Aceitei o convite de dois professores e fui assistir a uma reunião (que designaram de) “pedagógica”.Aguentei quase uma hora de leitura de circulares mais meia hora de comentários (inenarráveis) sobre alunos. Até que uma professora tomou a palavra: Eu acho que o
plano de recuperação não está a resultar, acho que não vale de nada, que só nos dá trabalho…
Quando os professores começam a “achar”, eu não consigo ficar calado. E quebrei o silêncio a que me remetera: A senhora está a falar de um plano de recuperação da escola? “Não, colega! Você não percebeu. É o plano de recuperação de uma aluna deficiente. – respondeu a senhora com laivos de indignação e um complacente sorriso. Não me faltou vontade de contrapor ao conceito de “aluna deficiente” o conceito de “práticas educativas deficientes”. Mas eu tinha sido convidado e não quis estragar o ambiente. Aliás, os dois professores que me tinham convidado aconselhavam-me “Low profile”, em discretas mensagens não-verbais. Os restantes deveriam
ter adivinhado os meus pensamentos, dado que me fitaram de um modo levemente hostil… Não ripostei. A professora olhou em volta. Apercebeu- se do apoio dos colegas, e retomou a fala: Estava a dizer que a aluna não consegue acompanhar as minhas aulas. Eu poderia ter perguntado se as aulas acompanhavam a aluna, mas mandava a prudência que não perguntasse. E o discurso continuou no mesmo tom: A aluna atrasou-se relativamente à turma. Pela minha
mente passou a pergunta: E o que fez a “turma” para recuperar a aluna do atraso?Os professores sentados em torno da mesa não tiravam os olhos de mim. Eu sosseguei-os com um sorriso amistoso. A reunião continuou, ordeiramente, como convinha, até que a professora rematou o discurso: Esta aluna é deficiente. Não deveria estar numa turma normal. Eu acho que deve ir para uma das turmas problemáticas que aí temos. A voz traiu-me, não consegui suster o ímpeto da interpelação: A senhora importar-se-á de explicar o significado de alguns termos que utilizou? Só para ver se eu entendi bem. Reagiu colérica e sarcástica: Eu fui bem clara no que
disse. Mas faça o favor, colega! Eu fiz o favor: O que é uma “turma normal”? Eu poderia ter perguntado: o que é uma “turma”? Mas não quis ir tão longe. Nem conseguiria. Vi-me rodeado
de silêncio, fiquei cravado de olhares furibundos. Mantendo uma linguagem soft, preparava-me para completar a pergunta. Mas instalou-se um pandemónio na sala, protestos em coro (técnica de reuniões em que certos professores são especialistas): Eu vou embora! Não estou para aturar isto! E foram. Só dois professores ali ficaram. – os que me tinham convidado –, cabisbaixos, em silêncio. À saída, os meus guarda-costas comentavam que já não tinham mais nada a fazer naquela escola. Que era um caso perdido. Que apenas esperariam o fim do ano lectivo, para se irem embora. Mas, à passagem pelo bar, apercebi-me de que dirigiram um olhar de Pedro renunciante aos furibundos colegas, assegurando, desse modo, a sua sobrevivência na escola. Chegados ao portão, pediram-me desculpa. O porteiro estava com “cara de poucos amigos” (talvez já estivesse avisado da indesejável presença). Abriu o portão com um gesto ameaçador. Esgueirei-me pela frincha, acelerei o passo e nem olhei para trás. Durante a viagem retomei a reflexão. Que argumentos foram expostos pelos professores? Nem um! Que debate foi possível? Nenhum! Amuos, só amuos. Aprendi mais uma lição: há perguntas que não podem ser feitas a certos professores. Passaram pela minha cabeça memórias explicadas. Finalmente, compreendi por que razão um aluno com leucemia vegetou no seu quarto, porque a escola pretextou “falta de condições” e não o quis receber. Porque outro aluno tinha sido “despachado” de uma escola para outra, ao cabo de uma semana, rotulado de “insuportável” e “violento”. Lembrei-me daquele que, se não fosse acolhido numa certa escola, recolheria a uma instituição para deficientes profundos. Compreendi por que a minha cunhada nunca foi escolarizada. Como eu entendi o gesto dos professores, naquela reunião! Como eu entendi a sua tragédia! Muitos professores dizem não estarem preparados para responder à diferença. Ainda que seja um dos seus deveres profissionais, podem ter o direito de continuar a não cumprir tal dever. Dizem não possuir formação para diversificar aprendizagens, mas nada fazem para repensar a organização da sua escola, de modo a dar resposta à diversidade. Não estão preparados, mas não buscam preparar-se. Não têm formação, nem a providenciam. É mais fácil o faz-de-conta dos “planos de recuperação”. É mais fácil excluir do que humanizar a escola. O problema da escola fica resolvido. Ficará resolvido o problema dos alunos? Ficará resolvido o dos professores? Enquanto alguns teóricos brincam à “inclusão” – conceito apenas útil para enfeitar teses ociosas – os meus dois amigos professores (e muitos outros professores, em muitas escolas!) são a contra-corrente silenciosa, que me confere a esperança de que a Escola ainda tem conserto. Na solidão, que a cultura isolacionista das escolas lhes impõe, no recato das suas salas, promovem “inclusões” clandestinas. No miraculoso quotidiano gesto de resistir, são o que de melhor as escolas têm. Só não podem dizer o que pensam. Natal é tempo de fraternidade, e esta rima com verdade. Por isso, escrevo para desassossegar espíritos e dar voz aos que não têm voz. Escrevo para desocultar, pois a dignificação do estatuto social e profissional dos professores não pode prescindir da denúncia, de uma fraterna denúncia.
plano de recuperação não está a resultar, acho que não vale de nada, que só nos dá trabalho…
Quando os professores começam a “achar”, eu não consigo ficar calado. E quebrei o silêncio a que me remetera: A senhora está a falar de um plano de recuperação da escola? “Não, colega! Você não percebeu. É o plano de recuperação de uma aluna deficiente. – respondeu a senhora com laivos de indignação e um complacente sorriso. Não me faltou vontade de contrapor ao conceito de “aluna deficiente” o conceito de “práticas educativas deficientes”. Mas eu tinha sido convidado e não quis estragar o ambiente. Aliás, os dois professores que me tinham convidado aconselhavam-me “Low profile”, em discretas mensagens não-verbais. Os restantes deveriam
ter adivinhado os meus pensamentos, dado que me fitaram de um modo levemente hostil… Não ripostei. A professora olhou em volta. Apercebeu- se do apoio dos colegas, e retomou a fala: Estava a dizer que a aluna não consegue acompanhar as minhas aulas. Eu poderia ter perguntado se as aulas acompanhavam a aluna, mas mandava a prudência que não perguntasse. E o discurso continuou no mesmo tom: A aluna atrasou-se relativamente à turma. Pela minha
mente passou a pergunta: E o que fez a “turma” para recuperar a aluna do atraso?Os professores sentados em torno da mesa não tiravam os olhos de mim. Eu sosseguei-os com um sorriso amistoso. A reunião continuou, ordeiramente, como convinha, até que a professora rematou o discurso: Esta aluna é deficiente. Não deveria estar numa turma normal. Eu acho que deve ir para uma das turmas problemáticas que aí temos. A voz traiu-me, não consegui suster o ímpeto da interpelação: A senhora importar-se-á de explicar o significado de alguns termos que utilizou? Só para ver se eu entendi bem. Reagiu colérica e sarcástica: Eu fui bem clara no que
disse. Mas faça o favor, colega! Eu fiz o favor: O que é uma “turma normal”? Eu poderia ter perguntado: o que é uma “turma”? Mas não quis ir tão longe. Nem conseguiria. Vi-me rodeado
de silêncio, fiquei cravado de olhares furibundos. Mantendo uma linguagem soft, preparava-me para completar a pergunta. Mas instalou-se um pandemónio na sala, protestos em coro (técnica de reuniões em que certos professores são especialistas): Eu vou embora! Não estou para aturar isto! E foram. Só dois professores ali ficaram. – os que me tinham convidado –, cabisbaixos, em silêncio. À saída, os meus guarda-costas comentavam que já não tinham mais nada a fazer naquela escola. Que era um caso perdido. Que apenas esperariam o fim do ano lectivo, para se irem embora. Mas, à passagem pelo bar, apercebi-me de que dirigiram um olhar de Pedro renunciante aos furibundos colegas, assegurando, desse modo, a sua sobrevivência na escola. Chegados ao portão, pediram-me desculpa. O porteiro estava com “cara de poucos amigos” (talvez já estivesse avisado da indesejável presença). Abriu o portão com um gesto ameaçador. Esgueirei-me pela frincha, acelerei o passo e nem olhei para trás. Durante a viagem retomei a reflexão. Que argumentos foram expostos pelos professores? Nem um! Que debate foi possível? Nenhum! Amuos, só amuos. Aprendi mais uma lição: há perguntas que não podem ser feitas a certos professores. Passaram pela minha cabeça memórias explicadas. Finalmente, compreendi por que razão um aluno com leucemia vegetou no seu quarto, porque a escola pretextou “falta de condições” e não o quis receber. Porque outro aluno tinha sido “despachado” de uma escola para outra, ao cabo de uma semana, rotulado de “insuportável” e “violento”. Lembrei-me daquele que, se não fosse acolhido numa certa escola, recolheria a uma instituição para deficientes profundos. Compreendi por que a minha cunhada nunca foi escolarizada. Como eu entendi o gesto dos professores, naquela reunião! Como eu entendi a sua tragédia! Muitos professores dizem não estarem preparados para responder à diferença. Ainda que seja um dos seus deveres profissionais, podem ter o direito de continuar a não cumprir tal dever. Dizem não possuir formação para diversificar aprendizagens, mas nada fazem para repensar a organização da sua escola, de modo a dar resposta à diversidade. Não estão preparados, mas não buscam preparar-se. Não têm formação, nem a providenciam. É mais fácil o faz-de-conta dos “planos de recuperação”. É mais fácil excluir do que humanizar a escola. O problema da escola fica resolvido. Ficará resolvido o problema dos alunos? Ficará resolvido o dos professores? Enquanto alguns teóricos brincam à “inclusão” – conceito apenas útil para enfeitar teses ociosas – os meus dois amigos professores (e muitos outros professores, em muitas escolas!) são a contra-corrente silenciosa, que me confere a esperança de que a Escola ainda tem conserto. Na solidão, que a cultura isolacionista das escolas lhes impõe, no recato das suas salas, promovem “inclusões” clandestinas. No miraculoso quotidiano gesto de resistir, são o que de melhor as escolas têm. Só não podem dizer o que pensam. Natal é tempo de fraternidade, e esta rima com verdade. Por isso, escrevo para desassossegar espíritos e dar voz aos que não têm voz. Escrevo para desocultar, pois a dignificação do estatuto social e profissional dos professores não pode prescindir da denúncia, de uma fraterna denúncia.
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves/A página da educação
Escola da Ponte, Vila das Aves/A página da educação
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