de nanopartículas magnéticas funcionalizadas com sílica modificada. A sinergia entre a investigação multidisciplinar desenvolvida pelos dois grupos permitiu a invenção deste novo nanotermómetro molecular que irá agora permitir um leque de utilizações revolucionárias. Só o tempo dirá em que direcções partiu a sua utilização nos mais diversos campos.

M.M. SUPER 152 - Dezembro 2010

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