No tempo em que Cristina da Suécia foi formalmente nomeada rei do seu país, outra mulher em Angola quis também ser reconhecida como rei. Isto no princípio do século XVII. Os portugueses tiveram de esperar cerca de trinta anos para assinar um tratado de paz com esta poderosa mulher que na História de Portugal ficou conhecida por Ana de Sousa e Angola recorda como a Rainha Jinga.
Os primeiros contactos dos portugueses com o Ngola Quiloanji (ou Angola Aquiloangi), senhor do Dongo ou Angola, foram amistosos. Este rei não inviabilizou o comércio de escravos, que foi a grande receita dos portugueses durante largos anos, mas, em contrapartida, exigiu que os portugueses não fizessem como no vizinho reino do Congo, onde impuseram baptismos em massa. Astuto, Quiluanji aproveitou este mercado de escravas que eram levados para longes paragens para, de início, se ver livre de prisioneiros de guerra e outros elementos perigosos que albergava ao seu reino.
Mas a paz com os portugueses era demasiado precária e o soba, de feitio despótico e humor variável, acabou por entrar em conflito aberto com os portugueses em 1581 ano do nascimento da sua filha Jinga. Muito provavelmente por não ter chegado a acordo, em termos de contrapartidas. Quanto ao número de homens que permitia que fossem levados do seu reino para serem vendidas como escravos. Aponta-se, como outra motivo dessas guerras a construção, nas terras de Quiluanji, do presídio de Ambaca, em 1614.
Referir que, desde 1581, em Portugal existia a União Ibérica - governo dos reis espanhóis.
Por volta de 1617, morreu, ou foi morto, Quiluanji, que deixou três filhas e um filho adulto. Ngola Mbandi, e outro ainda criança, que, devido ao seu nascimento era o legitimo herdeiro do trono, por ser filho da mulher principal, considerada a legitima, enquanto o filho adulto provinha de uma ligação com uma concubina real (mocama), criada ou escrava. Como se vê mesmo em reinos africanos há estritas hierarquias.
Porém, o filho mais velho, ávido de poder mata o irmão e o sobrinho mais velho, filho da irmã Jinga, afastando assim qualquer hipótese de presumíveis adversários, e assume-se como sucessor. Jinga e as irmãs, Funji (ou Kifuní e Mucambo (ou Cambo), eram também filhas legitimas à luz dos costumes daquele reino.
Quando o governador Luís Mendes de Vasconcelos chegara a Luanda, em Agosto de 1616, havia paz entre os portugueses e o usurpador. Mas, em 1620, voltaram os conflitos. O governador invadiu as terras de Ngola (chefe) Mbandi inflige-lhe duras perdas e além de raptar a mulher principal, aprisiona muitos outros membros da sua família.
Em Dezembro de 1621, o novo governador João Correia de Sousa chega a Luanda e adopta unia atitude mais diplomática, enviando ao rei, Ngola Mbandi, uma pequena embaixada encabeçada pelo padre Dionísio Faria Barreto que dominava bem a língua nativa e lhe propôs a paz e a conversão ao catolicismo. O rei aceitou a paz mas impôs que os portugueses abandonassem o presídio de Ambaca e se comprometessem a apoiá-lo nas lutas contra o Jaga Cassanji, inimigo comum. Por último, pediu que os portugueses lhe restituíssem os prisioneiros feitos pelo anterior governador. Chegou-se a um acordo.
Entretanto, Jinga afastara-se já deste irmão que passou odiar desde que este lhe matara o filho e ela muda-se da capital do Dongo com o marido e as irmãs. Vai então viver para a região montanhosa da Matamba que mais tarde lhe irá servir de fortaleza natural contra os ataques dos portugueses.
É no período do governo de João Correia de Sousa que se vai dar o célebre encontro com Jinga que vai a Luanda negociar a paz. Há discrepâncias quanto à data deste encontro, mas o facto em si é que é relevante.
Jinga prepara um séquito numeroso e com todos os atributos da sua condição de princesa faz-se anunciar em Luanda. Os portugueses vão recebê-la como uma verdadeira rainha, com tropas perfiladas e descargas de mosquetes, sendo-lhe dada hospedagem e casa condigna.
No dia marcado para a audiência, Jinga, acompanhada do seu séquito, dirige-se à casa do governador. Entrou para a sala onde este ainda se não encontrava e, num relance percebe que na sala só havia uma cadeira e duas almofadas de veludo franjadas a ouro sobre um tapete.
De imediato, a perspicaz Jinga percebe que pode ficar em desvantagem. Ficar de pé perante um homem sentado. Ordena a uma das suas escravas que se dobre e lhe sirva de assento e é assim sentada que vai encarar o governador — de igual para igual. Escusado será dizer que esta atitude de Jinga deixou estupefactos todos os presentes, muito particularmente o governador que percebeu imediatamente que a mulher que estava na sua presença ora especial e que deveria usar com ela de toda a diplomacia e cortesia. Até porque muita coisa estava em jogo e um gesto em falso podia representar o recrudescer da guerra.
As negociações ocorrem com sucesso, começando a princesa Jinga por apresentar as desculpas em nome do irmão. A sua maneira de falar e a sua postura vão deixar a assistência perfeitamente espantada. Não podemos esquecer que até ao século XIX houve antropólogos que defenderam que a raça branca era superior á negra. Imaginemos o que não seria no século XVII uma africana saber exprimir-se bem e adoptar uma atitude de superioridade para com os conquistadores.
No final, João Correia de Sousa argumentou que, para que o acordo ficasse bem cimentado, deveria o irmão de Jinga pagar aos portugueses um tributo anual. Porém, ela contrapôs que tributo só pagavam os povos subjugados, o que não era o caso. Uma última exigência por parte dos angolanos era a devolução dos escravos. Aqui os portugueses não puderam prometer que cumprissem, porque era um negócio que envolvia muita gente, mas mostraram boa vontade para o problema.
À despedida, o governador, reparando que a escrava se mantinha acocorada na posição de assento, perguntou à altiva Jinga porque não a manda levantar, ao que a sobranceira guerreira angolana terá respondido: “Já não preciso dela, nunca me sento duas vezes na mesma cadeira!”
A divulgação deste facto foi, em grande medida, obra de um holandês que poucos anos depois fez desenhos deste insólito comportamento e que veio contribuir muito para a aura de admiração que se gerou em torno desta mulher angolana, uma, se não a maior heroina do seu país.
Muito provavelmente como estratégia diplomática, Jinga deixa-se baptizar com toda a pompa e circunstância, e muda o nome para Ana de Sousa, tendo por padrinho o próprio governador João Correia de Sousa. Dai ter adoptado o seu apelido, como era costume. Isto terá ocorrido em 1622, contando Jinga 40 anos.
A verdade é que Jinga deixara em todos os portugueses uma profunda admiração e respeito e vai regressar ao seu reino com prendas preciosas oferecidas pelos portugueses.
Relata então ao irmão o sucesso da sua missão. Este, entusiasmado com a descrição do baptismo, manda comunicar ao governador que lhe mande missionários para ser também ele baptizado. É incumbido dessa missão o padre Dionísio de Faria, natural do reino de Matamba. Porém, quando Mbandi vê que os portugueses lhe enviaram um padre da sua raça, isto é negro, tomando isso como uma afronta, recomeça de imediato a guerra contra os portugueses que, muito mais bem preparados o vão perseguir. Cobardemente, foge e refugia-se numa pequena ilha do Quanza, onde acaba por morrer ou ser envenenado, a mando da irmã, que percebe que é chegada a sua hora da mandar. Ela possuía já um exército fiel, engrossado continuamente com escravos que fugiam a refugiar-se nas suas terras para escaparem ao seu trágico destino.
As mensagens entre os portugueses e a rainha Jinga prosseguiam, havendo, por parte do governador, alguma relutância em combater esta mulher que para todos os efeitos era cristã. O governador teria gostado de cumprir a sua palavra, mas as pressões de Lisboa para se aumentar o mercado de escravos para o Brasil eram demasiado fortes para que o governador pudesse agir segundo a sua consciência.
Em Agosto muda mais uma vez o governador, tendo assumido esse cargo o bispo Frei Simão Mascarenhas.
Embora, neste período, na correspondência trocada entre portugueses e a princesa Jinga, esteja assinada como Ana do Sousa, não deixa de insistir para que Portugal cumpra as suas promessas e devolva os homens do seu reino que foram feitos escravos. Ora, o tráfico de escravos era um grande negócio na altura e Portugal não estava interessado em abandonar essa fonte de rendimento, passe tudo o que é hoje a nossa visão da escravatura. Estava-se noutra época em que a escravatura existia em quase todo o mundo. E como “para grandes males grandes remédios”, em 1625, o governador Fernão de Sousa decide acabar com a supremacia crescente de Ana de Sousa. Para isso, manda colocar no trono do reino do Dongo (que ficava na região das Pedras de Maupungo ou Pungo um parente dela, Ari Quíluanji, que não passava de um rei-fantoche, pronto a fazer o que os portugueses lhe ordenassem. Este deixa-se baptizar e adopta o nome cristão de Filipe. E Bento Banha Cardoso, capitão- mor do governador, quem vai executar esta missão. E o rei-fantoche compro meteu-se a prestar vassalagem ao colonizador, fornecendo 100 escravos por ano à Fazenda Real. Reinava então Filipe III. Com o evoluir dos acontecimentos era quase certo que Ana de Sousa assumiria mais cedo ou mais tarde o que a sua natureza lhe pedia. Renegou o baptismo e assumiu-se como Rainha Jinga. Ao contrário de muitas outras histórias de rainhas africanas, Jinga não foi uma figura lendária. Há documentos mais que suficientes, onde constam cartas suas, o que para época era raríssimo numa mulher africana. Ela tinha sido educada por frades italianos e aprendera a ler e escrever.
E se a lenda diz que nas altas montanhas de Matamba está lá uma pegada sua, este é o pormenor mitológico que dá sabor a todas as grandes figuras da história dos povos.
Para os portugueses parecia fácil domesticar esta mulher que para ser respeitada se vestia de homem, com as habituais peles de animais. Usava machado à cintura e manejava sem dificuldade o arco e a flecha. Ela exigiu ser considerada rei e não rainha, mantendo mesmo, à maneira de rei, o seu harém onde tinha mais de cinquenta jovens que eram para todos os efeitos as suas mulheres, como teria qualquer rei homem. Algo que não lembraria às mais belicosas feministas uns séculos mais tarde.
Em Fevereiro de 1626. Bento Banha Cardoso parte de Luanda acompanhado de um número considerável de cavaleiros e padres para tentarem pelas armas ou pela pregação reconquistar a rainha guerreira. Foram pelo Quanza até Massangano. Estava-se já no mês de Março. Vai haver confrontos. A rainha Jinga ataca de noite. Conhece o seu território. Há feridos e mortes. Debalde os portugueses lhe vão no encalço. Bento Cardoso, por agora, retira-se, visto ignorar o paradeiro da rainha que entre tanto se aliara ao Jaga Caza contra o rei--fantoche do Dongo. Os Jagas eram guerreiros por profissão e tinham fama de praticar ritos canibais, eram preparados desde jovens para essa função. Dai que, como mercenários, terem uma grande mobilidade, pois não lutavam por causas mas sim ao lado de quem dava mais vantagens. Os próprios portugueses vão ter jagas pelo seu lado, em várias fases das guerras angolanas, que duram várias décadas.
Morre, entretanto, Bento Banha Cardoso, antes de poder irem auxílio do rei do Dongo.
Os exércitos organizam-se de parte a parte e há novos recontros com a rainha Jinga. Estamos em Maio de 1629. Não conseguindo derrotá-la, os portugueses raptam-lhe as duas irmãs, Cambo, Funji e um número considerável de sobas que a apoiavam. As irmãs da rainha são entregues à guarda da mulher do capitão-mor, em Luanda, que terá a incumbência de as mandar baptizar. Tomarão os nomes de Bárbara e Graça (ou Engrácia).
Entretanto Jinga organiza os seus exércitos que passam a contar agora com o apoio explícito do Jaga Cassangi, possuidor de oitenta mil arcos de guerra. Neste momento a rainha guerreira só deseja que os portugueses lhe reconheçam legitimidade para governar o reino do Dongo. O próprio António de Oliveira Cardonega, escritor considerado “o pai da História de Angola”, na sua obra escrita em 1680, é de opinião que os vinte e oito anos de lutas entre a rainha Jinga e os portugueses se deveram em grande parte à má política dos governadores de Luanda. Ele diz mesmo que os portugueses primeiro, roubaram o Ngola Mbandí: depois, fizeram rei um fantoche só para não reconhecer como legitima sucessora a rainha Jinga. Por fim são também os portugueses os culpados daquela rainha africana ter ido pedir auxilio aos holandeses.
Por volta de 1630, a rainha Jinga promete casar com o chefe jaga para cimentar a aliança mas tal não se vem a concretizar. No entanto, entre 1630 e 1635, dada esta aliança, consegue-se que as lutas tribais acabem. Quase sem se aperceberem, diversas tribos reúnem-se em torno da rainha Jinga e tomam consciência da sua força, centrada na região da Matamba.
Portugal enfrenta, neste período, um poderoso inimigo—os holandeses que queriam maiores lucros no comércio africano, nomeadamente no tráfico de escravos. Com os holandeses ao longo da costa e com a rainha Jinga à frente dos seus exércitos, no interior do território, o governo português resolveu tentar refazer a aliança com a rainha. E, em 1639, realiza-se um encontro entre as duas partes, mas não se chega a acordo.
Com o avanço dos holandeses, o rei do Congo, Garcia II entra também na guerra, ficando os portugueses com três frentes de conflito.
Em 1641 reinava já novamente em Portugal um rei português: D. João IV. De Luanda parte um exército para combater o rei do Congo e a rainha Jinga da Matamba. Mas era demasiado tarde e Luanda cai nas mãos dos holandeses. Os portugueses fogem para o interior.
Em 1645 a rainha Jinga cerca os portugueses que se encontravam em Massangano. Estes defendem-se heroicamente até ao limite das suas forças. Vários autores portugueses vão enaltecer este comportamento que faz parte daquela dupla visão histórica dos acontecimentos, que tem sempre dois lados. Para a história angolana heróicos terão sido os homens da rainha Jinga, daí ela ser a maior heroina angolana, que aos sessenta anos ainda comandava ela mesma os seus homens.
Jinga, aliada ao rei do Congo, com o apoio da Holanda e com os guerreiros de vários chefes jagas está prestes a vencer os portugueses, mas dá-se uma imprevista mudança de apoios. Os jagas abandonam-na, para se aliarem aos portugueses, que recebem também apoio do Brasil.
Os portugueses organizam-se e em 1646 vão atacar em força os acampamentos da rainha africana, matando mais de duas mil pessoas.
Luanda é reconquistada, em 1648, por Salvador Correia de Sá e Benevides. Nesse mesmo ano, este governador envia-lhe uma embaixada para que se converta, mas ela recusou.
O adido militar holandês Fuiler vai ser uma das principais fontes de informação sobre os acontecimentos em Angola no tempo da rainha Jinga, visto que ele é testemunha ocular de muitos destes acontecimentos, pois lutou ao lado dela, durante alguns anos. E ele testemunha a adoração que o povo angolano tinha por aquela extraordinária mulher, chegando muitos a beijar o chão quando ela se aproximava. Para o capitão Fuller, ela era tão generosamente valente que nunca feriu um português depois deste se render e tratava os seus soldados e escravos como iguais.
O acordo de paz entre portugueses e a rainha Jinga acontece em Outubro de 1656, sendo cento e trinta escravos trocados pela princesa Bárbara (nome de uma das irmãs depois de baptizada).
Em 1657, religiosos capuchinhos italianos aproximam-se da rainha Jinga e convencem-na a voltar à fé cristã e a vestir-se de mulher. Quem vai ter um papel importante nesta conversão é frei João António Cavazzi de Monte Cuccolo, conhecido simplesmente por Cavazzí. Com ele a rainha vai trocar cartas importantes. Os frades capuchinhos vão tomar a responsabilidade de edificar uma igreja paga pela já não rainha Jinga, mas pela novamente Ana de Sousa. A igreja de Santa Maria da Matamba é benzida em Agosto de 1663 por Cavazzi.
Aos 75 anos, acabara o reinado do rei/ rainha Jinga. Os seus últimos oito anos de vida são de uma pacífica e devota católica que assegurou a continuidade do reino ao aconselhar o casamento da irmã Bárbara com um general do seu exército. A sua longevidade foi extraordinária para a época. Morreu aos 83 anos, a l7de Dezembro de 1663, na presença de Cavazzi. Mas a memória dos seus feitos e a extrema dignidade do seu porte permanecem como uma referência para todos os angolanos.
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