terça-feira, 28 de março de 2017

EFA - STC - Texto - Migrações Contemporâneas - Dos Estados e dos Homens - Sociedade, Tecnologia e Ciência


A imigração se tornou para os observadores uma realidade econômica e social além de um desafio às políticas internacionais e às políticas internas. É comum lembrar que na Europa, desde os anos 1960, notadamente, as migrações desempenham um papel importante nas mudanças sociais e políticas das sociedades, alimentando os debates sobre a integração e sobre a gestão da diversidade. Mas diferentemente dos anos 1980, quando os imigrantes e seus filhos se radicavam no país que os recebia, mesmo mantendo ligação com o país de origem, nos anos 1990, com a segunda globalização, há uma evolução do conceito de migração com uma complexidade dos fenômenos de mobilidade. As mudanças ocorridas no final do século XX em relação aos processos dos anos 1960 e 70, ilustram as orientações segundo as quais convém basear de forma diferente a integração das populações estrangeiras nas sociedades. Segundo as análises de A. Appadurai, o que caracteriza o mundo em que vivemos é a noção de “circulação”. As circulações contemporâneas introduzem mudanças tanto em nossas instituições, durante muito consideradas referentes estáveis, quanto nas construções identitárias e no imaginário social. Os movimentos migratórios sugerem coisas novas, veiculam novos conteúdos e novas formas de agir. Eles questionam também as normas sociais, as racionalidades políticas e, finalmente, a ordem instituída das identidades.

Nesta minha comunicação eu gostaria de discutir o aparecimento de novas configurações migratórias, dependentes das capacidades dos indivíduos ou de grupos, que mobilizam suas experiências circulatórias em espaços transnacionais. Essas formas, ainda minoritárias, são sintomáticas das mudanças que estão ocorrendo nas sociedades. Por isso, depois de situar brevemente a tendência das migrações internacionais em escala mundial, vou me centrar mais particularmente na dinâmica migratória européia e nas questões que ela coloca às lógicas capitalistas-estatais.

A dinâmica migratória : movimentos permanentes na história da humanidade

Descrever as migrações em nível mundial é tarefa difícil; assim, vou me limitar a destacar apenas alguns pontos centrais.
Os migrantes internacionais são quase 150 milhões neste início de século, na medida em que definimos como migrante toda pessoa residente em país estrangeiro , ou seja, 2,5% da população mundial. Eram 75 milhões em 1965 e 120 milhões em 1990, segundo os números disponíveis. E, ainda que inexatas, essas estimativas, calculadas unicamente nos estoques, evidenciam a progressão dos deslocamentos nos últimos quarenta anos. Mas as previsões são ainda mais altas se considerarmos que, segundo algumas fontes, até o final do século, quase 1 bilhão de pessoas estarão se deslocando.

No início do século XX, era da Europa que partiam migrantes em direção a todos os continentes. Hoje, são países do hemisfério sul que alimentam três quartos dos fluxos anuais de migração internacional. A Ásia se tornou a primeira região de partida tendo à frente a China e a Índia; e em menor escala, a Indonésia, as Filipinas, o Bengladesh e o Sri-Lanka. A África, em segundo lugar, se afirma cada vez mais como continente de partida para a Europa e os Estados Unidos. Temos, sem seguida, as Caraíbas e suas margens continentais (México, América Central, Colômbia). Hoje, se a América do Norte continua sendo o continente mais atraente, foi a Europa que se tornou, na virada para o século XXI o principal espaço de imigração do mundo, em fluxos de entrada. Segundo a OCDE, o número anual de entradas de estrangeiros se situa acima de 1,2 milhões, contra 800.000 para os Estados Unidos e o Canadá. Os migrantes chegam em maioria dos países da Europa Oriental e da África do Norte. O aumento potencial das imigrações procedentes da África (África sub-sahariana, e Corno da África), do Oriente-Médio (Iraque, Palestina, Egito), e sobretudo da Ásia (Índia, Paquistão, Filipinas, Sri-Lanka, China) veio reforçar esses fluxos.

São os países desenvolvidos que polarizam os fluxos migratórios, mas outras polarizações podem ser observadas no hemisfério sul: é o caso das petro-monarquias do Oriente-Médio, dos novos pólos econômicos (Cingapura, Malásia, Taiwan, Coréia do Sul) e na África, do Gabão e da África do Sul. E ainda que alguns dos países citados tentem limitar as entradas, as migrações clandestinas não param de aumentar.

A globalização dos fluxos se manifesta hoje em quase todos os grandes países de imigração e principais focos de emprego do planeta. Assiste-se a uma real mutação da paisagem migratória mundial que torna pouco operatórios os paradigmas clássicos centrados nas relações históricas entre países de partida e países de acolhida (México/Estados Unidos; Norte da África/França; Índia e Paquistão/Inglaterra – G. Simon 2002). Com a internacionalização dos fluxos migratórios, a distinção clássica entre países de emigração e países de imigração se desfaz diante dos funcionamentos migratórios complexos ao Norte e ao Sul.

Se a problemática da pobreza com a violação dos direitos humanos e os conflitos continuam sendo os principais motores da emigração em grande escala, resta, segundo Wets (in Bribosia e Rea, 2002) que, a curto prazo, nem o apoio ao desenvolvimento, nem o comércio internacional e nem os investimentos no terceiro-mundo parecem poder criar uma situação que vá ao encontro da emigração. Parece até mesmo que a inter-relação cada vez maior entre os mercados pode no futuro ampliar e alargar a circulação migratória através da intensificação dos intercâmbios. Os efeitos sobre as mobilidades ainda são subestimados, principalmente porque o desenvolvimento de alguns países do terceiro-mundo pode modificar e acelerar as mobilidades alternativas. Notadamente porque uma economia que se desenvolva baseando-se na exportação (atual orientação dos países em desenvolvimento) acelera sua integração à economia mundial e aumenta sua interdependência com os outros países. Desenvolvimento, então, não significa automaticamente redução da pressão migratória, ao contrário; e a mobilidade social ativada pelos intercâmbios econômicos pode passar então por uma emigração. Além disso, as crises econômicas, revolvendo os sistemas migratórios, podem também acelerar e/ou reconfigurar a circulação migratória. O desenvolvimento econômico parece, portanto, mais reforçar que deter a migração internacional. Diante dessa situação, os países desenvolvidos são confrontados à seguinte alternativa: ou contribuem para o desenvolvimento, a longo prazo, dos países do Sul; ou verão as imigrações aumentarem.

Os novos migrantes : diversidade de perfis

Mas quem são esses « novos migrantes » que desde o final dos anos 1980 atravessam fronteiras para chegar aos países ou, especificamente, às grandes metrópoles que os chamam e os desejam? Catherine de Wenden (2002) baseando-se em diversas pesquisas tenta traçar os perfis dos candidatos que esperam partir para uma vida melhor ou fugir da ausência de perspectivas de futuro em seus países de origem:

- são profissionais de alto nível, mobilizados pela multiplicação dos intercâmbios internacionais, ou pessoal muito qualificado (técnicos em informática, médicos) que trabalham em países que os necessitem;

- são homens jovens e, muitas vezes, diplomados, vindos de meios urbanos e que aspiram à “modernidade ocidental”, e que depois de uma viagem penosa, paga geralmente a agentes mafiosos, como alguns Curdos e Afegãos, tentam a travessia noturna do Canal da Mancha através do Eurotúnel, a fim de chegar à Inglaterra; declaram que seu “projeto de mobilidade é a um só tempo econômico, social, cultural e mesmo ético”: respeito aos direitos fundamentais e fuga de regimes ditatoriais;

- são mulheres sós, que tendo terminado seus estudos, tentam fugir das sociedades onde não têm mais lugar. Muitas dentre elas, recrutadas pelas fileiras mafiosas irão alimentar as redes de prostituição (pessoas vindas da Romênia, da Ucrânia, da Moldávia e da Albânia, por exemplo);

- são crianças pegas pelas redes de tráfico ou confiadas a familiares.

- são pessoas de uma elite qualificada que decidem partir para aceder a um nível de vida superior;

- são homens jovens, pouco qualificados, em busca de emprego ;

- são grupos de migrantes organizados na mobilidade transnacional : indianos Tamul, de Pondichéry, na França; comerciantes Murida, do Senegal, que vivem em vários espaços e podem ser encontrados na França, na Itália e nos Estados Unidos; e todos aqueles que alimentam as redes migratórias nas economias mercantes no Mediterrâneo, por exemplo (Peraldi, sob direção de, 2002);

- são, finalmente, pessoas que pedem asilo, refugiados vítimas da desestabilização de regiões inteiras do mundo.

As novas configurações migratórias : o exemplo europeu

A Alemanha, a Bélgica, a França e os Países-Baixos, nos anos 1970, puseram fim à sua política de imigração de trabalho iniciada depois da Segunda Guerra Mundial. Essa decisão era, para os Estados envolvidos, uma resposta lógica à crise econômica, depois do choque petroleiro, o aumento do desemprego e da inflação. Mas a adoção de uma política restrita, de controle de fronteiras, não impediu a imigração legal (para reagrupamento das famílias) nem a clandestina. Além disso, nos anos 1980, os Estados do Sul da Europa, inicialmente países de emigração, receberam vários milhões de emigrados, muitas vezes clandestinos; e países como Portugal, Espanha, Itália ou Grécia, deveriam acabar regularizando sua situação. Todavia, a *integração desses países no espaço Schengen vai implicar um reforço de seus controles nas fronteiras e uma aproximação do objetivo de imigração zero promovido pelos Estados do Norte.

O século XXI está sendo marcado, na União Européia, por um debate ligado à « reabertura condicionada » das fronteiras e à “redefinição da hospitalidade calculada” (Bribosia, Rea, 2002). As lógicas que presidem a essas políticas são de ordem demográfica (envelhecimento da população européia; baixo índice de natalidade) e de ordem econômica (carência de mão-de-obra em alguns setores econômicos). Encontramo-nos novamente mutatis mutandi na mesma lógica instrumental desenvolvida no pós-guerra. O argumento demográfico, que durante muito tempo foi um tabu, por fazer apela à imigração, está sendo contestado pela maior parte dos sindicatos e dos ministros do Emprego Europeus (segundo as projeções das Nações Unidas, o número de migrantes à serem acolhidos no próximo século se elevaria a 700 milhões. O argumento econômico, notadamente por causa da introdução de mão-de-obra qualificada (a Alemanha fez apelo a técnicos indianos em computação) foi retomado pela Comissão Européia a fim de pedir a reabertura condicional das fronteiras. Nesse sentido, a Comissão constata uma “carência de mão-de-obra qualificada, mas também não-qualificada em alguns setores”... “ainda que o nível de desemprego continue muito elevado”. Ela frisa também que “apesar dos esforços dos Estados membros para lutar contra esse fenômeno”, estes “sofrem uma pressão migratória que se manifesta através de uma progressão da imigração clandestina e da delinqüência, ligada a ela, encontra-se em parte alimentada pelas políticas de admissão restritivas conduzidas por eles”. Diante dessa análise, os sindicatos pedem primeiro uma repressão mais intensa do trabalho clandestino e uma melhora nas condições de trabalho. Algumas ONGs (Organizações Não Governamentais), ativas no setor das migrações, são favoráveis à abertura das fronteiras e militam por uma maior liberdade de circulação de pessoas e pelo respeito aos direitos dos migrantes. Vê-se bem que a divergência dos pontos de vista, de acordo com os atores, está ligada às diferentes finalidades que, para alguns são pragmáticas e, para outros, humanistas.

De qualquer forma, em razão da criação de um espaço europeu sem fronteiras internas, não parece mais possível raciocinar, como nos anos 1960 e 70, unicamente em termos de soberania nacional e de vontade de Estado. A formação da Europa limitou a autonomia política da qual os Estados gozavam e a reduziu a um único controle de entradas dos indivíduos provenientes de outros países (pessoas que não têm nacionalidade de nenhum país membro da União Européia e que não se beneficiam da liberdade de circulação). Outra conseqüência da abertura das fronteiras internas é o novo questionamento da dicotomia entre nacional e estrangeiro, introduzindo uma nova categoria: a dos provenientes da União Européia, que não estão na categoria “nacional” nem na de “estrangeiros”. Além disso, a abertura de um espaço europeu sem fronteiras internas obrigou os Estados a reforçarem os controles nas fronteiras externas e a adotarem medidas de acompanhamento referentes aos asilos e à luta contra a criminalidade organizada (o tratado de Amsterdã, assinado em 1997 e em vigor desde 1999 é uma etapa na elaboração de uma política européia de imigração e de asilo). Entretanto, se o centro de decisão se deslocou progressivamente do Estado para a União Européia, nem por isso as tensões permanentes entre a europeização e as preocupações inerentes às políticas internas de cada Estado subsistem.

Na Europa, a mudança de contexto político obriga a pensar de outra forma os fluxos migratórios.

Em 1992, a Organização Internacional para as Migrações constatava que os fatores push, nos países de emigração, tornavam-se maiores que os fatores pull, nos países de destino. A pobreza, os conflitos violentos, os ataques ao meio-ambiente induzem ao deslocamento as populações que não respondem às demandas. Para S. Castles e J. Miller (1993) “nós entramos na Idade das Migrações”, o que não significa que os Estados não devam definir uma política migratória, mas esta não pode se reduzir a um abrir e fechar de fronteiras segundo as necessidades das economias avançadas.

Por outro lado, as migrações internacionais fazem parte da globalização e, independentemente da atitude moral que, em nome da liberdade, considera que não se pode proibir os indivíduos de circular, convém constatar que as migrações e os deslocamentos de populações se ampliam apesar das restrições introduzidas pelos Estados desenvolvidos. As condições nas quais se efetuam as migrações mudaram: a evolução e a constituição de uma sociedade em redes, assim como a evolução dos transportes, aumentam o volume e os movimentos dos deslocamentos (Castells 2001). Portes (1999) mostra que as redes transnacionais não são apenas meios de emigrar, mas tornam-se também causas de emigração que participam da formação de uma “globalização por baixo”.

De agora em diante, as migrações se tornaram um desafio nas relações entre Estados e pedem uma cooperação internacional. S. Sassen (1988) em seus trabalhos considera que a política de imigração não pode ser pensada independentemente das outras políticas conduzidas pelos Estados (retirada dos investimentos de determinados países, política de cooperação); das práticas das multinacionais (desestruturação dos mercados econômicos locais) ou das ações de instituições internacionais como o FMI ou o Banco Mundial (alguns programas fragilizam as condições de existência dos mais pobres e levam à emigração). Além disso, os deslocamentos de empresas ou de investimentos produtivos nos países chamados de emergentes criam necessidades em matéria de consumo que não podem ser satisfeitas pelas classes médias em formação: a defasagem entre os preços dos produtos e os salários locais também está na origem dos avanços migratórios. E, segundo os peritos, não é seguro que investimentos no terceiro-mundo ou ajuda ao desenvolvimento não tenha como efeito deslocar os mercados locais e reforçar a migração internacional.

Por outro lado, a lógica instrumental que preside o apelo aos imigrantes qualificados em direção dos Estados europeus e norte-americanos acelera a fuga de cérebros (brain drain), já que se trata de selecionar os melhores e provoca fatalmente um enfraquecimento dos recursos humanos nos países de origem.

Finalmente, em alguns setores da economia (têxtil, confecção, hotelaria, trabalhos domésticos, agricultura, construção civil, etc.) caracterizados por sua precariedade e dificuldade, os empregos desanimam os autóctones e os filhos de imigrantes, o que constitui um apelo à imigração clandestina tolerada pelos Estados e muito pouco reprimida. Na Bélgica, na França ou na Itália, por exemplo, a prioridade é o controle das entradas e não a repressão às atividades econômicas fraudulentas : os empregadores que contratam clandestinos raramente são perseguidos pela justiça ; em contrapartida os clandestinos são objeto de expulsão quando flagrados. Nessas condições, a ausência de repressão dos empregadores de mão-de-obra ilegal contribui para a manutenção dos canais de imigração clandestina. Rea, que conduziu pesquisas sobre a situação dos clandestinos na Europa, considera que a « imigração clandestina de mão-de-obra constitui um fenômeno estrutural ». Além disso, « essa mão-de-obra é requerida e procurada pelos empregadores que exigem uma força de trabalho muito flexível, dócil, baixamente remunerada e pronta a aceitar trabalhos de grande intensidade e socialmente depreciados » (in Peraldi sous la dir. de, 2002: 469). O tráfico de humanos parece ser o único terreno no qual os governos e as opiniões públicas se manifestam; assimilado a um neo-escravagismo e em razão de sua carga forte moral, ele é combatido, enquanto que o trabalho clandestino se desenvolve nos locais mais sórdidos e mais perigosos e no desprezo de todas as regulamentações sociais.

Novas mobilidades : uma « globalização por baixo »

A presença de clandestinos na Europa ilustra as formas contemporâneas de migração (refugiados, ilegais, clandestinos, migrantes oscilantes, etc.) Essas formas novas de migração não são unicamente resultado de políticas restritivas ou “fracassos” de uma política de fechamento de fronteiras. Existe uma demanda para se dispor de trabalhadores ilegais que os Estados mantêm, cientemente, em suas atitudes de permissivas, à margem de quaisquer direitos, civis, sociais e políticos: as regularizações sendo concebidas apenas como respostas específicas a movimentos de protesto e a ações militantes. Segundo Rea, “pode-se argumentar que os clandestinos são fabricados por uma política migratória que prefere manter os novos migrantes numa condição neo-escravagista” (in Peraldi, sob a dir. de, 2002: 475). Os clandestinos são mantidos num estado de não-direito.

Diante desse novo dado migratório, os Estados europeus são cada vez mais confrontados a um dilema que torna difícil conciliar projetos políticos e projetos econômicos, ou ainda “razões de Estado” e “razões de mercado”. A ascensão dos partidos de extrema-direita nos eleitorados, o avanço do racismo e da xenofobia os obriga a não aderir totalmente às exigências do patronato, mas eles também não podem desprezar a demanda por trabalhadores necessária ao desenvolvimento econômico. Ao impor medidas restritivas, eles se chocarão contra o mercado negro do trabalho e contra um novo questionamento dos benefícios sociais adquiridos pelos assalariados; e ao pretender a reabertura das fronteiras, estarão confrontados à opinião racista e xenófoba. Desde já, o que parece é que uma futura política européia em matéria de imigração não poderá ser pensada fazendo-se abstração da dimensão de integração dos migrantes e fora das políticas de respeito aos direitos humanos. Mas, estariam ainda os Estados-nação em condição de serem árbitros diante da complexidade da economia global, do aumento de potência das redes transnacionais e do aparecimento de novas formas migratórias desterritorializadas?

De fato, novas formas de migração que não podemos reduzir a simples push factors (pobreza, guerras, etc.) são visíveis há mais de dez anos e criam assim espaços desterritorializados e destacados dos contextos nacionais, espaços de circulação que mostram o laço estreito existente entre imigração e globalização. Nesse ponto, não se trata mais da figura do clandestino descrita acima, que é apenas uma engrenagem da desregulação das normas da relação salarial; mas, sim, de uma outra figura, a do comerciante transnacional que se inscreve dentro da mobilidade e dela tira proveito.

Os empreendedores migrantes : novas figuras da mobilidade

No Mediterrâneo ocidental ou na América do Norte, já há cerca de quinze anos que vêm se manifestando redes de empreendedores migrantes, cuja característica é a de promover uma economia subterrânea de alcance que podemos chamar de mundial, revelando assim uma forma de globalização que Portes (1999) qualificou de « globalização por baixo » Essas “empresas de migrantes em redes” (Tarrius, 2002) revelam transformações profundas nas condutas sociais. Esses “novos mundos da migração” como os chama A. Tarrius, “renovam os cosmopolitismos ali onde o Estado, feroz guardião dos sedentarismos cidadãos, não espera: nos territórios que lhe escapam que ele não sabe gerir”.

A economia subterrânea está no centro desses processos e se mostra em locais de transações, praças mercantis de grandes metrópoles, dispositivos comerciais, rotas mercantis, etc. Tarrius (2002), Hily e Ma Mung (2003), Peraldi (2002) observaram essas redes de migrantes nas economias mercantis no Mediterrâneo e evidenciaram modos de organização que estão bem longe das migrações da era fordista. Esses fluxos de migrantes apresentam várias características que podemos resumir assim:

- articulam recursos oferecidos pelas antigas migrações instaladas há mais tempo, recursos de mobilidade e capacidade de se deslocar conforme itinerários marcados por lugares conhecidos, pessoas conhecidas, etc. ;
- as fileiras desses « novos migrantes » se inscrevem na conquista de um novo statuto, o de “empreendedor”;
- jogam com os diferenciais entre fronteiras, contornam as legislações e praticam o vai-vêm entre vários territórios; é antes a itinerância e a pendularidade - Tarrius fala de “nomadismo” (2002) - que os caracterizam, do que a aspiração a se integrar nos territórios de migração.
- seus percursos de migrantes imbricam-se com suas atividades comerciais, sejam elas lícitas ou ilícitas.

Esses comerciantes, empresários,ambulantes, intermediários, lojistas, visíveis nos territórios de nossas cidades e há muito estudados pelos pesquisadores, tornaram-se objeto de numerosos trabalhos (sob a dir. de Hily, Tarrius, 2003). Migrante, transmigrante, circulante? Não é fácil denominar esses atores que instalam suas atividades em vários espaços. Um exemplo dessas dinâmicas foi dado pelos movimentos de populações na seqüência do desmoronamento da União Soviética. A possibilidade de circular permitiu um « shop turismo », notadamente em praças comerciais européias e orientais. Assim, poloneses iam até os mercados ocidentais, compravam mercadorias e as revendiam em seu país. Outro exemplo, ainda, leva-nos ao Mediterrâneo, onde desde o início dos anos 1980, Marselha se tornou um grande mercado fronteiriço, no qual vinham se abastecer regularmente as populações argelinas. Hoje, mais de uma centena de argelinos está instalada em Istambul, trabalhando num bairro comercial da cidade, onde recebem os « sacoleiros ». Redes comerciais operam desde o Sul da Argélia, via Níger, Chade e o Mali para a África do Sul. Jovens marroquinos ou senegaleses, na maioria muridas, estão envolvidos no comércio de rua nas cidades italianas, onde a maior parte é “especializada” no comércio de falsificações de produtos de marca (Hily e Rinaudo in Peraldi, sob a dir. de, 2002).

O termo « empreendedor » para qualificar esses imigrantes, não é anódino, pois pode-se ver que “empreendimento migratório” e “empreendimento econômico” estão freqüentemente ligados entre si. Constata-se há um certo tempo a integração cada vez maior das redes migratórias e das redes econômicas; as primeiras sendo o suporte das segundas e estas permitindo às primeiras encontrar outras direções, impulsionando por aí mesmo novos fluxos de bens e redefinindo dessa maneira a configuração geográfica dos fluxos econômicos. Estamos, portanto, em presença de formas econômicas que não são a do sedentarismo, já que são tributárias dos movimentos de pessoas. Os pontos de articulação dessas redes econômicas são, então, os múltiplos locais de trocas: mercados e empresas, incluindo as mais modestas. As mudanças que se observam nestes últimos anos envolvem não apenas a diversificação das destinações, mas também a complexidade crescente da organização dos grupos que atravessam ou se apropriam dos territórios segundo as oportunidades dos mercados, as informações passadas pelos “instalados”, a maior ou menor flexibilidade das legislações nacionais e a maior ou menor estruturação das redes.

O desenvolvimento de uma economia política sem Estado “gerida” por esses “novos empreendedores” mostra que novas lógicas estão em operação no seio de grupos migrantes, bem diferentes daquelas observadas nos anos 1970-80. Como ressalta Alain Tarrius (2002), trata-se do aparecimento “de uma forma migratória nova, combinada, além da imagem primeira de empreendedor, a produções originais de relações sociais: des-etnitização das relações durante as atividades de troca comercial, deslocamento das escalas espaciais e familiares de integração, augurando cidadanias européias, capacidade mestiça de federar o próximo e o longínquo, de entrar e sair de universos normativos contrastados”. As redes sociais construídas na migração têm a capacidade de produzir modos de organização de ultrapassam asa fronteiras de um Estado.

O que está em jogo, hoje, é a transformação das modalidades de integração e das heranças históricas, depois da lenta construção dos Estados-nação, que definiram sua normatividade. Essa forma migratória é nova porque ela aparece na ordem e na desordem da globalização. Ela é, como escreve Alain Tarrius, « nova porque gera estatutos e destinos coletivos que escapam aos projetos dos Estados-nação e às suas injunções à sujeição cidadã sedentária, às vias institucionais da integração e da assimilação; nova também porque expõe contrastes sem precedentes entre oficialidade e invisibilidade; entre mobilidades e enraizamentos, entre lugares e mundos; entre identidades e alteridades”.


Cosmopolitismo e Alteridade


O aparecimento de novas dinâmicas migratórias, ligadas à capacidade de circular e utilizar os recursos da mobilidade, põe à luz fenômenos novos.

Primeiro aspecto desses fenômenos: uma porosidade das fronteiras nacionais, fronteiras étnicas e fronteiras individuais, já que nos terrenos de troca comercial cruzam-se, misturam-se e se confrontam indivíduos muito diferentes nos planos das populações e dos estatutos jurídicos e sociais.

Segundo aspecto : a potência dos pertencimentos, não mais nacionais – como aqueles que estruturavam as relações políticas, econômicas, ideológicas até nossos dias – mas conjunturais, circunstanciais e oportunistas, ao mesmo tempo étnicos e cosmopolitas.

Terceiro aspecto : o aparecimento de um mundo que não é tanto aquele da globalização “por cima” e das global cities, mas o de formas sociais feitas por conexões locais e globais de lugares, indivíduos, coletivos e territórios.

Enquanto que a políticas governamentais tinham a primazia sobre a economia nacional e as fronteiras marcavam soberanias e identidades territoriais claramente definidas, as migrações recentes (as novas mobilidades) vieram confirmar o desaparecimento das sociedades fechadas em si mesmas. Esses “mundos novos” da migração produzem o “misto”, a mistura; renovam os cosmopolitismos onde o Estado não espera: nos territórios da circulação que lhe escapam”. A questão, agora, não é mais a da relação entre autóctones e estrangeiros, mas aquela que vê o local se globalizar.

Mas qual o futuro para a construção de novos cosmopolitismos, para o reconhecimento da alteridade e dos direitos humanos? Claro, a incerteza é que domina. Se as nações continuarem a resistir ao outro a violência pode estourar. É difícil prever também as reações aos indispensáveis migrantes que as nações européias se apressam a fazer entrar maciçamente em seus espaços. E como imaginar que essas populações não sejam influenciadas por aquelas que as antecederam e pelas novas formas migratórias cujo aparecimento assinalamos?

As confrontações atuais e a instabilidade legislativa em torno das presenças estrangeiras não tranqüilizam, mas as situações cosmopolitas geradas pelas circulações migratórias e pelas práticas de mobilidade, apresentando-se como experiências sociais estão na contra-corrente das identidades fechadas. Nessas condições, a discussão sobre o cosmopolitismo não se relaciona tanto com a questão da tolerância ao outro quanto com a maneira de se questionar mais profundamente o etnocentrismo.


Referências bibliográficas

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