segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Matriarca do ambiente



Judith Cortesão: do Porto para o resto do mundo
É difícil encontrar, no Brasil, um ambientalista que não se sinta devedor do legado de Judith Cortesão. No entanto, a vida aventureira desta portuense tem muito mais facetas, convergindo num ponto focal: Judith era uma entusiasta da felicidade geral.

Até à década de 1970, nenhuma criança sabia o que era ecologia, poluição, etc.”, dizia, em 2000, a ambientalista Judith Cortesão, constatando com algum optimismo a clara mudança de mentalidade ambiental que ocorreu nas décadas seguintes. Se a transformação não estava ainda perto de resolver todos os problemas ecológicos, ela era, para esta incansável luso-brasileira, “a maior força de esperança de um futuro em que haja mais dignidade para todos os seres e mais paz entre os homens”.

Através da “formação de quadros”, como gos­tava de dizer, da criação e concretização de projectos nas mais diversas áreas, das pes­qui­sas realizadas ou das batalhas empreendidas em nome da conservação e da integração, Ju­dith (que morreu aos 92 anos, em 2007) foi uma das grandes pioneiras desse processo no Bra­sil, com uma trajectória que lhe rendeu o ape­lido de “matriarca do ambientalismo brasileiro”.

Mas mesmo com o destaque cada vez maior dado aos assuntos ecológicos em todo o mundo e após uma eleição presidencial em que os temas “verdes” pautaram como nunca o debate político brasileiro, o nome de Judith Cortesão manteve-se, de modo geral, restrito aos círculos ambientalistas no Brasil, apesar de os seus feitos serem visíveis por todo o país. Em Portugal, de modo semelhante, pouco se sabe de Judith para além do facto de ser filha do historiador Jaime Cortesão ou de ter sido casada com o filósofo Agostinho da Silva.

Judith não procurava fama ou dinheiro, mas apenas concretizar os seus projectos e mudar as mentes, levasse isso o tempo que levasse. E assim participou, citando uma pequena parte dos seus feitos, em expedições à Antárctida, na concepção de organizações não-governamentais como o SOS Mata Atlântica e o Instituto Acqua, na criação de diversas reservas ecológicas e na redacção da Constituição do Brasil no capítulo dedicado ao meio ambiente, além de ter sido consultora da UNESCO, representante do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Brasil (SPHAN), professora de pós-graduação em educação ambiental na Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande do Sul) e muito mais.

Vida de aventura
Para Judith, a vontade de acção, a militância e a busca de aventuras nunca se desligaram de uma insaciável sede de conhecimento. Ao longo da vida, frequentou seis cursos universitários (medicina, letras, biblioteconomia, antropologia, climatologia e meteorologia), estudou desde a espeleologia à história e aprendeu 14 línguas, incluindo árabe e chinês. Mas a sua incrível trajectória começara muito antes de tudo isso, ainda no Portugal do início do século XX.

Cidadã de ideias mais do que de países, como a definiu o intelectual português Manuel António Pina, Maria Judith Zuzarte nasceu no Porto em 1914 e teve uma vida digna de filme. Ainda jovem, mudou-se para Paris, onde cursou letras na Sorbonne, voltando a Portugal para continuar os estudos em Lisboa. Por pouco tempo: perseguida pelo governo de Salazar, a família Cortesão muda-se para Barcelona nos anos 30. Durante a Guerra Civil, o edifício em que vivem é bombardeado e Ju­dith fica ferida num braço. A família foge para França, atravessando os Pirinéus a pé. “Ela muitas vezes me contou dos horrores que presenciou na Guerra Civil. Com certeza foi o despertar da ambientalista, estrategista devota pela preservação da vida em todas as suas formas”, diz Manuel Touguinha, amigo próximo de Ju­dith e seu parceiro em projectos no Brasil a partir dos anos 90.

No fim dos anos 30, Judith é presa pelo regime salazarista quando regressa a Portugal, mas foge da prisão, e em seguida do país, regressando a Espanha. É nessa época, já durante a Segunda Guerra Mundial, que a família se transfere para o Brasil, onde recebe asilo e onde Jaime Cortesão se dedica aos estudos da história do país. Nesse período, convivem com importantes nomes da intelectualidade brasileira, como Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Sérgio Buarque de Holanda, Assis Chateaubriand e Cecília Meireles, o que viria a influenciar muito a formação de Judith.

No Brasil, Judith casa com Agostinho da Silva, que também abandonara Portugal perseguido pelo governo de Salazar. Nos anos seguintes, o casal tem seis filhos e mora sucessivamente no Rio de Janeiro, em Itatiaia, em Santa Catarina e também no vizinho Uruguai.  Ali, já separada de Agostinho, durante o regime militar, no início dos anos 70, Judith é novamente presa e torturada, sob a acusação de estar ligada aos guerrilheiros tupamaros. “Contava que deixava os torturadores mais agressivos, porque nos interrogatórios ela dormia profundamente, de propósito, e não sentia os golpes de tortura”, conta Touguinha.

Após passar pelo Chile, pelo Peru e possivelmente por muitos outros lugares (nunca parou muito tempo no mesmo sítio), Judith regressa a Portugal e vive intensamente os dias da Revolução dos Cravos. No final dos anos 70, volta ao Brasil, onde se estabelece e, já com mais de 60 anos, mas com o espírito aventurei­ro de sempre, começa a sua trajectória mais directamente ligada ao ambientalismo.

Ambientalista educadora
Em tudo o que fazia, Judith carregava um persistente optimismo e um olhar profundamente humanista. Com uma visão sempre à frente do seu tempo, compreendeu e difundiu a necessidade de preservação ecológica antes mesmo de o ambientalismo se tornar um movimento organizado, em meados dos anos 80.

E preservar, para ela, significava pensar o homem integrado na natureza, sabendo das necessidades humanas e do dever de melhorar a qualidade de vida, principalmente num país tão desigual como o Brasil. “Nunca vi a Judith dizer: vamos salvar tal coisa em detrimento daquela população. Ou seja, se for preciso desmatar alguma coisa para poder plantar, porque não se tem o que comer, ela achava isso possível”, diz o ambientalista Theodoro Hungria, discípulo de Judith e seu parceiro em projectos no cerrado do país.

Assim, de facto, definir Judith apenas como “ambientalista” ou “ecologista” parece excluir as suas incontáveis outras facetas, ­áreas de interesse e de actuação: a antropóloga, a historiadora, a bióloga ou a médica (idealizou um dos mais importantes centros de formação de médicos na renomada rede de hospitais Sarah Kubitchek). Mas, para ela, falar em ecologia incluía tudo isso e muito mais; incluía animais e homens, natureza e sociedade, desenvolvimento e conservação, já que não compartilhava de uma visão segmentada do mundo. “Tudo era uma grande teia da vida. Nada estava separado e tudo se unia”, explica Touguinha.

Bom exemplo dessa visão é o seu depoimento para o documentário Intérpretes do Brasil, no qual explica aspectos da colonização brasileira e da mentalidade portuguesa da época a partir da beleza da ecologia marinha: “Os relatos [dos portugueses] falam da transparência das ondas e dos pequenos peixes rubros. Aquelas ilhas representavam o triunfo da vida sobre a matéria (...), eram cheias de coisas extraordinárias. Tudo isso é natural que tenha levado os navegadores ao mito, que tenha feito com que o Brasil, pela circunstância do esplendor e da variedade de sua paisagem, virasse a terra, por excelência, do mito.”

É difícil encontrar entre os mais importantes ambientalistas brasileiros de hoje (nas ONG, nas universidades, no governo, etc.) quem não tenha tido alguma influência, directa ou indirecta, de Judith. A sua vontade de formar “agentes multiplicadores de educação ecológica”, fossem crianças ou jovens universitários, moradores das comunidades, políticos e gente variada, parece ter resultado.

Legado de direitos e deveres
“Ela nunca falava com o cargo, ela falava com a pessoa. Então, era um relacionamento humano, em todos os sentidos. Você via almirantes trocando confidências com a Judith da mesma maneira que o pescador, um indígena ou um ambientalista. E essa facilidade dela de falar com as pessoas e ir encantando, isso teve um peso muito grande”, diz Clayton Ferreira Lino, presidente da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, um dos projectos que teve a mão de Judith.

O seu encanto fazia parte da sua estratégia. E com essas estratégias Judith foi criando infindáveis projectos ao longo da vida. Quando eram tantos que não podiam ser executados pela própria criadora, Judith instigava os seus discípulos a levá-los por diante. “Todos os dias nascia um projecto novo”, conta Touguinha. E foi com ele, em 1998, que a senhora Cortesão se mudou para Ilópolis, uma pequena cidade de colonização italiana no Sul do Brasil, onde concebeu, além de projectos ecológicos, a recuperação dos históricos moinhos de farinha da região.

Já muito doente e fragilizada, Judith muda-se para a Suiça em 2002, para cuidar da saúde e para “estar com os meninos”, já que a maioria de seus filhos vivem na Europa. Em 2003, ainda regressou ao Brasil para receber do presidente Lula da Silva a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Cultural Brasileiro, o que fez com grande satisfação e a sensação do dever cumprido. Em 2007, morreu na Suiça, sem deixar fortuna (fora a grandiosa colecção de livros e de artesanato), mas legando muitos olhos abertos para “o esplendor da vida no planeta”, e atentos para os deveres que este esplendor implica.

M.G.F.
SUPER 154 - Fevereiro 2011

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