sábado, 19 de julho de 2008

Algumas notas impertinentes


A questão do modelo da formação inicial de educadores e professores dos ensino básico e secundário tem vindo a ser claramente secundarizada, ou até ignorada, entre nós, se exceptuarmos aquele lapso de tempo - muito limitado, de resto -, correspondente ao período que antecedeu a consagração legislativa do referido modelo pelo decreto-lei nº 43/2007 de 22 de Fevereiro. E, mesmo assim, teme-se que o âmbito da participação e envolvimento na questão tenha ficado circunscrito ao mundo muito específico dos docentes do ensino superior directamente implicados no trabalho de formação. Ora, o que está em causa é suficientemente significativo do ponto de vista dos seus efeitos sobre o futuro do país para ser deixado à margem dos cuidados e da atenção de todos aqueles que trabalham no campo educativo, mormente dos que profissionalmente se sentem identificados com a causa do ensino/aprendizagem. Se hoje já não alimentamos as crenças ingénuas sobre o valor taumatúrgico dos professores, como foi timbre do tempo da República, nem por isso se poderá deixar sem alguma reflexão crítica uma problemática tão sujeita a ser objecto de especulação tecnocrática e presa de outros “apetites” como é o caso da formação de educadores e professores. Independentemente de uma outra abordagem que se quereria mais profunda e sistemática, deixam-se aqui por agora duas ou três notas urgentes à espera de poderem ser retomadas mais tarde com outro fôlego. Seja a primeira nota para pôr em destaque a discriminação de que é alvo a formação dos educadores e professores do 1º ciclo face à formação dos futuros profissionais do 1º e 2º ciclos e do 3º ciclo e secundário. Na verdade, e contrariamente ao que afirma o texto legal acima referido, a habilitação profissional atribuída, embora seja nominalmente a mesma, não tem a mesma dignidade material no que se refere ao 2º ciclo de formação (Mestrado). Isto mesmo se confirma linhas abaixo no texto em análise: “Nos casos dos domínios de educador de infância e de professor do 1º ciclo do ensino básico, o aludido mestrado tem a dimensão excepcional de 60 créditos, em resultado de uma prática internacional consolidada”. Lembre-se que o mestrado comum comporta 120 créditos. Significa isto que, em nome de “uma prática internacional consolidada”, são de novo remetidos para o fundo da hierarquia da formação (donde tinham saído em 1997) aqueles profissionais que se ocupam das primeiras gerações escolares. Sublinhemos a negro a importância simbólica que está subjacente a esta decisão sem, todavia, deixar passar em claro que, no plano cognitivo e disposicional da formação, o que está em causa é a desvalorização científica do mundo da infância que, entretanto, tem sido intensamente estudada entre nós de há uns tempos a esta parte. Uma 2ª nota seja para assinalar a clara mistificação curricular que se insinua na estrutura do plano de estudos. Segundo a intenção expressa do legislador, “ o
novo sistema de atribuição de habilitação para a docência valoriza, de modo especial, a dimensão do conhecimento disciplinar, da fundamentação da prática de ensino da investigação e da iniciação à prática profissional”. No plano da viabilização prática, porém – isto é, no plano da distribuição horária que define a natureza dos créditos a atribuir a cada componente de formação – desaparece rapidamente esta harmonia tripartida da formação em favor da componente disciplinar (os conteúdos da docência) que reassume o protagonismo classicamente consagrado. Como se pode constatar nos números 3 e 4 do artigo 15 “os créditos relativos à componente de formação na área de docência são no mínimo os constantes dos nºs 1 a 4 do anexo” (120, podendo elevar-se até 135). “Os créditos relativos às componentes de formação cultural, social e ética e de formação em metodologias de investigação educacional incluem-se nos créditos atribuídos às componente a que se referem as alíneas a) a c) do nº 2 que se relacionam com a Formação Educacional geral (15 a 20 créditos) e Didácticas Específicas – 15 a 20 créditos”. Ou seja, a componente da investigação que se anunciava pomposamente como constituindo-se parceira da componente disciplinar, dissolve-se afinal entre a Formação Educacional Geral e Didáctica Específicas e, mesmo assim, partilhando o espaço que sobra com a formação cultural, social e ética. O protagonismo reassumido pelos conteúdos disciplinares e a subalternização imposta à “Componente Educacional Geral”, onde cabe todo o “mundo do pedagógico”, sugere que estamos face a um novo modelo de formação que faz da Pedagogia o bode expiatório do “fracasso” do sistema educativo, como há muito tempo vem sendo sugerido pelas sibilas da nossa praça. Uma última nota servirá para exprimir a perplexidade que nos assalta quando, depois de reconhecido o ínfimo espaço conferido à investigação, somos confrontados com esta declaração : “...dá-se especial ênfase à área das metodologias de investigação educacional, tendo em conta a necessidade que o desempenho dos educadores e professores seja cada vez menos o de um mero funcionário ou técnico e cada vez mais o de um profissional capaz de se adaptar às características e desafios das situações singulares em função das especificidades dos alunos e dos contextos escolares e sociais”. Não é apenas a crença nas virtudes praxiológicas duma investigação que não tem espaço para se exercer que surpreende; o que, sobretudo, surpreende é a necessidade de fazer esta declaração num contexto discursivo dominado pelo preceitualização fácil. É preciso que as palavras estejam prestes a perder toda vitalidade...

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, da Universidade do Porto
mmatos@fpce.up.pt

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