As medidas político-administrativas que têm vindo a ser tomadas no âmbito do sistema educativo, designadamente, as que incidem directamente sobre a figura profissional dos professores, não podem deixar de se reflectir de forma muito sensível na natureza do seu trabalho, nas relações sócio-profissionais que o enquadram, na imagem social, cultural e pedagógica que vai configurando o seu quotidiano, contribuindo deste modo para a instauração de um modelo que determinará, necessariamente, uma outra forma de ser professor. Se, à face da ordem discursiva de pendor pedagógico não há uma ruptura clara com a gramática dos últimos lustros, a pragmática política tomou decididamente a ofensiva ao visar o que de mais sensível condiciona o exercício da actividade profissional que é a sobrevivência quotidiana dos profissionais. Ninguém contestará que o modelo de avaliação, que foi recentemente consagrado na legislação, deve a sua eficácia à condição de ameaça implacável sobre o quotidiano da carreira da classe docente, não tanto pelos seus efeitos materiais directos como, sobretudo, pelos mecanismos psicológicos que acciona e pelas fantasmatizações simbólicas que desencadeia. Nestes termos, é de esperar uma agudização das intervenções retóricas ao nível da ordem discursiva de pendor pedagógico, com sede nas tecno-estruturas político-pedagógicas do ministério, tendo em vista a legitimação dos fins efectivamente visados na ordem prática. O objecto desse exercício de legitimação é, claramente, a classe docente não apenas porque é dela que depende o sucesso das medidas práticas como, sobretudo, porque é ela a que mais avessa se tem mostrado à mensagem ministerial. Razões múltiplas e complexas explicarão esta relação, mas não podemos ignorar a profundidade das transformações que estão em curso e a metodologia atabalhoada que foi utilizada.
Neste contexto, o reforço do discurso através da exploração de valores pedagógicos e científicos, como autonomia, descentralização, qualificação e dignificação profissionais tenderá a marcar a intervenção dos responsáveis pelo sistema educativo, tanto centrais como periféricos. A par desta vertente, será reforçado o peso dos valores estratégicos e económicos da escola que, de resto, assumiram um claro protagonismo na retórica da legitimação de há uns tempos a esta parte.
Um discurso alternativo que projecte uma visão da profissão assente na valorização das experiências, das vivências e partilhas colectivas, no trabalho como um projecto de (des)envolvimento de si com os outros, no saber como construção de uma relação significativa, um discurso alternativo que se queira fiel à missão emancipatória do saber que preserve e transforme o lugar do outro e não o massifique até à condição de objecto de mercado, como a toda a hora se ouve e se pratica, um discurso assim que admita a utopia como o referencial que, apesar de tudo, ainda guarda o que melhor resiste na imagem do professor, parece profundamente comprometido.
Assiste-se a um regresso acelerado do modelo do «professor funcionário» assimilado à condição de técnico executante, estrito aplicador de medidas programáticas, como se fosse possível recuperar a lógica que presidiu a um outro modelo que, então, se designou de «processo/produto». Perfila-se no horizonte um cenário em que a prática profissional se constituirá num laboratório fervilhante de contradições, tanto profissionais, como político-administrativas, para as quais as respostas passarão, com toda a probabilidade, pelo silenciamento sofredor, umas vezes calculista, outras indignado, dos próprios profissionais. Esse será o preço da preservação da carreira que lhes foi imposta.
Manuel Matos
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