Se chegar a bom termo o acordo assinado por José Sócrates durante a sua visita, em Julho, a Luanda, para o envio de 200 professores que coadjuvarão no plano "Educação para todos" que o Governo de Angola pretende concretizar até 2015, seria bom que os candidatos a esta nova navegação para aquela que foi a mais duradoira colónia de Portugal não se deixassem inibir pelas leituras demolidoras que, antes das eleições legislativas realizadas em Setembro, se fizeram em importantes órgãos de comunicação social sobre o modo como é governado aquele país.
Eram tópicos dessas leituras o autoritarismo, o nepotismo, a corrupção e a incompetência, frutos de um poder geralmente considerado sectário e ditatorial, que não permitia o exercício de elementares liberdades civis e políticas, como é a prática do contraditório. E, nesta visão, esses analistas incluíam a previsibilidade de eleições fraudulentas e o mais que fosse imaginável para garantir que o Partido do Governo continuasse incólume, apenas cedendo em arremedos de democracia à europeia "para inglês ver".
Mas depois das eleições só vimos o clamoroso silêncio dos mesmos analistas, também chamados "guias de opinião", que, talvez por não estarem ainda imunizados contra uma espécie de síndrome pós-colonial, se tinham "esquecido" do aviso de Frei Tomás e de que o argueiro nos próprios olhos os impedia de ver que, na "sua" Europa, as práticas do poder estavam longe de servir como receita universal.
Afinal, os eleitores puderam votar em paz e liberdade, depois de terem escutado, nos comícios e órgãos de comunicação social, as vozes do contraditório representado por uma dezena de prolíferos partidos de oposição ao Governo. E, contra as expectativas dos observadores ocidentais, compenetrados de que o paradigma da "verdadeira" Democracia (literalmente o poder do povo) é uma inspiração euro-americana, de génese greco-latina ? a "corte" do MPLA (histórico e/ou refundido) captou 80% dos votos democraticamente expressos! Só que não ficaria bem àqueles analistas, assumidos democratas, dizer depois que a maioria esmagadora dos eleitores angolanos, inclusive nas áreas onde tinham pontificado os grandes partidos adversários do MPLA ? a UNITA e a FNLA - se enganaram votando no partido do Governo ...
E não se enganaram. Porque logo num aspecto o desenvolvimento alcançado (sobretudo no domínio da Educação e da Cultura), depois que terminou a guerra civil, era indício de que, como ensinavam os mais-velhos, "amanhã será melhor": melhor, para as grandes massas populares salvas dos campos minados e das aldeias bombardeadas, recolhidas "in extremis" nas costuras das cidades desestruturadas pelo sobrepovoamento (em Luanda mais de 2 milhões); melhor também, para que "os meninos de rua" sem eira nem beira pudessem (como "os meninos do Huambo" da canção) voltar a sentar-se à roda da fogueira cantando à Bandeira e à Independência. Esses meninos são hoje mais de 5 milhões que vão às escolas do ensino primário, secundário e superior, distribuídas por todo o País e administradas por cerca de 180.000 professores, ainda, dos quais mais de 70% no ensino primário e o resto em 53 escolas secundárias, 16 instituições públicas de ensino superior e 13 privadas.
Certo foi que maioria do povo que votou no Partido do Governo, mesmo só como numa nova Sagrada Esperança, não se deixou impressionar com o uso que os governantes faziam do Poder, à sombra do qual se havia constituído uma classe privilegiada, rica e poderosa, de amigos e familiares do Chefe. Pois já diziam os "misosos": "Montas um elefante, tens admiradores à tua volta"; "quem obedece sempre comeu"...
Nada de novo: fora sempre assim, em todos os tempos e lugares do mundo... No antigo Livro da ética judaico-cristã, em que se perfila um Homem Novo, já se regista que prudentemente ninguém deverá sentar o inimigo a seu lado e que Jesus censurou os doutores fariseus pelo seu presunçoso e hipócrita apego ao formalismo da lei. Na "teleologia" tradicional angolana, prelecciona-se que "não se deve castigar um cão pelos defeitos próprios de todos os cães". Sempre a Moral foi moldada pelos costumes e as vontades...
Um professor português, conhecedor da literatura medieval do seu país e lembrando-se da crónica de Fernão Lopes sobre a Geração de Aljubarrota, perante a natureza do Poder constituído em Angola, tendo como suporte um grupo de escolhidos entre os filhos, civis e militares, da Geração da Luta pela Independência, não será acometido pelo furor farisaico daqueles "analistas" sem bastante memória nem ciência da sua própria História, e menos ainda da História de África, que aqui se desenvolve vertiginosamente, ao correr dos dias. Esses não poderão compreender que, num país tão "atrasado" como consideram Angola, o novo Governo saído das eleições de Setembro tenha dez ministros do sexo feminino ? quando no mundo "desenvolvido" ainda se discute o recurso a quotas para as mulheres ascenderem à governação...
Mas recordemos a crónica de Fernão Lopes:
Nos, com ousamça de fallar, como quem jogueta, por comparaçom, fazemos aqui a septima hidade, na quall se levamtou outro mundo novo e nova geeraçom de gemtes; porque filhos d'homeês e de tam baixa comdiçom, que nom compre de dizer, per seu boom serviço e trabalho, neste tempo forom feitos cavalleiros, chamamdo-sse logo de novas linhageês e apelidos.
Por fim, um "aviso" aos professores candidatos a navegantes e aos promotores da navegação: não se atrasem demasiado, fazendo jus ao apodo com que os nativistas brasileiros nordestinos, no século XIX, mimoseavam os portugueses - "pés-de-chumbo" - mofando do seu proverbial "devagar que tenho pressa". Perante o descenso que já se verifica nas escolas superiores portuguesas sobre os estudos africanos (e as Humanidades em geral), não é impensável que Angola tenha de recorrer a professores brasileiros para ensinar português.
Leonel Cosme
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