sexta-feira, 2 de abril de 2010

O Objecto da Educação


Hoje em dia, lembrando Dostoievsky, ouvimos muita coisa sobre educação, mas a recordação de algo belo e querido, que tenhamos sabido preservar desde a nossa infância, é a melhor de todas as educações. Se um homem levar consigo pela vida fora lembranças suficientes desses momentos, ele estará salvo para o resto dos seus dias, concluía o escritor russo do século XIX. Porquê?
Porque a presença que as coisas têm, por isso a sua relevância, dimensão, espaço e tempo na vida de cada um de nós, não só apenas pode ser atribuída individualmente por cada um de nós, como necessariamente está sempre-e-já a ser intuitivamente atribuída. Um pequeno texto, uma palavra, um gesto, uma ajuda numa situação em que já nada esperávamos, pode encher uma vida, pode mudá-la para outro horizonte, pode abrir possibilidades para nós mesmos que ninguém nem nós próprios podemos muitas vezes entender, explicitar ou inteiramente descrever. Explicações, análises, números, teorias, conceitos, ideias, sugestões, tudo isso e mais o outro tanto que é a nossa vida, surge sempre-e-já no âmbito do sentido que intuitivamente para nós já-fazem as coisas e o mundo. Assim, o tempo, a profundidade e a importância que um pequeno gesto pode ter para certa e determinada pessoa não é possível de ser antecipado por uma outra. Podemos contudo ter uma ideia do que podem ser esses pequenos gestos, esses momentos efémeros que em alguém que por eles é tocado paradoxalmente se podem estender por toda uma vida. Assim, o objecto da educação não é o assunto de que estamos a falar em dado momento, mas o modo como o fazemos, a forma como prosseguimos pensando, o tipo de distinções que apresentamos, a moral e a ética dos critérios em que vamos baseando o caminho que percorremos.

Educar é como ensinar alguém a andar ou a falar. Nada de metafórico existe nesta comparação. Falar e andar verticalmente é a educação mais fundamental do modo de ser que somos: o humano. Aprender a ler, a fazer contas, a dominar a técnica, o conhecimento científico e o processo de desenvolvimento de mais e mais conhecimento no âmbito de uma comunidade em que sempre-e-já estamos imersos é de uma forma essencial a mesma coisa que aprender a ler ou a falar. Todos esses aspectos que enquanto adultos nos envolvem são distinções no âmbito do processo fundamental que nós próprios somos: um erguer e um puxar, um indicar de possibilidades, um mostrar de mundos, um incentivar e ajudar, um responsabilizar, autonomizar e cuidar. Em resumo, educar, desde os primeiros dias até aos últimos, é deixar os outros serem humanos. Referiu Heidegger que ensinar, no sentido de educar, é muito mais difícil do que aprender. E porque é que isso é assim? Não apenas porque quem ensina, continuava Heidegger, deva dominar uma maior massa de informação e deva tê-la sempre pronta a ser utilizada, mas porque ensinar requer algo de muito mais difícil, complexo e poderoso: deixar aprender. Quem verdadeiramente ensina, de facto, nada deixa ser aprendido se não o próprio aprender. Este aprender, por sua vez, ao assentar num deixar ser revelado no cuidar que somos, tem o seu fundamento na liberdade individual.

O que aprendemos quando aprendemos a aprender? O que aprendemos quando somos educados? O que é a educação? Com base em que é que a educação ganha o seu sentido, a sua pertinência, a sua vitalidade e o seu carácter decisivo? A resposta é simples: educar é deixar surgir o homem no ser a quem Deus deu essa possibilidade. Ser homem, avaliado pelo que de mais fundo está em causa na educação, é deixar que o ser que tem a possibilidade de ser homem se erga, espiritual e fisicamente, para cuidar, procurar e ambicionar, para querer, melhorar e para tomar conta. Tomar conta de si, dos outros e do mundo no cuidado ontológico que encerra a palavra latina "educare".

A raiz da palavra portuguesa educar é a palavra latina "educ", a qual significava educar, criar, desenvolver uma criança tanto física como espiritualmente. A intenção desta educação, ou seja, o seu destino e valoração, é-nos dada por uma outra expressão latina, mais originária do que o "educ". O verbo Latino "ê-dûco", o qual significava levar para diante, puxar, levar connosco, erguer, construir, ou seja, envolver, motivar, mostrar e apontar possibilidades. Todos estes significados, assim como o sentido da palavra portuguesa contemporânea educar, têm como base uma direcção ascendente, ou seja, indicam um sentido de elevação.

Esta elevação que é o homem tem como resultado lógico e factual na nossa História a revelação do mundo em que cada homem é um fim em si mesmo: um ser individual cujo sentido primário é fazer algo da sua própria vida, cuidando, escolhendo, responsabilizando-se ao aprender. A palavra Latina "educare" tem também este significado de ir além, contrastando o único com a multidão. Por tudo isto, a educação é essencialmente um apontar de possibilidades, de distinções, de relações, de humanidade. Educar é abrir, é erguer, é questionar, é duvidar e ensinar a duvidar, é ser modesto e saber ajudar. Perguntar-se-á: quem deve então educar quem? A resposta é a mesma à pergunta de quem ajuda quem.

Viver é aprender, o tempo muda-nos porque tudo nos ensina. Passando o que passa, apreendemos o que fica. O passado fica da forma como para cada um de nós as coisas ganham os seus significados, individualmente, numa vida que é um permanente ter sido e um constante projectar de possibilidade de ser. Uma chamada pelo nome, uma ajuda quando nada se esperava, uma ideia tocada pelo entusiasmo, pela imaginação e pela vontade de partilhar, um olhar de cumplicidade, uma conversa sobre o que nunca se consegue ler mas que sempre nos preocupou, ou simplesmente o brilho de um momento, o vislumbre de uma possibilidade que dá um sentido fundo ao que temos sido, podem fazer muito e muitas vezes tudo o que mais pode marcar um caminho e uma forma de estar no mundo.

Poderá questionar-se sobre que temas, assuntos, momentos ou histórias estamos aqui a falar. A resposta é esta: sobre todos. Na educação, não é o assunto que é o essencial, mas a perspectiva, o modo e a relação. Ou antes, o objecto da educação não é um tema, como por exemplo a geografia, a história, a matemática, o desenho ou o desporto. Aquilo sobre o qual a educação recai é um modo de ser, que cuida, que toma conta, que se envolve, se deixa envolver e deixa ser.

Ouvimos muita coisa sobre educação nos dias de hoje. Mas tanto ontem como hoje, o homem é ele mesmo a educação, o ser que se ergueu, que repara e que cuida. Cuidando e ajudando, chamando e sendo cúmplices dessa chamada para a escolha constante das infinitas possibilidades que cada um de nós tem pela frente, podemos abrir o caminho e verdadeiramente educar e educarmo-nos. Uma hora é uma medida, uma bola é um passatempo, um conceito é um instrumento, mas cada um de nós é todo o mundo. São todos os mundos do mundo que a educação tem por tema. Assim, a qualquer momento em qualquer mundo, uma palavra, um gesto ou um olhar pode entrar e não mais sair. Se tivermos sabido ou podido preservar e deixar preservar esses momentos, podemos muito bem tocar não apenas naquilo que no momento estamos a falar ou a actuar, mas toda uma vida - e isso é verdadeiramente o objecto da educação.

Fernando Ilharco

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