quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Notícia - Uma nova Via Láctea




A Via Láctea está repleta de enigmas fascinantes relativamente à sua origem, à sua evolução e ao seu destino final. Três astrofísicas guiam-nos numa viagem ao centro do nosso bairro cósmico.

Daniela Carollo lembra-se perfeitamente do momento em que sentiu que queria ser astrónoma. “Estava numa pequena aldeia perto de Turim, no Norte de Itália, pelo que se via bastante bem o céu nocturno; era belíssimo”, recorda, na entrevista telefónica que nos concedeu a partir da sua actual casa, do outro lado do planeta, não muito longe do Observatório de Monte Stromlo, próximo de Camberra (Austrália). “Na casa dos meus pais, havia uma varanda de onde podia contemplar as estrelas, e eu tinha um monte de interrogações na minha cabeça; queria explicações para muita coisa.” Daniela tinha, na altura, nove anos. Agora, aos 40, cumpre o seu sonho na Universidade Nacional da Austrália, uma das mais avançadas em matéria de investigação astronómica, enquanto segue a pista das estrelas mais antigas do Universo.

Não podia imaginar que, por aquela altura, nascia na Alemanha uma menina que seguiria o seu exemplo e dedicaria a vida a procurar as mesmas respostas. Chama-se Anna Frebel e explica, também por telefone, a partir do Instituto Astrofísico de Harvard (outro dos “monstros sagrados” no estudo do Cosmos) que “sempre quis ser astrónoma”: “O meu trabalho consiste em procurar velhas estrelas. Podem perfeitamente chamar-me ‘caçadora de fósseis cósmicos’.”

Anna, de 30 anos, adora a cor azul, que associa à astronomia. Não tinha acesso a um telescópio quando era pequena, mas ficava fascinada com os programas e livros sobre o universo. Em Göttingen, a sua cidade natal na Baixa Saxónia, não é fácil contemplar as estrelas, devido à poluição luminosa, mas isso não a desencorajou de estudar astrofísica nem de obter o doutoramento no Observatório de Monte Stromlo.

Quem conseguiu, efectivamente, um telescópio pelo seu aniversário foi Beatriz Barbuy, uma brasileira irremediavelmente atraída pelo Cosmos desde os 16 anos. Actualmente, dedica-se à investigação no Instituto Astronómico da Universidade de São Paulo, onde tem sido responsável, tal como as duas colegas já citadas, por contributos inovadores que estão a revolucionar o que se pensava sobre a Via Láctea. 
As três procuram explicações para a origem desta grande galáxia capaz de albergar os seres humanos, um mistério que mantém intrigados astrofísicos e filósofos. Será possível averiguar como se formou? Parece uma missão impossível.

A Via Láctea é uma galáxia em espiral de componentes essenciais complexos e três partes bem diferenciadas: o centro, ou bulbo, o disco e o halo. O centro é o lugar mais povoado de estrelas e com maior actividade energética, pois contém fontes extremamente potentes de raios X e gama e, segundo pensam os especialistas, alberga provavelmente um buraco negro massivo.

O disco galáctico surge como uma estrutura plana de rotação, feita de poeira e hidrogénio molecular e atómico. É aqui que se encontra o Sistema Solar, a cerca de dois terços do centro galáctico e um terço (cerca de 25 mil anos-luz) da extremidade do disco. O Sol dá uma volta completa à Via Láctea a cada 250 milhões de anos. É também no disco que se situam os braços da espiral, cuja estrutura definitiva conhecemos graças ao telescópio espacial Spitzer. Por fim, o halo é a parte exterior da galáxia, uma forma esférica de gás difuso que abriga as estrelas mais antigas (incluindo 146 cúmulos globulares) e a que mais tem chamado a atenção das nossas três astrónomas, pois contém pistas que poderiam explicar como nasceu a Via Láctea.

Para isso, é preciso começar por distinguir o velho do novo, o que não é possível através de uma simples observação por telescópio. Anna Frebel investiu muito tempo a aperfeiçoar os seus instrumentos a fim de poder farejar as relíquias estelares mais idosas. “Não podemos determinar directamente a idade das estrelas, pelo que temos de recorrer a outros métodos, que consistem em conhecer os seus elementos químicos”, explica a especialista. A composição química de uma estrela varia consoante a geração a que pertença: quanto mais antiga for, mais baixo será o conteúdo em metais.

No início da sua existência, um astro semelhante ao Sol contém, aproximadamente, 75 por cento de hidrogénio e 23% de hélio. O restante é formado por elementos mais pesados (metais como o ferro), fornecidos por estrelas que terminaram antes o seu ciclo. Deste modo, se imaginarmos o nascimento do Universo por ocasião do Big Bang, há 13.700 milhões de anos, “todos os elementos pesados (à excepção do hidrogénio e do hélio), como o oxigénio, o carbono, o ferro... foram criados posteriormente durante as explosões estelares de supernovas”, indica Anna Frebel.

Somos, literalmente, pó de estrelas. É nesse cenário conceptual (um universo que apenas continha hidrogénio e hélio, pois os restantes elementos da tabela periódica surgiriam mais tarde), que a pesquisa começa a fazer sentido. “O que fazemos é procurar as estrelas que têm muito pouca quantidade de elementos pesados, pois esse facto indica que se formaram numa fase muito precoce do Cosmos, quando esses materiais ainda eram escassos.”

Por vezes, o trabalho dos astrofísicos é semelhante a procurar uma agulha num palheiro, mas, nos últimos dez anos, os rastreios estelares em grande escala generalizaram-se, o que lhes permite sondar com maior rapidez a zona do halo galáctico que engloba os antigos astros. “As primeiras estrelas da Via Láctea são tão velhas como o próprio Universo. Estamos a falar de uma idade que pode oscilar entre os dez e os 13 mil milhões de anos. Algumas nasceram antes de a galáxia se formar”, explica Daniela Carollo, que fica sempre maravilhada com a relação entre a nucleossíntese e a vida: “Sem essa síntese de elementos pesados no coração das estrelas, não estaríamos agora a conversar.”

Seja como for, os metais, eternamente minoritários, constituem um elemento de transformação muito significativo, apesar da sua escassez em termos cósmicos. No início, havia tão poucos que os partos estelares se produziam num ambiente quase primitivo. Com a passagem dos éons e a morte de mais estrelas, as consequentes explosões contaminaram vastas zonas da galáxia com novos elementos, e as estrelas nascidas posteriormente surgiram num meio mais metalizado. Ao comparar essas relíquias estelares com o Sol, comprovamos que a nossa estrela é relativamente jovem (nasceu há 4500 milhões de anos), embora tenha evoluído até alcançar a plena maturidade na meia-idade, explica Anna Frebel: “Se se extraísse todo o ferro solar para o colocar ao lado do que as estrelas que ando a procurar contêm, estas só teriam entre um milésimo e um décimo-milésimo do do Sol.”

Entre os tesouros que Anna Frebel conseguiu localizar encontra-se a estrela gigante vermelha S1020549, situada na galáxia do Escultor. A astrofísica desenvolveu uma técnica para determinar as quantidades relativas de tório e urânio no núcleo do astro, e publicou a descoberta na revista Nature: “Pensamos que procede de uma supernova anterior. Neste caso, tal como os arqueólogos recorrem ao carbono-14 para datar os seus fósseis, podemos analisar a relação urânio-tório para avaliar a idade da S1020549.”

A técnica envolve deduzir a proporção daqueles elementos radioactivos que resta no interior do astro e compará-la com as quantidades libertadas na explosão estelar que precedeu o seu nascimento. Como possuem uma existência muito longa, o tório e o urânio funcionam como um relógio para os astrofísicos. A S1020549 é espantosamente velha, talvez um dos objectos mais antigos de todo o Universo; poderá ter cerca de 13 mil milhões de anos (ou seja, é menos de mil milhões de anos mais jovem do que o Big Bang). A especialista alemã acredita que “provavelmente, ainda irá viver muito tempo, embora se encontre numa fase terminal, e finalizará a existência na qualidade de anã branca”.

A pesquisa de fósseis cósmicos e o aperfeiçoamento de técnicas para encontrá-los são também o leitmotiv da investigação desenvolvida por Beatriz Barbuy. Depois de obter o doutoramento pela Universidade de Paris, a cientista brasileira dedicou-se ao estudo das possibilidades da espectroscopia para detectar estrelas pobres em metais. Descobriu, entre outras coisas, que esses objectos celestes continham uma grande proporção de oxigénio relativamente à percentagem de ferro, e propôs-se averiguar de onde o obtinham.

Uma das conclusões a que chegou, publicada na revista Science, é que os astros com oxigénio devem ter nascido de resíduos deixados por supernovas de tipo II, ou seja, as que alcançaram o equilíbrio com um núcleo denso de ferro e níquel. Esses elementos já não podem fundir-se para fornecer mais energia, pelo que a aproveitam para se transformar noutros elementos mais pesados. Quando a estrela possui dez vezes a massa do Sol, pode consumir rapidamente o hidrogénio, por vezes em apenas 35 milhões de anos, e as sucessivas reacções de fusão vão produzindo elementos mais pesados. A estrela que resulta concentra-os no centro, enquanto os mais leves se acumulam no exterior, como as camadas de uma cebola. O colapso final do núcleo de ferro demora segundos; a onda de choque produz uma gigantesca explosão que expulsa as camadas mais periféricas do astro moribundo para o exterior a uma velocidade de mais de 15 mil quilómetros por segundo. A supernova pode emitir uma luz dez mil milhões de vezes mais intensa do que a do astro-rei; com efeito, rivaliza com o brilho de uma galáxia inteira durante semanas.

Por ter uma existência tão breve em comparação com outros vizinhos estelares, as supernovas de tipo II surgiram, provavelmente, nas etapas mais primitivas da Via Láctea. A impressão digital do ferro-oxigénio denuncia as “rugas” de estrelas que nasceram depois dessas explosões, algo que Beatriz Barbuy pode avaliar através dos telescópios gigantes do Observatório Austral Europeu, no Chile. Na década passada, dedicou-se à localização de cúmulos globulares de estrelas numa zona de difícil visualização, o óvalo central do núcleo galáctico. Alguns cúmulos têm dez mil milhões de anos, o que significa que a região nasceu nas fases primordiais do Universo.

Qual o contributo das três astrónomas para o estudo global sobre a origem da nossa galáxia? Há trinta anos, duas teorias competiam entre si para tentar explicá-la. “Uma fala do colapso monolítico de uma enorme nuvem de gás, semelhante ao que as estrelas sofrem, mas numa escala maior”, explica Anna Frebel. Todavia, essa perspectiva começa a ser considerada ultrapassada. A outra hipótese possui um certo sabor darwiniano: fala da sobrevivência do mais apto e começa pela criação de uma “pequena galáxia que se formou a partir do colapso de uma nuvem” e que principiaria, algum tempo depois, a atrair outras mais pequenas, naquilo que a especialista descreve como um processo de “canibalismo cósmico”. Assim, a estrutura inicial cresceria “devorando cada vez mais gás, estrelas e mesmo outras galáxias até adquirir, finalmente, o tamanho da Via Láctea”. A nossa galáxia resultaria, pois, de um banquete cósmico.

As “estrelas Matusalém”, que são quase tão velhas como o Universo, não se teriam formado na galáxia, pois esta não existia quando nasceram, há quase 13 mil milhões de anos. Naquela época, a Via Láctea era muito mais difusa e não teria, evidentemente, o rosto que hoje exibe. “É muito provável que essas estrelas mais velhas tenham surgido em galáxias mais pequenas que foram, posteriormente, canibalizadas pela nossa”, assegura Anna Frebel.

Se pudéssemos viajar para trás no tempo, o que observaríamos, de acordo com Daniela Carollo, não seria a Via Láctea, mas as velhas estrelas que nasceram antes. “Ainda não se veria a galáxia, apenas pequenos halos galácticos ou nuvens feitas de matéria escura e poei­ra. Foi nesses mini-halos que se formaram as primeiras estrelas. Durante a sua evolução, contaminaram o meio estelar. Quando se formou a segunda geração de estrelas, a galáxia ainda não se tinha unido.”

Os fragmentos da Via Láctea que contêm esses astros veteranos também carregam a marca do seu momento angular. É como se fosse outra impressão digital. Nas observações que efectuou sobre o halo galáctico, a astrónoma italiana descobriu que as estrelas mais ricas em metais e, por conseguinte, mais jovens, giram em redor do centro no sentido dos ponteiros do relógio e ficam situadas nas zonas interiores do halo. Em contrapartida, as mais pobres em metais e, consequentemente, mais idosas, fazem-no em sentido contrário e situam-se nas regiões periféricas do halo.

Esta análise coincide com as considerações de Anna Frebel: “Quanto mais remotos, mais primitivos são os corpos celestes que se descobrem.” É provável que a parte central da Via Láctea tenha sido a primeira a sofrer processos de acreção (crescimento por justaposição de matéria), enquanto as regiões exteriores foram posteriormente incorporadas. “Essas estrelas tão velhas foram, provavelmente, acrescentadas há não muito tempo à galáxia.” Anna não rejeita a hipótese de encontrar astros muito primitivos no centro galáctico, mas, como afirma, a “densidade do palheiro é muito elevada e ainda temos limitações técnicas”.

Por sua vez, Daniela Carollo sugere que nos deixemos maravilhar pela actual complexidade da Via Láctea, com o seu disco galáctico, o bulbo central, os halos e a matéria escura. Sublinha que o conteúdo metálico das velhas estrelas na parte exterior do halo é quatro vezes menor do que o daquelas que se encontram nas zonas interiores da esfera de gás. Além disso, são escassas e difíceis de detectar, pois encontram-se a grande distância do disco central, onde a maior parte se concentra, pelo que estão apenas ao alcance de telescópios gigantes com mais de oito metros de diâmetro.

A situação é paradoxal: o mais provável é que o bulbo (ou centro) esconda os primeiros astros que se formaram (entre uma população extremamente numerosa de estrelas muito mais jovens), mas, como se trata de um lugar de enorme densidade, a pesquisa é árdua. Os telescópios têm maiores possibilidades de descobrir objectos antigos no halo, em zonas mais desabitadas. Todavia, a teoria do canibalismo (acrescentar galáxias menores para formar uma maior) adquire cada vez mais força, segundo Daniela Carollo. Pensemos, pois, em termos de estruturas quase vivas de um ­puzzle que se vão juntando à medida que os éons passam. É como se a Via Láctea fosse feita de pedaços atigos e outros mais recentes; como se cada peça fosse composta de galáxias mais pequenas. “Neste momento, pensamos que a parte interna se formou através da união de nuvens galácticas, cuja massa era muito maior, e que isso também se verificou no disco e na parte interior do halo.”

Actualmente, há várias galáxias anãs em redor da nossa Via Láctea; algumas são tão pequenas que possuem apenas, de acordo com Daniela Carollo, dez mil vezes a massa do Sol. Provavelmente, explica a investigadora italiana, constituem os resíduos do mini-halo que formou a extremidade do halo da própria Via Láctea. Por outras palavras, seriam os restos do festim. “Hoje, podemos mesmo observar em directo a forma como se juntam as estruturas cósmicas. A galáxia anã de Sagitário está actualmente a unir-se à Via Láctea”, o que significa que os casamentos intergalácticos continuam a produzir-se nos nossos dias.

Outro facto interessante, indica Anna Frebel, é que as estrelas antigas das galáxias anãs são do mesmo tipo das que existem no perímetro do halo da Via Láctea. Ou seja, conclui, é como “se fossem gémeos idênticos separados, o que nos leva a pensar que o halo exterior do nosso bairro celeste se formou através da acreção dessas galáxias liliputianas”.

Otelescópio espacial Fermi, da NASA, especializado na observação de raios gama, detectou uma misteriosa estrutura gigantesca nunca vista na nossa galáxia. Trata-se de duas bolhas quase simétricas que se estendem por cerca de 25 anos-luz  a partir do centro galáctico, uma para Norte e a outra para Sul. O astrónomo Doug Finkbeiner, do Centro Harvard-Smithsonian, afirma: “Ainda não entendemos por completo a sua natureza e origem, mas pensamos que as bolhas podem ter surgido devido a uma súbita explosão de formação estelar ocorrida perto do centro da Via Láctea.” Outra possibilidade adiantada pelos astrofísicos é que as bolhas “tenham sido criadas por uma erupção do buraco negro supermassivo Sgr A* há vários milhões de anos, como um remanescente daquele despertar que apenas se tornou visível agora”.


L.M.A. - SUPER 153 - Janeiro 2011

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